O VOO DA ANDORINHA EM ÉPOCA NATALÍCIA
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Estou cansado de procurar nas esquinas da cidade
um manancial de pedras.
Está frio lá fora, um frio inamovível, que prepara
determinadas respostas, as que cobrem de água a árvore intacta,
ou o voo da andorinha que se esqueceu de fugir
deste destino irredutível.
Do natal pouco sei, apenas que as luzes já não me consolam
o sangue do meu corpo, e as prendas não sejam mais
do que vocábulos gelados pelos estandartes de ouro.
Percorro todas as ruas com os pés molhados, frios.
Contemplo, numa vitrina, os novíssimos sapatos,
a roupa cara, que emana luz, oblíqua luz, ubíqua
e que repousa os seus anzóis no riso dos malfeitores.
Ainda há quem não tenha pão para saciar a fome,
sim, a fome no limiar de um poema
se este for o sémen de Deus, o mesmo que fecunda o sol.
A cinza, neste tempo, é um ventre inacessível.
Aprecio, agora, porque o agora mo permite,
uma personagem de um filme esquecido de Federico Fellini,
o presente nunca esteve tão longe,
nem o derradeiro terraço abafado por uma escada íngreme.
Nos subúrbios de Kharkiv a morte prepara os seus lençóis brancos,
é natal, sabemo-lo ao respirar o voo da andorinha.
Suponho que talvez haja um acidente na memória alheia,
ninguém permanece na estação da desolação,
nem no deserto dos que se movimentam pelas ruas
e que se passeiam entre os barcos brancos e a miopia do silêncio.
É natal, é natal e mil cavalos ardem em alto mar,
abafam o soluço das ondas, clamam por um verso de Odysséas Elytis,
ou por uma profecia antiquíssima ainda presente nos evangelhos apócrifos –
Deus foi crucificado com pregos que não servem para nada,
mas o que queríamos era consolar a nossa angústia,
o luto de não termos um sol que nos aqueça,
o mijo impossível, quase neo-alexandrino, que depositamos na vida,
e que nos ocupa as mãos e o que resta do tempo, o nosso tempo.
Já não sei o que devo herdar, isto é, perguntar –
é esta a espiga do vento?, talvez, mas continuo sem saber,
e tu não me contas, não me dizes o que eu preciso de saber,
talvez o curso das fragas do norte te inibam, ou a errância de um rio,
mas eu não tenho culpa disso.
Conta-me o que eu preciso de saber, peço-te!
As músicas de natal não me consolam a sede, seda
que substituiu o olhar virgem, diria que este é o primeiro vocábulo
do ancestral comum dos símios,
os guinchos eternos que Stanley Kubrick sonhou nos grandes pomares.
É este o voo da andorinha,
em plena época natalícia, mas não faças caso disso irmã, irmão,
mãe mais além –
o sangue de um cisne desenhou o vazio de uma camisa,
assim é o mundo, dirá a memória que já se apagou,
ou o contrabaixo irrequieto que acompanha, com elegância,
a voz doce de China Moses.
Agora, só me resta o perdão perante um vinil de jazz,
absorvo o som de duas montanhas em fúria, o lume que me vai guiando
pelo frio das cidades – o inverno, a morte, a fome, a sede,
o medo, o desejo, a angústia, o desespero, a guerra, a procura, os cigarros,
o natal, o nada, o derradeiro voo da andorinha,
que esbraceja em agonia ao perceber que a ausência de um farol
é mais branca do que a espuma de um vento.
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