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Poesia portuguesa
Por José Manuel de Vasconcelos Publicado em Literatura, Poesia, Portugal a 25 de Setembro, 2023 375 palavras
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O ESPELHO

Por aqui passam todos os dias
até que fique apenas um objecto
abre-se o pano trémulo do olhar
como trémula é toda a procura verdadeira
mesmo nas calmas e frias superfícies
sob a atenção constante da morte
Volta-se aos passos da inocência
em poças de lama e luz
coração frágil sempre temendo a ignomínia
correndo os caminhos árduos do imprevisto
em expedições de mão imaginária
até que desaba a realidade e o olhar
deixa os pensamentos puros
para se embrenhar nas misérias da vida
Passam assim os tempos bifrontes
levantam-se notícias as pálpebras
do passado gris enchem-se de manchas
e a primavera grita
muito para lá da pobre imaginação
É o tempo rasgado de Abril o lago
onde renasce o mundo
enchendo as noites de aventura desvendando
a púrpura dos corpos
acumulando nomes de mulheres
Mas as águas acostumam-se sempre ao seu fluir
e os ímpetos arrefecem
deixando sobressair retratos lamentáveis
Desta janela vejo extinguir-se a glória
a exuberância das horas admiráveis
as tochas murcharam cultivou-se a mentira
o ardil encapuçado reina
e o poeta começou a ter idade
a dormir mais consigo próprio
e a recordar o gosto dos lábios abertos
o vidro embaciou-se
sem sequer os dedos da infância
poderem rabiscá-los
a boca mastiga agora a orelha da alma
engole os limites do sonho
Calmo e saudoso olha para o espelho
e já não vê ninguém

***

A SECURA DO TEMPO
(Lucian Freud, exposição Novas perspectivas)

Um bando de velhas
com hálitos de mariposa ressequida
olham com pudor as carnes gordas
abatidas em leitos que filtram
os uivos pressentidos da cidade
olham e escondem a vergonha
a escorrer-lhes pelo corpo
rumo às zonas de infortúnio
sentem-se humilhadas pelos reflexos
que vão do céu da arte
ao inferno da realidade
De cabeças vendadas
debatem-se na nostalgia de quem
compara o que se desnuda nos quadros
com os corpos sublimes que à sua volta se entregam
a olhares concupiscentes
por entre cenas de um amor pedestre:
impressões geladas
perante o estrangulamento das paredes
de um quarto de hotel que num quadro
representa a miséria de uma separação
Será possível que um amor acabe assim?
‒ perguntam-se olhando as janelas do tempo
a corporizar os momentos vazios
Nada há aqui de erótico
apenas se sente o trabalho imparável do tempo
a apodrecer tudo e todos
Mas enquanto isso
bem perto
trocam-se olhares de espuma verde
e os apelos do momento
fazem as honras da falsa eternidade


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