TOSCANO, M.ª de Fátima
Da ‘pobreza’ voluntária à hiper-socializada? — uma interpretação sociológica das identidades sociais de mulheres ‘pobres’ a partir da obra de Talcott Parsons, II.ª parte
III. Hiper-socialização culturalista?
Na sequência do trabalho com Shils, Bales e outros colaboradores, Parsons reformula a perspectiva e a noção de Acção Social na abordagem do Sistema de Acção Social.[i]
Para tal, define o sistema pela pluralidade de pessoas em interacção, e postula que o mesmo necessita que uma proporção suficiente dos seus membros desempenhe os papéis essenciais, com um nível adequado de eficácia[ii]. Aprofundando os problemas funcionais de Bales[iii], Parsons evidencia que a organização do Sistema de Acção tende para a satisfação óptima, a qual pressupõe renunciar a outras satisfações. Já em colaboração com Shils, Parsons selecciona as 5 variáveis-modelo ou padrão, i.e., os dilemas que caracterizam a orientação valorativa da acção: afectividade/neutralidade afectiva; auto-orientação/orientação colectiva; universalismo/particularismo; ads-crição/desempenho e, por fim, especificidade da acção/acção difusa.
III. 1. Um espaço de acção estruturo-funcional
Destes adquiridos resulta a concepção parsoniana do espaço da acção, fundamento duma teoria sobre a motivação e problemas concernentes que não cabe aqui aprofundar. Mas repare-se que as ‘pattern variables’ denotam que, para fundamentar o seu modelo estruturo-funcional, o autor passa a interessar-se pela relação real entre o indivíduo (psicológico) e o (condicionamento) social[iv]. Porém, Parsons também passa a considerar que a acção social, para além de integrar desejos (símbolos expressivos e motores da satisfação), ainda abrange ideias e valores-normas. As ideias designam o conhecimento e garantem a orientação cognitiva da acção; por sua vez, os valores e as normas permitem a orientação avaliativa-valorativa da acção ao viabilizar a apreciação, a interpretação e a hierarquização dos objectos de desejo. Deste modo, o Sistema de Acção consegue ‘integrar os elementos motivadores e simbólicos num sistema instrumental, estruturado’, claramente, normativo (Dubet 1996: 43).
Este é o testemunho da convergência (e da dívida) do autor para com a via da socio-logia durkheimiana (Durand 1993). Daqui, até à concepção ‘hiper-socializadora’, vai um pequeno passo.[v]
Na verdade, na Teoria do Sistema Social, a ordenação normativa da satisfação de necessidades é o fulcro da dinâmica dos sistemas sociais. Agora, a capacidade de adequação normativa dos actores — a ideias e crenças (e, necessariamente, aos papéis) socialmente esperados — passa a ser entendida como decisiva na estruturação funcional desses sistemas.
Como funcionam, nesta Teoria do Sistema, os mecanismos de adaptação-integração dos actores às expectativas sociais? E como se processa a estabilização dos padrões sociais num sistema que é, por definição sistémica, dinâmico?
III. 2. Da adaptação socializada à socialização, precoce, da adaptação
Para responder a tais problemas, Parsons centra-se primeiro na concepção dos 4 Sub-sistemas de um Sistema Geral da Acção que, depois, transpõe para o estudo, daqueles, no macro sistema social.
Os 4 Sub-sistemas, articulados de modo funcional e hierárquico, são a Moral, o Direito, a Política e a Economia. Quando o autor os transpõe para a sociedade-objecto sociológico, designa-os, respectivamente, por Sub-sistemas Cultural, Social, Psíquico ou da Personalidade e Sub-sistema Biológico.[vi]
O Sub-sistema Cultural (a Moral do Sistema Geral da Acção) é relativo aos sistemas simbólicos e à produção dos valores, dos conhecimentos e das ideologias; é, por isso, o Sub-sistema mais rico em informação no Sistema geral. Corresponde, nos Sistemas Sociais, ao Sub-sistema determinante da acção porque regula a manutenção dos modelos culturais ao desenhar, de modo prescritivo, o quadro normativo integrador de uma sociedade. Em consequência, este quadro normativo estrutura e confere a identidade social aos actores sociais, uma vez que é este Sub-sistema Cultural que configura o quadro de formação e desempenho dos papéis sociais, pois baliza os comportamentos esperados e tidos como correctos socialmente.
A função de integração interna do Sistema Geral é garantida, ao nível da organização social, pelo sub-sistema da diferenciação dos estatutos-papéis ou Sub-sistema Social da interacção entre os actores (transposição do Direito do Sistema Geral da Acção).
Para o sociólogo, quanto mais claros, coesos e coerentes entre si estiverem os grandes orientadores normativos numa organização social (Sub-sistema Cultural), mais clara é a prescrição social de papéis e trajectórias sociais; logo, mais facilmente os actores interiorizam e se orientam para essas expectativas sociais, tendendo a adequar-se aos papéis institucionalizados. Nesta ordem de ideias, quanto mais se adequar o desempenho dos actores aos papéis previstos-prescritos, maiores serão os seus estatuto e prestígio sociais: o seu reconhecimento social. Esse Sub-sistema Social consagra (pelo Direito[vii] ) as normas da participação do actor, pois ‘o sistema é superior às suas unidades’. O que significa que, ao postular na Teoria do Sistema Social que ‘a colectividade’ (unidade composta) ‘se sobrepõe ao actor individual’, Parsons constitui a adequação normativa de ideias e crenças como o aspecto decisivo dos estatutos-papéis (Martindale 1979: 571).
Corolário deste enfoque? Só mesmo a redefinição do lugar do actor no Sistema de Acção: ‘la unidad propia del sistema social es el estatuto-papel más que el actor o la acción’ (1979: 570).
Em consequência, os actores-participantes-construtivos nas expectativas sociais são actores-adequados-estatuto-papel porque, se quanto mais reconhecidos socialmente, mais gratificados psicologicamente (gratificação individual-particular). E a gratifi-cação proporciona a consecução dos fins definidores quer dos objectivos colectivos, quer dos fins particulares da acção, que é a função específica do Sub-sistema Psíquico ou da Personalidade. Para Parsons, esta terceira função do Sistema Geral da Acção opera na organização social ao nível da Política[viii].
Com maior gratificação social e melhor bem-estar do indivíduo no Sistema Social, a acção humana tende, ao nível da conduta, para a adaptação. Entramos, assim, na última transposição das funções do Sistema Geral da Acção, a quarta: a Economia. Para Parsons, a melhoria adaptativa às condicionantes externas, não sociais, é garan-tida pelo Sub-sistema do Organismo da conduta ou sistema neuro-fisiológico. Este, sendo o Sub-sistema mais pobre em informação é, em contrapartida, o produtor e garante da energia específica para a acção. Daí que, segundo o autor, o Sub-sistema do Organismo da conduta seja mediado por relações económicas específicas[ix] e se manifeste no Sistema Social sistémico através, precisamente, da Economia. Pelo que, esta, consiste na relação entre maior gratificação e condicionamento, garantindo desta forma a gestão adaptativa dos recursos.
Em síntese, obtém-se: a manutenção Latente dos padrões, por coesão dos padrões sociais, condiciona a Integração social ou adequação dos actores aos estatutos-papéis prescritos. Esta integração permitirá a Gratificação, quer dizer, a estabilidade psico-lógica e satisfação individual que é, por seu turno, a base da Adaptação (comporta-mento adequado e ordeiro). Por sua vez, e por efeito de feed-back, o comportamento adaptativo reforça a manutenção Latente dos padrões sociais.
Eis como os 4 Sub-sistemas do sistema AGIL de Parsons são estruturo-funcional-mente interdependentes[x].
O mesmo sistema AGIL ainda congrega 4 funções estruturais da socialização e da construção da identidade dos sujeitos sociais.[xi] Com efeito, para dar conta ‘des conditions dans lesquelles l’individu peut être “requis, induit, contraint ou motivé à participer à la vie sociale”.’ [xii], Parsons situa o processo socializador ao longo de 4 fases (fortemente inspiradas na teoria genética de Freud), que correspondem às funções assinaladas no sistema AGIL. Sistematizando essas 4 fases, temos:
1) fase da crise oral (primeira crise da biografia individual – identificação primária[xiii] e diferenciação filho-bébé/mãe: mother-child-identity): consiste no período em que a estabilidade normativa (L) é determinante para superar a crise da adolescência e para a adaptação adulta, pela socialização precoce (Dubar 1991, 55);
2) fase edipiana (primeiro alargamento do mundo social, a par da diferenciação por sexo: sex-role identification): nesta fase previne-se a integração (I) do indi-víduo, enquanto ser sexuado, no sistema social e, especificamente, na divisão sexual dos papéis sociais;
3) fase da latência (reconhecimento da família como primeiro sistema social global consolidando, na personalidade social do jovem, os 4 papéis sociais familiares: mãe, pai, rapaz e rapariga: latency-child society): caracteriza-se pela primeira passagem à categoria universalista e pela adesão a normas imparciais mais gerais, a par da interiorização de outros papéis sociais. Complexifica-se o jogo da gratificação imediata (G) própria dos papéis familiares, a que agora se juntam os escolares e os de amizade-companheirismo – que se orientam pela lógica da gratificação pelo desinteresse. Finalmente,
4) fase da maturidade em que desemboca a resolução da crise da adolescência (reconhecimento e afirmação da pertença adulta a grupos universalistas, supe-rando o particularismo do quadro familiar): trata-se do termo do processo socia-lizador, o momento em que o indivíduo atinge a plena capacidade de reconstruir a sua adaptação social (A). Ou seja, a fase em que o indivíduo concretiza as suas competências de adaptação institucional e de manipulação das sanções e das normas sociais aos móbiles, socialmente legítimos, da sua acção.
Na Teoria do Sistema Social evidencia-se a sobrevalorização dos elementos institu-cionais[xiv] e socializadores-interiorizadores (lembre-se: ‘a unidade do próprio sistema social é o estatuto-papel’).
O percurso do autor culmina quando resume à Ordem Social os pré-requisitos funcio-nais do Sistema. Mas como a institucionalização (estatuto-papel) consiste na ‘inte-gração de elementos da personalidade e do sistema cultural’ Parsons não define explicitamente a Ordem Social — a socialização dos comportamentos funcionais — como sendo a causa da vida colectiva (Almaraz 1981: 562).[xv] Contudo, a ausência de uma explícita ‘propriedade causal’[xvi] não iliba Parsons, a nosso ver, de duas justas críticas: 1.ª – a de formular um modelo de normatividade moral; 2.ª – a de conceptua-lizar ‘a mudança social (…) como inevitavelmente patológica.’.
Fiel ao problema hobbesiano (coesão e competição sociais: são conciliáveis?), parece que Parsons resolve o paradoxo social pela regra comum do tipo ‘se não os vences, junta-te a eles’ — como corrobora Dubar: ‘Le paradoxe de Hobbes (…) est ainsi résolu: on ne fait pas la guerre à ses semblables, on s’identifie à eux.’. (1991: 55).
Transladando esta solução para os/as sujeitos-mulheres-em processos de desqualifi-cação e requalificação sociais, dir-se-ia que o sistema social não deve apenas empe-nhar-se em minorar a distância entre ‘pobres’ e ‘não-pobres’. O sistema social deve sim, e sobretudo, promover processos de ‘re-inclusão’ ou padronização social dos actores diferentes. Exemplo desses actores diferentes podem ser os-ditos-pobres, as mulheres, ou as mulheres-ditas-pobres.
Reflexões Finais
Indesejado nesta formulação, o conflito de interesses e poderes é central nas propostas de sociólogos — quer clássicos, quer posteriores — as quais, porém, extravasam o âmbito deste texto.
Actual, persiste o facto de continuar em aberto — e de ser problemática — a concep-tualização da acção, do actor-sujeito e da mudança sociais, de que as abordagens da ‘pobreza’ e da desqualificação-requalificação sócio-identitária tanto usufruem como têm vindo a contribuir.
Centralidade da acção; esforço racional, reflexividade, subjectividade e intersubjecti-vidade dos sujeitos — emergem, desde a Teoria Voluntarista da Acção (entre outras), como utensílios teóricos férteis (entre outros) para as perspectivas que pretendam aprofundar o conhecimento das vivências sócio-identitárias exemplares de processos de requalificação social.
Como também são férteis, para o estudo dos padrões de inclusão, alguns utensílios teóricos da Teoria do Sistema Social, de que se destaca, nomeadamente, a dificuldade que temos em reinterpretar e reconstruir, na modernidade tardia, sub-sistemas socialmente cons-truídos na modernidade: a Moral, o Direito, a Política e a Economia.
O trabalho científico reafirma, assim, as suas distância e liberdade face à ‘achologia’ de café ou dos media. Esta, tranquilizará conversas entre pares, pois legitima qualquer opinião e, seguramente, as mais dominantes. Aquele, ao invés, instiga-nos à reflexão e ao questionamento fundamentados; e sobrevive — independentemente do acordo ou desacordo pessoais; e indiferente à sua popularidade ou impopularidade. Sobrevive o trabalho científico — dizíamos, com Karl Popper — como o próprio conhecimento científico, até ao momento em que outras focalizações e conceptualizações, emergentes da realidade, se afirmem mais adequadas para analisar e traduzir, interpre-tativamente, o mundo, mutável, em que continuamos a viver neste século posterior ao da Obra de Parsons.
Referências da II.ª Parte
Almaraz, José.1981. La Teoría Sociológica de Talcott Parsons. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas.
Dubar, Claude. 1991. La socialisation. Construction des identités sociales et professionnelles. Paris: Armand Colin.
Durand, Jean-Pierre; Weil, Robert (dir.).1993. Sociologie contemporaine. Paris: Vigot.
Dubet, François 1996 [1994]. Sociologia da Experiência. Lx: Instituto Piaget.
Ferreira, J. M. Carvalho et al.1995. Sociologia. Lisboa: Editora McGrawHill de Portugal.
Martindale, Don. 1979 [1960]. La Teoria Sociológica − Naturaleza y Escuelas. Madrid: Aguilar.
Touraine, Alain. 1992. Critique de la Modernité. Paris: Fayard.
[i] Para desenvolvimentos, cf. Ferreira et al. 1995: 226 e ss.; Durand et al. 1993: 96 e ss. Martindale 1979: 572 e ss; e Touraine 1992: 33.
[ii] Parsons cit. in Martindale 1979: 368. Cf. também a crítica de Dubet 1996: 31 e ss.
[iii] Cf. Martindale 1979: 582 e ss.
[iv] François Borricaud crítica Parsons por privilegiar uma análise do indíviduo-pessoa singular no meio social, em detrimento do estudo sociológico da relação actor-sociedade. Desta crítica discordam Durand et al. (1993: 104-105). Já para Almaraz (1981: 562), apesar de, na obra de Parsons, predominar o ‘psicológico na fundamentação do modelo’ globalmente, entende que o esquema (AGIL) da acção está ‘despojado de subjectivismo e psicologismo’ e é ‘concebido como instrumento objectivo de decom-posição e ordenação do real’ (1981, 563).
[v] Classificação por Dennis Wrong 1961, cit. in Dubet 1996: 63; como e Ferreira et al. 1995: 231; e também em Dubar 1991: 53 e ss.
[vi] Cf. Almaraz 1981: 561 e ss.; Martindale 1979: 569 e ss.; Dubar 1991:46 e ss.; Ferreira et al. 1995: 227-230 e Durand e Weil 1993: 97 e ss.
[vii] Neste Sub-sistema é o Direito que afiança a lealdade das comunidades e a atribuição de prestígio e influência sociais.
[viii] Entendida esta, por Parsons, como os constrangimentos e coerção necessários à ordenação de uma sociedade diferenciada.
[ix] Tais relações podem ser, segundo Parsons: contratuais, de troca, de repartição, e de diferenciação social dos papéis profissionais.
[x] O esquema AGIL (LIGA para não anglófonos) é considerado pelos analistas de Parsons um salto considerável da sua produção. Para o próprio Martindale, o esquema ‘assume formalmente’ a relação meio-fim, o vector temporal e a hierarquia de con-trole. E o mesmo considera que Parsons assume estes componentes i) inicialmente, por dedução fenomenológica; ii) mais tarde, retraduzindo-os psicossociologicamente; e iii) por culminar, ‘definitivamente, e de modo naturalista’, nesta formulação do esquema AGIL. Cf. ainda convergência dos conteúdos do esquema AGIL com os da biologia, da genética, da cibernética e da teorias da informação (1979: 563).
[xi] Referimo-nos à obra conjunta de Parsons em col. – com Bale, R. F; Zelditch, M; Olds, J; e Slater, P. – de 1955, Family, Socialization and Interaction Process. Glencoe: The Free Press.
[xii] Cit. In Dubar 1991: 54. Cf. ainda Dubet 1996: 35; e Martindale 1979: 580 e ss.
[xiii] Salientando a centralidade do papel socializador da mãe, Parsons também considera como modelos de socialização o pai e os outros actores sociais que possibilitam que o bebé aprenda o permitido e o interdito, mediante sanções e permissões orientadas como resposta aos actos daquele.
[xiv] Sobre os tipos de diferenciação dos papéis sociais e de institucionalização(relacio-nal, reguladora e cultural) cf. Martindale 1979: 571-572.
[xv] Relacionada com esta temática, veja-se a reflexão de Dubet (1996), quanto à necessidade de conciliar Max Weber e Émile Durkheim.
[xvi] Durand et al. (1993: 102-103) mencionam estas considerações de Guy Rocher.