O Leão e o Caracol
I.
Não se parece com Amis Kopf, atirou-me a pequena alma. Tem toda a razão. Ninguém se parece. E em boa verdade ninguém é Amis Kopf, não realmente, nem mesmo eu. Muito fiz por isso, acredite. Amis Kopf é ninguém. Mas se fosse alguém, garanto-lhe, seria eu. E, se me deixar entrar, quem entrou terá sido o único que alguma vez poderia ser Amis Kopf. Não se perca em dúvidas.
Não se parece com Amis Kopf, atirou-me a pequena alma. Tem toda a razão. Ninguém se parece. E em boa verdade ninguém é Amis Kopf, não realmente, nem mesmo eu. Muito fiz por isso, acredite. Amis Kopf é ninguém. Mas se fosse alguém, garanto-lhe, seria eu. E, se me deixar entrar, quem entrou terá sido o único que alguma vez poderia ser Amis Kopf. Não se perca em dúvidas.
A pequena alma, detrás de um balcão medido e montado por alguém que a excedia em mais de palmo e meio, delia a cada palavra até dar de si apenas a sua ausência. Retirava-se para o interior, como qualquer bicho de concha. E isso acontecia-me muito. Falar com alguém era ver esvanecer a pessoa diante dos meus olhos. Caracóis, dizia-lhes depois. Criaturas de concha. Todas temem Amis Kopf. Não por ser outro bicho diferente, mas por ser o maior entre elas. O maior caracol. E sorria, e ria-me também, porque se chorasse pensariam que era disso.
Sei tudo sobre ele. Tudo, disse a nanica. Amis Kopf é mais alto. O cabelo é-lhe tão negro e cheio de lustre quanto o tampo dum piano. É largo e magro. Ombros como num esteio. E não usa óculos. Posso também não usar óculos, respondi fazendo-os desaparecer para o bolso, como um ilusionista. Os cabelos perdem o verniz. E, é favor considerar, viu-me sempre a caber num televisor. E ver miniaturas é acreditar em grandezas.
O nome de Amis Kopf aqui está no rol, mas o que acontece se ele mesmo chegar depois de si, se ele mesmo souber que o confundi com alguém que não se parece com Amis Kopf. Não me perdoaria. Nem ele nem eu mesma. Muito menos Sokhiev, que não me quis no palanque a rodar os arabescos. Vá-se embora, por favor, que dali a nada tudo começa.
Atrás de um caracol vem sempre um renque de esperas. E outros entravam no vestíbulo e esticavam os gasganetes a ver quem era o bicho. Ao longe, a cacofonia de afinação começava, e não parecia ter muito mais que afinar. Repare, avancei, façamos um trato. Se eu lhe disser algo que não saiba acerca de Amis Kopf, algo que ninguém sabe, perceba, um xodó, um enredo, passarei e acabaremos com este impasse. Atrás, quase senti uma aprovação em uníssono, ou quis crer que sim, pois bem podia ser o oposto. Mas, como a curiosidade é tão antiga quanto a esfinge, a nanica rasou o ar com um nariz a dizer-me que sim.
II.
Pois então conto-lhe de Ruslan e de como nasceu atrasadíssimo na boca do Kalmius, caído para o seu primeiro banho de menino no mar de Azov, perto de um grande medronheiro e entre o capim-sono e os bordos pretos. A mãe, que o removera de si desajudada, lavou-o e deu-lhe o nome. Dizia a quem com ela se cruzasse, que tinha sido noiva de guerra. Que a arrebatara um Cossaco de Don, e que dele fugia com o filho. O Cossaco, que era apenas um trabalhador do aço de Azovstal, perto Mariupol, sabia da sua loucura, mas tinha disso parte do seu encanto. Muito mais tarde, o mais velho e amolado operário contaria a Ruslan que a mãe morrera numa das suas fugas. Ora dizia fugir de mim ora dos tártaros da Crimeia e da horda de ouro, contou-lhe. Nunca a impedi disso, de voltar ao seu país. E conseguiu-o, morta. Nem da sua campa sei. Ruslan ouvia o pai, mas não sem a sinuca de fingir o interesse. Era um velho maçado e maçante, que tivera um só dia de vida, repetido por mais de mil vezes.
Sem ainda o saber, Ruslan herdara da mãe o ronco, o regougo da fome pela fuga. Mal se viu com todos os dedos do corpo contados, fugiu com os irmãos Gaetano, uma trupe circense triestina. O pequeno grupo contava com cinco trapezistas e três acrobatas, dois palhaços, dois ursos, um anão e um leão chamado Lev Kirill. Com eles, Ruslan correu tanto lugar que não lhes soube muitas vezes o nome, nem para que direcção se apontava para lá chegar. Tinham-no acolhido porque assim pedia aquela vontade tamanha de fugir, e porque mostrara talento a cair de uma cadeira, o que lhe deu logo para ficar como aprendiz de acrobata. Mas do que gostava era de Lev Kirill, que lhe dava uma boca em boquejo para limar as presas, e lambeava-lhe o cabelo quando não chovia o suficiente para o lavar. Ruslan e Lev entendiam-se por não terem casa nem muita história. E deixavam-se enjaular, pensando ter nisso a liberdade que no fundo dá a desambição.
Num crepúsculo em Cluj-Napoca, as altas montanhas dos Cárpatos emergiam no horizonte com as suas caras pardas e de aspecto acidentado. Ali estava um país misterioso, de mitos macabros e seculares, onde o grande urso-pardo vagueava com o peso do descaso pela civilização que ainda crescia longe, anunciada pelos longos rolos brancos com que falava o futuro por sinais de fumo assoprados pelas chaminés, estames pedunculares dos fungos fabris que depressa tudo cobririam.
Lev Kirill bestificava-se pasmado para toda uma promessa de desconhecido. Tinha cravado os olhos nos picos cobertos de pinheiros cinzentos, como se ouvisse um chamamento inaudível a todos excepto a ele. O menino de Azov disparou-sem-puxar-cão, abriu-lhe a jaula e disse que fosse, que respondesse à chamada, que deixasse crescer os dentes para que enfim mordesse. Lev Kirill, a quem nem a grenha crescera por medo, corajou e desapareceu pela primeira linha de faias negras. E parte de Ruslan, aquela que os poetas chamam de alma, partiu com ele, também.
Na manhã seguinte, descoberto o aleive do jovem, deram-lhe todo o caminho por que escolhesse seguir, pouca trolha, pouco nota, e uma roda de solas de empuxo às costas.
Ruslan era dono, agora, de todos os caminhos do mundo, mas de nenhum lugar a que o levassem. Por tempos fez o que se faz nos caminhos: desencaminhou-se. Atirou-se, depois, ao primeiro quefazer, numa cidade igual a tantas, tantas vezes deitada abaixo por czares, mongóis, vikings, e todos os outros que por ela passavam para chegar a outro lugar. Também Ruslan por ali passaria, desmoronando a sua parte. Mal entrou foi-lhe dado a escolher um escombro que pontapear. Aquele muro, ali, apontou-lhe um efebo que não ultrapassava os quinze dedos de idade e os sete palmos de altura, fui eu que deitei ao chão quando aqui cheguei. Mas ao lado, continuou, há um outro mais raso e mais fino. Podes ficar com esse. E se quiseres um ferrete ou um tarugo ou uma chave para não ofender as mãos, distribuem-nos ali. Pagas com o que quiseres, mas tens de dar alguma coisa. Eu dei-lhes a roupa do corpo, e um pouco da alma para não penar o frio.
A Ruslan cheirou-lhe a Solyanka e o nariz guiou-o pelos escombros até ver uma trupe de mascarados sentados em torno de uma chama que segurava a custo uma vasilha onde alguém molhava uma rede com carne fumada, azeitonas velhas e legumes de conserva, como se fosse um saco de tisana numa chávena de água fervente. Reconheceram-se de imediato, pois quem finge sabe de quem finge. Eram actores de estrada, da igualha dos Gaetano, mas sem a bufonaria e os bichos. Fingiam ser outras gentes, e pagavam-lhe por isso. Ruslan encontrara os seus. Por anos a água de Solyanka, o rapaz do Kalmius foi medrando até ser homem, vestindo-se de muitos, usando diferentes vozes e meneios, até ser muito conhecido por todos os países que abraçavam aquela cintura de terra. Escolheu para si um outro nome, um que não dissesse nada de si, nem do pai, nem da mãe, nem dos medronheiros ou do capim-sono e dos bordos negros, nem dos Gaetano ou de Lev Kirill. Mas a glória é engodo para a curiosidade. E houve quem dele procurasse saber tudo. De tamanho a cor original de cabelo, e se óculos usava.
Num dia em que fingia ser o rei daquela ilha de rosas para além do canal do norte, uma pequena rapariga que se ocupara da plateia por dias, pediu-lhe com o dedo o ouvido. Disse que lhe encontrara a mãe. Que estava viva. Tanto quanto ele. E que o esperava há tempos, no estômago de um asilo que a engolira além da fronteira, no grande país. Ruslan, que agora era um outro, estranhou a mentira do pai, e recebeu disso grande consolo, pois isso mudava tudo. Afinal o pai tinha sido interessante. Muito mais interessante, pois quem mente, imagina. O velho e amolado trabalhador do aço de Azovstal, era afinal um contador de histórias, e um fingidor, também.
Ruslan escreveu uma carta de alforria ao asilo, e assinou com o seu nome antigo, para que o reconhecesse a mãe, e dele não pensasse ser um tártaro da Crimeia, ainda atrás das suas virtudes. Do asilo enviaram-lhe a mãe, que atravessou a fronteira com verve de consorte de czar, convertida a ortodoxa, e decidida a trazer o filho perdido para o grande seio da grande mãe. Chegada, abraçou-o como só abraçam as mães. Filho, disse, que fazes neste ermo que é só talão do grande país? Calcanhar do grande corpo. Vem com a mãe, que nos pertences. Teu bisavô era Varegue, serás bem recebido no império. Estes não te são nada. Repara que aqui achana-se. Um pais grande precisa de lugares rasos onde por os pés. Isto para mais não serve. Vem com a mãe.
Ruslan ainda viveu invadido pela loucura da mãe por quase quinhentos dias, servente da grandeza dos seus delírios, feito surdo, manco e vesgo pela alienação da grande senhora do grande país. Num dia sem estação, acordou cedo e emprestou os cotovelos à janela virada a sul. Do canto à sua esquerda viu rasgar o primeiro sol. Mais não fez nesse dia senão seguir-lhe o rasto pelo céu de aço azul, de azurita, até olhar à direita e vê-lo de turmalina e abotoado na casa do ocidente. Por tempos negros lembrou-se de Lev Kirill e de como olhava para os pinheiros. Sentiu os caninos com os dedos até ser manhã, levantou-se com um rugido, e fugiu com o sol, seguindo-lhe a direcção. Levou consigo o nome que escolhera. Algumas roupas da trupe. E toda a alma que lhe restava. A mãe, abandonada aos escombros da velha cidade, não teria escolha senão voltar ao asilo no estômago do grande país, engolida pela ilusão.
III.
A pequena alma, detrás do balcão, não fugira para a sua concha. O renque de esperas ali ficara, varado a ouvir-me. E toda a orquestra, da primeiro violino ao homem do carrilhão, juntara-se-nos. Também as bailarinas, com os calcanhares no chão. Todos ouviam Amis Kopf, fingidor, contador de histórias, fraco domador de leões, exímio acrobata de cadeira e, para todos os efeitos, eu mesmo.
Caracóis somos todos, disse então, mas até um caracol pode acreditar ser leão, e morder a vida como quiser. E eu, sou o maior caracol.
A pequena alma, talvez agora um pouco maior, acenou que entrasse. Todos entraram, também. Não houve mais afinação. E senti-me em casa, até ao rasgar do primeiro sol.