Para o António Ventura, poeta discreto
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Veio o verão, nessa primavera de 1986 que raramente amanhecera fria.
O que fora um tremendo tempo, um ar de inverno a prolongar-se,
deslizava já entre vagas litanias.
Março nasceu cedo, dissera o senhor cura: são meses para poetas,
flores de campónio, lírios sem cheiro
que vagabundeiam nas serras e montanhas.
São flores de agreste odor, que os miuras comem, ao sair da tarde.
Onde andará Super, o eterno hippie?
Não creias, como o outro, que não é verdade o que nunca viste.
Não julgues, como esses bezerros de mau ouro, que a tua
ignorância das coisas faz com que não existam elas.
Jamais penses que não há os perfumes que nunca sentiste.
As coisas entre o céu e a terra continuam a ser mais, muitas mais,
do que sonha a tua e a minha vãs filosofias.
Nunca creias que essa silhueta de purgatório, que vias,
velho mestre Lugones, em cada transeunte,
é menos real que toda a realidade.
Não é loucura o que não entendemos.
Nem sequer entendemos o nosso cérebro.
Como alguma vez presumiremos entender o cérebro dos
que não pensam, nunca pensam, como tu ou como eu?
Que tamanho tem Antares?
E no calor de verão que tremeluz a estrada,
outro verão antigo assoma nas bermas de Córdoba.
Ou de cidade nenhuma.
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*
II
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Vínhamos de uma praia antiga de um passado profundo
uma tribo, um clã , alguma coisa indefinida sob os altos castelos da Lua
ou o singrar de pássaros admiráveis de belos.
Vínhamos da larga flor do Nilo, a esbelta flor
aturdida de sol
de um certo pressentimento,
uma pátria comum, Terra, terra toda, zumbidos e viagens.
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Vínhamos como uma lira tangida e havia
deuses que nos invejavam seres de uma luz clássica
de um modo amável de ver o mundo
E envelhecíamos sem o saber
passo a passo nos passos de Cronos
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Vínhamos de um coração onde velejavam as naus e os anjos
onde batiam as marés de outrora
E íamos entre os teixos e as mágoas, entre os juncos e as nuvens velhas.
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Cantavam as margens de onde vínhamos.
Delíamos o linho de cada madrugada.
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E seguíamos, acesos e peregrinos.
Porque havia luz, e havia Terra, toda a Terra,
o teu corpo era belo e era o meu templo.
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E daí vínhamos sem saber porquê.
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Currículo literário:
Nome Literário: Fernando Cabrita (Olhão, Portugal, 1954), Escritor e Advogado.
Entre poesia, crítica literária e ensaio, tem publicados mais de cinquenta títulos em Portugal, Espanha, França, Porto Rico, Turquia, Rússia e Marrocos. Está traduzido para castelhano, francês, polaco, russo e turco, e a sua obra poética recolheu já nove Prémios Literários: Prémio Nacional Sílex em 1980; Prémio Cidade de Olhão em 1987; Prémio Emiliano da Costa, também em 1987; Prémio Oliva Guerra em 1988; Prémio João de Deus em 1995; Prémio Nacional João de Deus em 1997; Prémio Nacional de Poesia Mário Viegas em 2008; Prémio Internacional de Poesia Palabra Ibérica em 2011; e há poucos dias o Prémio Literário da Lusofonia Professor Adriano Moreira,2023.