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Literatura de Macau
Por Shee Va Publicado em Cartas, Literatura, Macau a 24 de Setembro, 2023 1350 palavras
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 CARTA A UMA ALMA GÉMEA

          

Saiba, minha amiga, que eu era nada antes de o encontrar. Circunscrita ao universo criado por meus pais, embutida pelas vivas cores da obediência, lealdade e piedade filial que foram transferidas para os fios de seda que as minhas laboriosas mãos bordavam ao ritmo da conjugação do verbo aperfeiçoar, fui desenhando um mundo muito meu, privado e sobretudo solitário.
Eu era bela porque os outros me diziam tal, eu era dócil porque desconhecia o gosto da indisciplina. Cultivei virtudes sem nunca ver os seus viçosos rebentos verde-jade orvalhados de frescura e muito menos os suculentos frutos que todos diziam serem saborosos.
Mas eis que ele chegou, trazido pela brisa primaveril que transportava também aromas inebriantes que inundaram os meus sentidos e despertaram em mim a curiosidade de explorar o jardim, de conhecer a azálea, as rosas, os lírios, os nenúfares que emergiam as suas cabecinhas de pétalas coloridas acima das folhas verdes e robustas que flutuavam plácidas, à superfície das águas transparentes. Como estas flores aquáticas, que transgrediam o seu mundo de imersão e submissão, eu escapei das altas paredes que me rodeavam, levada pelos passos excitantes da descoberta, perseguindo deslumbrada cada surpresa que surgia. Antes de contemplar por completo uma, já outra cintilava no canto do olho a cativar a minha atenção ou outra ainda me desviava os sentidos em sua direção. Vi as cores que me eram dadas a conhecer, mas possuídas de nuances diversificadas em tonalidades impressionantes e combinações surpreendentes. Um arco-íris de vibrações acompanhou a minha incorporação destas cromáticas, odoríficas e emotivas aquisições sensitivas. Como se isso não fosse bastante, os incestos rasgavam o ar, em voo rápido e retilíneo uns, enquanto que outros traçavam arcos ondulantes e circunvalações elípticas num universo aparentemente vazio, mas pleno de atrativos que os faziam indecisos, perdidos. As abelhas zuniam à minha volta e iam, sem cessar, beijar as flores mergulhando suas línguas nos ocultados nectários, sugando-os com um prazer luxurioso. Oh! minha face ruborizou. As asas das borboletas no seu leve esvoaçar afagaram o meu rosto rubescente, envergonhado da inusitada intimidade. Depois suspendi minha respiração ao dar conta de duas libélulas, de asas membranosas, finas e brilhantes, muito quietas, unidas pelas caudas, paralisadas em êxtase, poisadas num botão de flor por desabrochar, mas feliz de energia orgástica. Senti um frémito incomodar o ritmo desenfreado do meu coração palpitante, enquanto uma labareda de fogo queimava meu baixo ventre, devorando-me o corpo. No ar espalhava-se o canto alegre do corrupião. De repente, senti-me tão exausta da exaltação que fugi do jardim a passos corridos para me recolher ao quarto, a minha zona de conforto, a alcova onde poderia sentir-me segura e longe, voluntariamente afastada da origem das sensações que eram uma completa novidade para a minha pureza. Depressa meu corpo cansado foi invadido pela mole sonolência que faz repousar. O descanso não foi longo e vi-me de novo no jardim, acompanhada por ele, que me descrevia horizontes desconhecidos. Sua figura, seu falar e seus modos acaloraram-me ao ponto de eu desabotoar a gola da minha veste para permitir que uma frescura acariciasse o meu colo, depois afrouxei a cinta da minha saia para que pudesse libertar para o ar um suspiro murmurado. Sem saber como nem porquê, prostrava meu monte de jade alvo e imaculado num leito de peónias diligentemente regado pelas frescas águas da chuva, oriundas de umas nuvens que flutuavam bem no alto de um céu risonho, azul radioso. Foi uma pequena e deliciosa morte que quase me matou, embora morresse de verdade. Ressuscitada, procurei-o vezes sem conta entre a folhagem do bambuzal do jardim ou escondido nas esquinas arredondadas das rochas animalescas dispostas à volta do lago, talvez para me surpreender com um sorriso luminoso. No entanto, não houve sol ou luar que conseguisse trazer-me a sua sombra, nem aragem que fosse capaz de devolver-me o perfume do seu corpo. Sua voz calou, mas uma vibração no interior labiríntico do meu ser continuou a marcar presença. Ele possuía-me por dentro, meus braços ávidos cingiam o vazio. Desalentada, morri de amores por ele. Só podia viver sonhando. Em morrendo, vivia nem que fosse no além, para todo o sempre, eternamente… Haverá alguém que tenha amado tão intensamente quanto eu o amei, sendo ele sonho, imagem ou realidade? Será que o seu amor por mim é suficientemente forte e leal para resistir às intempéries dos tempos? Afinal, o amor só é amor, se for intenso e capaz de fazer morrer quem o vive ou possibilitar ressuscitar aquele que por ele morreu. De onde vem o amor? Como se apresenta? Fogo ardente? Ansiedade? Perfume de peónias ou rosas desfolhadas? Conjunto de palavras doces? Frases delicadas, leves como penas arrastadas pelo vento que sobrevoam mares e oceanos e lançam âncora em portos de abrigo como as cartas clandestinas transportadas por enigmáticos mensageiros? Ou será a recordação de um gesto, de um beijo ou de um olhar, a centelha mais ardente do que todas as palavras, ditas ou escritas? Também tu, fechada num claustro de conveniências sociais verás um dia entrar porta adentro uma luz que te cegará. Como eu, tu nada eras antes de o encontrar. Serás inteira quando o descobrires. Nele acharás a tua alma, por ele perder-te-ás.
Para existir eu escrevi o meu retrato e aguardei, enquanto que tu te revelarás pela palavra escrita, em letra redondinha, perfeitamente desenhada mas também sobressaltada de dúvidas – esborratada de desalento, em insistentes missivas de uma incessante busca – Porque me chamaste nos teus abraços? Porque me mentiste nos nossos beijos? Procurarás saber onde, como e porquê. Porque lugares ele vagueou ou que sorrisos ele admirou. Pensas que te comparando a outras, as suplantas? Não raciocines, a razão pouco ou nada pode frente à paixão. Buscas a felicidade tomando de afeição uma quimera. Amas mais o amor que o objeto do amor. Procuras por ele, mas é a sua ausência que tu desejas pois o sofrer trará o que retiveste dele, a carícia, a doçura, o sorriso. Consomes-te em palavras, mas o silêncio assume maior valor porque nele cabe tudo – o teu universo, o dele e também o vosso mundo comum. Naquele ponto da planície onde o viste surgir e depois desvanecer, nascerá uma árvore chamada paixão que, como uma fénix, será consumida pelo fogo para ressurgir exuberante das próprias cinzas. Só viverás quando te desembaraçares do sofrimento recalcitrante aferroado no teu deleite mórbido e o libertares. Ele fugiu de ti, foi para longe, para terras de França. Deixá-lo…
Mariana, esquece esta existência material. O nosso aroma é feito de partículas eternas que permanecerão suspensas na galáxia para intoxicarem os corações apaixonados. Amando até ao infinito, cumprimos o nosso destino de desejar a imortalização

  • Du Liniang é uma personagem da peça teatral “O Pavilhão das Peónias” – 1598, da autoria de Tang Xianxu, conhecido internacionalmente como o Shakespeare da China. É uma adolescente que numa visita a um jardim (sentido figurado do mundo exterior à sua clausura e educação confuciana) se sente cansada e adormece no banco do jardim. Sonha com um jovem estudante e apaixona-se perdidamente por ele. É um amor tão intenso e desesperado que morre de amores. Três anos mais tarde, um estudante passa pelo jardim e recorda-se de ter, ele também, sonhado com o local e a presença de uma beleza feminina. Nessa noite, tem um encontro com a donzela e mais tarde apercebe-se que ela é um fantasma. Cava a sua sepultura, desenterra o cadáver e ressuscita -a.


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