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Caderno de Exercícios (Contos)
Por Cláudia Valdemarieva de Sousa Dias Publicado em Contos, Literatura, Portugal a 31 de Dezembro, 2023 1625 palavras
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CADERNO DE EXERCÍCIOS

Exercício 1 – Errâncias

Cesar Asir, obeso e largo, procurava asilo em casa de Ivo Mua, o arquitecto da moda, no País. Era um pequeno retiro no Amial, com um anexo que mais parecia uma cabina, um curral. Ficava no pátio. Um pátio, que dava para as traseiras da casa-mãe, mas dentro da propriedade de paredes muradas revestidas a cal. Lembrava a eira, na quinta daquela outra família no vale do Tua. Ao viajar para o Porto, achou o preço do bilhete do comboio um tanto “careiro” e o revisor “um cromo”, que implicava com ele o tempo todo, devido ao seu aspecto mourisco, de grandes barbas proféticas e vestuário levantino, em tudo destoando do estereótipo do dito português de “gema”.

Ao imprimir o bilhete, comprado no comboio, o funcionário olhou para ele desconfiado, antes de agrafar o recibo:

Não és de cá?
Não. Sou marroquino.
E tens o aval do SEF para residir em Portugal?

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Como resposta, mostrou-lhe o visto de trabalho e a identificação. Aparentemente, tudo estava em ordem, sem faltar um til. O homem fardado deixou-o, então, em paz durante o resto da viagem, mas sempre mantendo-o “debaixo de olho”.

Ao chegar ao destino, a casa onde ficaria agora não distava muito da foz do rio que
atravessava a cidade, e do andar de cima, provavelmente, via-se o mar. Havia decidido mudar-se para o litoral a fim de sarar as feridas da alma, com o ar salgado do Atlântico. É verdade que o desprezo dos outros pela diferença sempre o magoara. Assim, resolvera partir, uma vez mais, e de um momento para o outro. Porém, ainda não seria “desta” que iria abandonar de vez a sua condição de nómada

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O anexo, onde agora dorme, ao fundo do jardim, parece um antigo e quixotesco moinho-de-vento sem hélices – ou um silo, ovalar, como aqueles usados para armazenar cereais.
O rumor do vento ouve-se lá fora, enquanto ele descansa na cama. Acabou, há minutos, de cerzir as meias, gastas por tantas andanças. Em breve terá de as substituir. E, se calhar arranjar um segundo emprego, idealmente numa alfaiataria, para complementar as manhãs a trabalhar como jardineiro na mansão do arquitecto. Encostado às almofadas da exígua cama, fecha os olhos. Em poucos segundos o seu suave roncar, funde-se já com o som do vento lá fora, a urrar como uma alma penada, assediando, insistente, as frinchas da porta. Entretanto, a aba do lençol, junto ao pescoço, vai ficando empapada em suor. A febre vai, lentamente, ganhando terreno. Mas ele não se pode dar ao luxo de ficar doente e arcar, no dia seguinte, logo pela manhã, com a ira do patrão a gritar-lhe, como faz aos outros – Levanta-te daí e traz o rolo, imbecil! – a fim de acabar de pintar o muro que separa o terreno do da casa vizinha.

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A ala direita do muro está ainda toda por pintar. De branco ofuscante. Da cor do sal marinho, das mesmas ondas cujo bramido e rítmico rebentar se ouve, cadenciadamente, do leito. Da mesma praia que, a poucas dezenas de metros, ele não pode, todavia, dar-se ao luxo de ir ver e explorar pelo próprio pé. E então, subitamente, a porta abre-se de rompante e acorda-o com violência inusitada, a voz do patrão, a invadir o quarto com a gélida nortada, cujos uivos ecoam por todas as paredes, com furor nunca visto:

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 Então?! Não estás a ver as horas?! Logo no primeiro dia de trabalho?! Como é?! Já
são nove da manhã? Ilegais não têm direito ao lazer! Então? Era o que faltava,
pagar-te para ficares na sorna durante as manhãs de sábado. Por amor da santa!
Não há ninguém com siso que queira trabalhar?!

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O enfermo levanta-se, cambaleante ainda, mas recobrando a postura, apesar da febre,
que entretanto descera um pouco. Olhou-o fixamente. Olhar negro como petróleo a
invadir o mar azul-cinza dos olhos do adversário, por dez longos e intermináveis
segundos. O patrão empalidece.

O homem sai. Sem cama, sem terra, sem pátria. Caminha agora, devagar e erecto, em
direcção à praia.

Londres, 08. 09.2023.

Exercício 2 – Maledicências

A tia Irene mora em Otomana, uma pequena vila de arquitectura mourisca, mesmo na
fronteira que separa o Alentejo e o Algarve, com Bel. A casa fica nas proximidades de um lago, que alimenta as colheitas do seu pequeno quintal. A anciã passa os dias a cavar a horta, incessantemente, de manhã à noite, e a galgar as valas que separam os diferentes produtos hortícolas, os quais vai fazendo crescer com incansável amor à terra e aos seus frutos. A filha é casada com Ganimedes, o edil da povoação, o qual nunca lhe caiu no goto, já que aquele genro, em casa, não é capaz sequer de descascar uma banana, sempre à espera que as mulheres que com ele vivem debaixo do mesmo tecto, façam tudo por ele, excepto comer, dormir e expulsar dejectos. E que ninguém lhe fale em arear e limpar as pratas, que compra às toneladas e já nem tem mais onde as guardar. O mais certo era riscá-las esfregando-as com piaçaba. Ou em podar os ramos do abeto que dão para o quintal vizinho, sem causar sérios danos na árvore ou em alguém, ao manusear aquela horrível traquitana da moto-serra. É melhor, pois, que fique por lá, nos Paços do Concelho e meta o nariz naquilo que lhe importa mais – as pilhas de licenças de construção, alvarás de legalidade duvidosa, em vez de vir para aqui ‘onerar’ – palavrinha cara que ele adora – uma velha sem dentes e BI caducado, que tem mais do que fazer do que perder uma manhã inteira de trabalho na sua amada quintela para a Loja do Cidadão, que é como agora lhe chamam ao Registo Civil.

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 É verdade que sempre que ele pronuncia esse verbo, essa acção, eu perco
dinheiro ou alguma coisa de valor, raios o partam! Se ele se fosse mas era meter
na vidinha dele e se se pusesse a ‘alar’ daqui para fora, é que ele era fino…Tenho-lhe cá uma gana!

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O neto, Eneias, adolescente e espigadote é, para ela, ‘um galaró’, maníaco de saias.

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 Um mirone, sempre a espiar aqueloutra prima, beata e sonsa, com aquele arzinho
de santinha, de virgenzinha imaculada, mas que se põe para ali a despir-se, à
noite, no quarto, em frente à janela e de luz acesa, com as cortinas corridas para o lado e a persiana subida, a desavergonhada!

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A Mãe do rapaz, a Isabelinha, não liga nenhum aos destemperos sexuais do filho, nem
quer saber do vício dele de perseguir e emboscar raparigas, junto aos valados. O seu tempo é escalonado de forma a passar o dia quase todo, salvo as refeições e as horas reservadas ao sono, a treinar o nariz e a anotar num caderno diferentes combinações de vários perfumes de flores e ervas aromáticas. Quer trabalhar para uma firma que faz loções e cremes que cheiram como sobremesas para o corpo. A vida de Bel é passada a inalar.

 Também ela gosta de palavras sonantes, ‘peneiras’ não lhe faltam! – resmoneia a
velhota.

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As dezenas de frascos de perfume que a filha tem no escritório, os boiões com
especiarias na despensa, onde espalha flores de anis e folhas de louro pelas prateleiras, gavetas e estantes a fim de afastar as traças e os bichos-da-prata, também das roupas e dos livros, revelam um cuidado especial em conservar as coisas e em tornar a casa agradável para os que nela habitam. Mesmo assim a filha é, para ela, ‘outra inútil’, mas ‘pelo menos é asseada e ‘caseira’. O que ela queria mesmo é que a ‘moça’ – que para si, nunca saíra da adolescência – ‘deixasse de cheirar este mundo e o outro’ e a fosse ajudar na horta.

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Já a ‘outra’, a que se despe à janela, a sobrinha da filha por parte do marido, a que ‘sempre inova alguma coisa’, com aquela deslumbrante camisa de dormir azul-índigo, ‘transparente como uma rede anil de caçar peixes’… dá, no entanto, bastante que fazer aos espiões e bufos da vila, que vão soprar ao ouvido do tio autarca os preparos da jovem e os arroubos passionais do filho, com a mesma eficácia da CIA.
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O jovem, indiferente às más-línguas, principia a escrever à prima, a citar poetas, a compor rimas, a fazer-lhe crer o seu bem querer. A seta de Cupido já fez alguns estragos na cabeça ‘do cachopo’, como a velhota lhe chama. Agora é tanta a obsessão pela sedutora prima que ele só pensa em arranjar um laço pronto a atar um elo onde não há meio de produzir ligação alguma.

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Ela, indiferente, a tanta paixão-fogo-fátuo, caminha para a balsa, atracada ao cais, junto ao lago, nua sob a camisa esvoaçante de noite anilada. Começa a remar. Ao chegar ao centro do lago, ata um cinto de pedras roladas, pesado como chumbo, à cintura fina. E mergulha, até ao fundo, nas águas, que reflectem a lua.
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A velha aguarda, uns minutos à janela, à espera que ela regresse à tona. O ar gelado entra-lhe pela malha grossa do xaile. O frio corta. A Lua sumiu-se no lago e o azul principia agora a clarear. Fecha então a janela e dirige-se à cama aquecida com uma botija de água quente.
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Londres, 13.09.2023.

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