A MÁSCARA DO POETA
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1
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Debruçado sobre a sua escrivaninha,
juncada de folhas de papel imaculado,
o poeta experimenta os aparos, as cores
das tintas com que irá mascarar
os seus versos, cortará as amarras
e o fio com que se cosem as nuvens
ao céu do seu tempo de escrita,
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o poeta dispõe-se a desenhar letras,
letras que serão outras tantas amantes
quando as vê, sem cortinas nem grades
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ao fim da rua enlameada, ardendo se,pre,
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2
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Com o frio dos espinhos de uma noite,
tapado com tantos jornais e cartão
de caixas desarmadas, procurava
adormecer no portal de um banco,
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os sonhos escorregavam no mármore
das paredes, não lhe entravam na boina
com que os mortos se disfarçam deitados,
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o homem fechava as mãos, fechava a voz
na garganta, no nojo, no álcool, deserto,
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3
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Guarda essa arma, essa máscara de luz,
a paz dos pobres não é a simples paz
dos pobres, nem assim, com essas
palavras chegaremos a qualquer parte,
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ao que chamamos paixão não se soma
sequer o coração, guarda essa arma,
reconheces-me, bem sabes que sou
o outro lado do espelho, o fundo negro
da gaveta, a lâmina curva do infame,
a sombra projectada no papel de parede,
as chaves do enigma presas aos dedos,
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a mão cortada está ali, desafiando a luz
do nosso tempo, a máscara, e assim
começa a nossa insuportável noite ante
um televisor, mas acordamos quando
os corvos sobrevoam os nossos sonhos,
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José Viale Moutinho
1Porto, Maio de 2
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