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A partir da obra de Talcott Parsons - Primeira Parte
Por Maria Toscano Publicado em Ciências Sociais, Portugal, Sociologia a 26 de Fevereiro, 2023 2441 palavras
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TOSCANO, M.ª de Fátima

Da ‘pobreza’ voluntária à hiper-socializada? — uma interpretação sociológica das identidades sociais de mulheres ‘pobres’ a partir da obra de Talcott Parsons, I.ª parte

Introdução: Sociologia, identidades e mulheres socialmente desqualificadas

Uma Sociologia das Identidades, é posssível ? — perguntava Suzie Guth, em 1994, nessa obra marcante para a sociologia compreensiva da ‘exclusão social’. Hoje, volvidas 3 décadas, vários estudos e perspectivas consolidaram a problematização e a análise sociológicas das identidades sociais. Pelo que a questão de que este texto parte é outra: como tem a Sociologia das Identidades contribuído para o conhecimento sociológico de fenómenos sociais designados por pobreza e desqua-lificação[i] sociais? Na análise que aqui se apresenta partimos de 4 postulados:

1. O presente texto ancora-se no entendimento sociológico da ‘pobreza’ e da desqualificação como experiências sociais (Dubet 1996). Considera-as, pois, vivências sócio-históricas, em contextos amplos e situações particulares, temporalizadas e circunstancializadas, como ensinou Dubar (2006, 1995, 1994, 1993 e 1992).

2. Na linha de abordagem que temos vindo a trabalhar (Toscano 1993, 2002, 2006, 2010, 2015a, 2015b, 2017) alargou-se o princípio sociológico da contextualização: desde a análise ‘da pobreza’ e da desqualificação social abriu-se à observação dos trajectos sócio-biográficos, de modo a atentar na eventual requalificação dos actores, ditos pobres, em sujeitos sociais.[ii]

Assim, assumimos o princípio de que conhecer sociologicamente é conhecer como os actores sociais se vão contextualizando, des-contextualizando, re-contextualizando e situando socialmente. Noutras palavras, parte-se da formulação ‘pela positiva’ —como se sai da pobreza ?— para reorientar um ângulo de observação que se nos afigura ser uma ‘formulação pela negativa’, ao fechar-se na observação ‘dos problemas’, p. exº: o que é a pobreza ? quem/como são os pobres ?.

3. Adoptando o princípio de que conhecer sociologicamente é conhecer o trabalho de acção por actores contextualizados e situados, temos privilegiado a análise dos quotidianos de desqualificação e requalificação sócio-identária de mulheres, ao invés do vazio social das primeiras perspectivas de identidade social (Amâncio 1993 e 1995).

Tenha-se também presente que a análise das noções de identidade contidas nas propostas sociológicas começou a ser sinalizada no período formativo da Sociologia. Instituindo-se esta como o novo saber, propondo um outro olhar sobre a relação indi-víduo-sociedade[iii], não conseguiria, como é sabido, superar cabalmente a abordagem dicotómica da mesma relação. Recordem-se as marcas desta concepção: i) quer nos sociólogos fundadores (Marx, Durkheim, Weber), de que as leituras clássicas de Durkheim e de Marx se revelam exemplos teóricos paradigmáticos, simultaneamente imbuídos e potenciadores daquela racionalidade dicotómica; ii) quer em sociólogos posteriores, de entre os quais tomamos Parsons para a presente reflexão sobre as suas divergentes conceptualizações da relação actor-sociedade: a da Acção e a do Sistema.

4. Entre os princípios fundadores da sociologia compreensiva e interpretativa, ressaltamos um: ‘não há idiotas sociais’, o qual implica valorizar, para além dos contextos e das margens de condicionamento da acção social, as diversificadas competências criativas que os actores podem accionar, a saber: i) jogos culturais entre papéis e respectivas leituras, interaccionais (Goffman 1959, 1963 e 1987); ii) capitais múltiplos (Bourdieu 1964, 1968, 1972, 1979, 1980 e 1993); iii) recursos de tipos e proveniências diferentes (Townsend 1979); ou iv) lógicas de acção complexas (Dubet 1996). E implica ainda valorizar o conhecimento das potencialidades desses actores para elegerem (conscientemente, ou não) distintas estratégias e tácticas identitárias[iv] ante a desqualificação dos ‘territórios sócio-identitários’ (Toscano 2010).

Na leitura que se passa a apresentar, expoem-se as formulações centrais de Parsons para, daí, inferirmos contributos e discutirmos vectores de análise — latentes e manifestos — que podem integrar (potenciar ou limitar) a abordagem sociológica dos processos de requalificação sócio-identitária de mulheres.

A curiosíssima e dupla proposta parsoneana vai comungar dos determinismos norma-tivos-prescritivos das primeiras análises das identidades — com o volte-face de Parsons, ao abandonar a Teoria Voluntarista pela do Sistema da Acção. Com efeito, na sua obra, a funcionalidade da estratificação da sociedade liberal americana acabaria por justificar, ‘estruturo-funcionalmente’, as desiguais socializações e interiorizações culturais, de que os papéis-estatutos da classe média americana são o expoente (Dubet 1996: 31 e ss.). Está ainda subjacente à sua produção — ao abandonar a focalização no trabalho da acção — uma visão sociocêntrica do sistema social, se bem que com argumentos distintos, como se escreve já a seguir.

I. Parsons, o último dos sociólogos clássicos

O legado de Talcott Parsons (1902 †1980) é considerado como a obra do último dos clássicos. Americano entusiasta do modelo liberal americano, deu um valioso contributo na aplicação da Análise Sistémica à sociedade e às ciências sociais[v]. Foi também o expoente e criador da grande corrente estruturo-funcionalista[vi] na Socio-logia. Mas, sobretudo, deve salientar-se que, para além de ter construído uma obra extensíssima, esta consistiu na produção, não de uma mas, de duas complexas Teorias Sociológicas (Dawe 1988): a Teoria Voluntarista da Acção, em 1937[vii]; e a posterior Teoria do Sistema Social[viii].

T. Parsons começa a sua obra por elaborar uma revisão crítica da tradição sociológica de análise da acção social — centrando-se nos contributos de Weber, Marshal, Pareto e Durkheim. Dessa revisão, realça que tal tradição assenta num esquema dicotómico que baptiza de dualismo positivista-idealista. Trata-se, segundo Parsons, a) por um lado, da análise por sociólogos que sobrevalorizam os elementos normativos e a acção humana como um processo adaptativo, defendendo que o actor deve adequar-se de modo passivo à realidade social e aos padrões pré-existentes; e, b) por outro lado, de autores idealistas que, ao sobrevalorizarem os componentes ideais da acção, rebatem os postulados dos primeiros. Mas, no seu percurso, Parsons, paradoxalmente, refor-çará a perspectiva exterior-coerciva da socialização e da prescrição identitárias — motivo para se abordarem atentamente ambas as Teorias.

II. Identidades Sociais, Racionais e Voluntárias:

gerir a Tensão Herdado/Desejado

Com a Teoria Voluntarista da Acção Parsons visa re-situar a relação meio-fim e a racionalidade no comportamento social (Almaraz 1981; Dubet 1996: 31).

De forma global, o sociólogo defende que a acção social não é exclusivamente i) nem a adaptação a acções objectivas e exteriormente delineáveis; ii) nem a exclusiva mani-festação de ideais, intenções, valores e sentido subjectivo dos actores sociais. Quanto à visão de actor social da Teoria Voluntarista da Acção, revela afinidades genéricas com a abordagem do Controle Social, especificamente ao sublinhar a racionalidade e o voluntarismo do indivíduo social, como se passa a analisar.

II. 1. Actor, condicionantes e intencionalidade da acção

Para Parsons o actor é optimista, racional e criativo-construtivo; pelo que valoriza a capacidade daquele transformar a vida social pela sua acção (Martindale 1979). Com efeito, para o sociólogo da Teoria Voluntarista, o comportamento social é simultanea-mente condicionado e orientado para fins; porém, considera que estes só são atingidos quando o actor escolhe os meios mais adequados. É que a acção humana, segundo Parsons, relaciona os condicionantes da acção, quer dizer, a intencionalidade do actor e o meio. Por condicionantes da acção designa a realidade, os elementos objectivos; quanto à intencionalidade do actor, aborda-a na sua relação com outros e com o meio. Assim, a realidade engloba as condições nas quais agimos, o contexto e os nossos papéis, intenções e orientações.

Para evidenciar a criatividade do actor social, o sociólogo salienta-lhe a capacidade de adequação dinâmica às condições da acção. Parsons entende que, embora estas condições sejam previamente dadas, o actor é capaz de as transformar quando se orienta pelos seus valores como pela sua atribuição de significados. Donde, na Teoria Voluntarista da Acção só há acção social porque o actor confere significados a deter-minada realidade objectiva.

Actor, situação, condições e intencionalidade da acção: eis os ingredientes basilares da proposta parsoneana das identidades, voluntariamente afirmadas na realidade social.

Face a esta concepção de actor, fundada na aliança da subjectividade com a racionalidade, como operacionaliza Parsons tal aliança?

II. 2. Novo sistema de acção e actor racionalmente subjectivo

Na Teoria Voluntarista da Acção o sociólogo interroga-se quanto aos elementos presentes em todos os comportamentos sociais, elegendo como âmbito de análise o ‘unict act’ ou a ‘mínima unidade fenomenológica da acção’ (Almaraz 1981: 561).

O seu propósito é identificar, de entre os componentes de cada um desses comporta-mentos sociais elementares, os que possam ser generalizados a todos os comporta-mentos sociais, ao que chama de novo sistema generalizado da acção. Tais elementos, segundo T. Parsons, são quatro — herança-meio ambiente; meios-fins; valores últimos e esforço[ix]. E englobam, em profunda inter-relação sistémica, i) quer os elementos condicionais: objectivos, ou condições últimas da acção (herança e meio-ambiente); ii) quer os elementos normativos ou fins últimos que presidem à acção mas não se realizam de modo automático.

Pelo que a acção social, na teoria voluntarista de Parsons, é um estado de tensão relacional entre os elementos condicionais e os elementos normativos, embora defenda que os elementos normativos só se realizam em virtude da actividade do actor. Assim, a sociologia voluntarista apenas examina aqueles elementos nas suas relações com a acção, pois não os considera elementos normativos em si mesmos. (1981: 153 e 161).

Os condicionamentos da acção e as intenções do actor configuram um sector inter-médio meio-fim que, por sua vez, é articulado pelo voluntarismo, ou esforço, do actor. Este, por ser criativo, não é estritamente adaptativo pois consegue gerir a tensão existente entre as situações previamente dadas e as suas intenções de transformar ou superar esses condicionalismos. E consegue-o porque o actor da Teoria Voluntarista da Acção é capaz de recriar as situações inicias, pois é dotado de racionalidade para escolher os meios adequados aos fins visados.

Então, segundo o sociólogo Parsons da Teoria Voluntarista da Acção, a racionalidade é intrínseca à acção social porque o actor tem competências para, perante situações previamente dadas, escolher os meios adequados para realizar os fins.

Pode extrapolar-se para a nossa problemática que as identidades-em processos de des-qualificação e de requalificação sociais seriam entendidas, pela Teoria Voluntarista da Acção, como a constante gestão, pelo esforço dos actores-sujeitos, entre

i) os componentes desqualificadores anteriores-exteriores e histórico-envolventes

e

ii) as suas volições, desejos e necessidades de requalificação social.

Uma vez que Talcott Parsons enraiza o carácter criativo da acção no elemento esforço que o actor orienta criativamente para as normas comuns, ainda pode aventar-se: para a Teoria Voluntarista da Acção, (os)-as (sujeitos)-mulheres em processos de requalifi-cação social seriam actores exemplares?

Na continuação do seu trabalho, Parsons confronta-se com dois pré-requisitos funcio-nais ao nível social: a ordem social e a adequação entre a motivação para agir e a optimização da satisfação almejada.

Nessa análise, vai abandonar definitivamente a concepção de acção social como ‘una clase de unidad atomica, de la que las sociedades están compuestas’, passando a tratar ‘a la acción misma como sistema.’ (Martindale 1979: 569). É o que veremos na II.ª Parte deste texto.

Referências da I.ª Parte

Almaraz, José.1981.La Teoría Sociológica de Talcott Parsons. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas.

Demazière, Didier.1999. ‘Les logiques de recherche d’emploi entre activités professionnelles et activités domestiques». Cahiers du Genre – Un continent noir: le travail féminin. Coordonné par Jacqueline Heinen et Danièle Kergoat. n.º 26.

— e Dubar, Claude.1997. Analyser les Entretiens Biographiques. L’exemple des récits d’insértion.Paris: Nathan.

Cazeneuve, Jean.1995.La Personne et la Société. Paris: PUF.

Dawe, Alan.1988 [1978]. ‘Teorias de Acção Social. In Historia del análisis

sociológico. Tom Bottomore e Robert Nisbet (comp.). Buenos Aires: Amorrortu editores.

Dubar, Claude.1991. La socialisation. Construction des identités sociales et profes-sionnelles. Paris: Armand Colin.

Durand, Jean-Pierre; Weil, Robert (dir.).1993. Sociologie contemporaine. Paris: Vigot.

Ferreira, J. M. Carvalho et al.1995. Sociologia. Lisboa: Editora McGrawHill de Portugal.

Herpin, Nicolas. 1982 [1973]. A Sociologia Americana. Escolas. Problemáticas e Práticas. Porto: Afrontamento.

Lipiansky, Edmond Marc; Taboada-Léonetti, Isabelle; Vasquez, Ana. 1990. ‘Intro-duction à la problématique de l’identité’. In Stratégies Identitaires. Camilleri et al. Paris: PUF: 7-26.

Martindale, Don. 1979 [1960]. La Teoria Sociológica − Naturaleza y Escuelas. Madrid: Aguilar.

Paugam, Serge.1994 [1991]. La disqualification sociale. Essai sur la nouvelle pauvreté. Paris: PUF.

—  1991. ‘Les Statuts de la pauvreté assistée’. Revue Française de Sociologie. Touraine, Alain. 1992            . Critique de la Modernité. Paris: Fayard.

— 1976. Em defesa da Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

— 1998 [1978]. Iguais e Diferentes. Poderemos viver juntos? Lisboa: Instituto

Piaget.

— 2005. Un nouveau paradigme. Pour comprendre le monde d’aujourdh’hui. Paris: Fayard.

— 1984. Le retour de l’Acteur. Essai de Sociologie. Paris: Fayard.

—  1965. Sociologie de l’Action. Paris: Ed. du Seuil.

— 1978. La Voix et le Regard. Paris: Ed. du Seuil.


[i] Cf. a abordagem formulada e desenvolvida por Serge Paugam 1994 [1991] .

[ii] Recomendam-se contributos de autores como Demazière 1999; Demazière e Dubar 1997; Paugam 1994 e 1991; e Touraine 1965, 1976, 1978, 1984, 1992, 1998 e 2005.

[iii] Refira-se ainda outra distinção entre indivíduo — unidade indivisível — e pessoa — indivíduo humano no sentido mais lato, manifestação visível do indivíduo pelo desempenho de papéis sociais (Cazeneuve 1995: 11).

[iv] Ver, por exemplo, os contributos de Lipiansky, Taboada-Léonetti e Vasquez 1990.

[v] Cf. Durand e Weil 1993; 83 e ss. Da vasta bibliografia analítica de Parsons, veras sistematizações de Ferreira, et al. 1995: Capítulo 7.

[vi] O funcionalismo absoluto/radical foi formulado pela antropologia cultural anglo-saxónica: Malinowski — desde 1884 — e Radcliffe-Brown, desde 1881. Sobre o funcionalismo mitigado de Merton, ver, entre outros: Almaraz 1981; Martindale 1979; Durand e Weil 1993: 88 e ss.; Ferreira, et al. 1995: 237-29; Dubar 1991: 56 e ss. e Dawe 1980: 523-546.

[vii] Formulada na sua obra, The Structure of Social Action.

[viii] Esta outra produção é saliente no seu livro The Social System (1951), como nas suas posteriores obras conjuntas: com Bales e Shils, em 1953, e com Shils e Kluchohn, em 1957.

[ix] Ver paralelismo desta análise com a doutrina aristotélica das quatro causas – substância, matéria, fonte da matéria e finalidade/bem – por Martindale (1979: 496); e, num outro contexto, por Nicolas Herpin (1982: 48).


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