O MUNDO DE ROBERT NOZICK
Maria João Cabrita
Universidade da Beira Interior
Se quiséssemos definir o mundo de Robert Nozick em poucas palavras, poderíamos rotulá-lo de “melhor dos mundos possíveis” ou “estrutura das utopias”, tomando de empréstimo o conceito por ele desenvolvido na IIIª parte de Anarchy, State, and Utopie (1974) – obra de filosofia política que o catapultou ao palco dos filósofos mais ilustres do séc. XX. Como nela acentuado, é impensável que pessoas tão distintas como Wittgenstein, Elizabeth Taylor, Buda, Sócrates e Emma Goldman, entre muitas outras, tenham confluído para um único género de vida como o melhor, uma única sociedade como a melhor e, ainda mais incrível, é a ideia de que sejamos capazes de descrevê-la. A utopia é, neste sentido, uma meta-utopia, o espaço de ensaio de experiências utópicas – «uma estrutura das utopias, um lugar onde as pessoas são livres de se unir voluntariamente para prosseguirem e tentar realizar a sua própria visão de uma vida boa numa comunidade ideal, mas onde ninguém pode impor a sua própria visão utópica aos outros» (1). O mundo de Nozick é, assim, caracteristicamente pluralista e nele é ilícito proibir alguém de prostituir-se ou de traficar droga, pela simples razão de que uma vida moral requer a possibilidade de escolha livre. É por razões morais, pelo dano que possamos causar a nós e aos outros, que escolhemos não fazê-lo, não por impedimento legal – “a existência da lei não nos impede de comportamo-nos moralmente” (2). Trata-se, assim, de um mundo em que cada qual pode viver no encalce da sua concepção de vida boa, desde que compense devidamente a quem lese na sua concretização. É um mundo moralmente assente numa visão hiperoptimista da natureza humana, assente na crença de que tendencialmente somos bons e capazes de reconhecer e tratar o outro como um fim em-si-mesmo; e politicamente, paradigmático da via liberal libertária. Construído à imagem de uma filosofia não-coerciva que tem por desígnio abrir vias sobre os mais variados temas no âmbito dos diversos domínios, e não dizer a última palavra. Retenhamo-nos no autor deste mundo, cujo percurso intelectual – na categorização de Isaiah Berlin que eternizou o fragmento do poeta grego Arquíloco, “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa importante” – revela a astúcia de uma raposa (3) e a compreensão da filosofia como mais do que mero pensamento, um modo de vida por ele infundido e transformado (4). Descendente de uma família judia russa, Robert Nozick nasceu em 1938, num dos bairros mais carismáticos de Nova Iorque, Brooklyn. No ambiente deste bairro, o jovem Nozick interpelou pregadores e oradores de rua com questões tão inócuas que incómodas e indiciantes de uma inquietação a posteriori espicaçada pela leitura dos diálogos da República de Platão (5) e, muito especialmente, pela douta ignorância socrática – como confessaria no apogeu da sua carreira filosófica, “quando penso “no” filósofo, penso em Sócrates” (6) . Terminado o Liceu numa escola pública, com 18 anos ingressou na Universidade de Columbia, onde se licenciou em filosofia (1959). Nesta instituição universitária, onde imperava a filosofia das ciências, foi conduzido a questões sobre as explicações científicas, a lógica indutiva e o suporte das teorias científicas (7); e iniciado por Sidney Morgenbesser (1921- 2004), reputado especialista em pensamento social e político do séc. XX, nas teorias da decisão. Ideologicamente, integrado num contexto estudantil que acolhia ideólogos de esquerda judaica, aproximou-se do socialismo de Norman Thomas (1884-1968) – inspirador do Student League for Industrial Democracy, de cujo Conselho Nacional Nozick fez parte, e que esteve na origem do movimento Students for a Democratic Society e da New Left, que surgiu em 1962 (8). Foi na Universidade de Princeton e sob a orientação de Carl Hempel (1905-1997), que Nozick prosseguiu os seus estudos, obtendo os graus de mestre (1961) e de doutor (1963) – este último com a dissertação The Normative Theory of Individual Choice, pouco depois de ter iniciado a carreira académica (1962). O influxo deste reputado especialista em filosofia da ciência fez-se sentir ao longo da sua obra, particularmente em termos metodológicos. Durante a sua estadia nesta Universidade (1961/5), Nozick conviveu, ainda, com duas figuras determinantes para o rumo do seu trabalho filosófico – o especialista em filosofia antiga Gregory Vlatos (1907-1991) e o colega de curso Bruce Goldberg. Se aquele foi decisivo para a sua concepção socrática de filosofia, este iniciou-o no libertarismo. Os debates travados com o seu colega libertário estimularam-no a ler as obras dos representantes maiores do capitalismo – Friedrich Hayek (1899-1992), Milton Friedman (1912-2006), Ludwig von Mises (1881-1973), Murray Rothbard (1926-1995) e, especialmente, Ayn Rand (1905- 1982) – e a tomar a sério essa via do pensamento político. Mas foi apenas em 1968, com a conversa mantida com o economista e filósofo Murray Rothbard sobre o anarquismo individualista (9), que o jovem social-democrata Nozick cedeu lugar ao intelectual libertário Nozick – para o qual o socialismo é uma punição pelos nossos pecados ou injustiças do passado. Em 1965 Nozick ingressou no corpo docente do departamento de filosofia da Universidade de Harvard, onde, ao fim de mais de três décadas, alcançou o cargo mais ambicionado nesta instituição académica, Joseph Pellegrino University Professor (1998), e teve a oportunidade de conviver com John Rawls (1921-2002), o mais eminente filósofo político do séc. XX. Foi sobretudo à contraluz do liberalismo igualitário rawlsiano, veiculado em A Theory of Justice (1971), que teorizou sobre o liberalismo libertário, em Anarchy, State, and Utopia (1974), desenvolvendo uma teoria da justiça (entitlement theory) antípoda à teoria da justiça como equidade daquele e, também ela, alternativa à via da filosofia prática à data vigente, o utilitarismo – como constatou, A Theory of Justice dera início a uma nova era em que aos filósofos políticos só lhes resta ou trabalharem no seio da teoria rawlsiana ou explicar porque não o fazem (10). De resto, Nozick teve o privilégio de ler o manuscrito desta obra um ano antes da sua publicação e de tecer alguns comentários à mesma – no seu prefácio, Rawls agradece o alento e apoio do seu colega pela troca de impressões celebrada na fronteira entre os liberalismos moderno e clássico, o igualitarismo e o libertarismo. Assente na compreensão lockeana da liberdade pessoal e da propriedade privada como direitos individuais inalienáveis cuja realização é um bem em si-mesmo, em Anarchy, State, and Utopia Nozick questiona a possibilidade da emergência do Estado num anarquismo individualista, e com base na questão “qual o espaço deixado por estes direitos ao Estado?” avalia qual a sua exacta dimensão. Contra a via anarquista que denuncia a impossibilidade lógica da legitimidade moral do Estado e que, naturalmente, vaticina a morte da teoria política como domínio do seu estudo, defende que, não obstante ser impossível mostrar a razão que leva cada indivíduo a deixar o estado de anarquia – cujo paradigma é o estado de natureza lockeano – e a aceitar a autoridade política, a pressão exercida pela acção não coordenada de agrupamentos espontâneos, das associações de protecção mútua, da divisão do trabalho, das pressões do mercado, das economias de escala e do auto-interesse racional (11) está na base da emergência do Estado. Um Estado que, análogo ao Estado “guarda-nocturno” da tradição do liberalismo clássico, é mínimo; ou seja, cuja função se circunscreve “à protecção de todos os cidadãos contra a violência, o roubo e a fraude, o incumprimento de contratos e assim por diante” (12). Trata-se da forma mais extensiva do Estado legítimo adequada à sociedade capitalista. Em sintonia às suas reflexões sobre a possibilidade da emergência do Estado num anarquismo individualista – representado inicialmente por Henry D. Thoreau, Proudhon e Bakunine – em Anarchy, State, and Utopia Nozick sistematiza as suas ideias sobre a teoria da justiça que defendera no debate mantido com o comunitarista moderado Michael Walzer, no curso lecionado por ambos em Harvard no ano lectivo de 1970/1, subordinado ao tema «Capitalismo e Socialismo». À contraluz de uma teoria da justiça que tem por objecto primário a estrutura básica da sociedade, como a rawlsiana, Nozick defende uma justiça de posses – justo título – que assenta na convicção de que “os nossos direitos de propriedade privada são tão robustos quanto os nossos direitos sobre o próprio corpo” (13). É à luz do princípio da propriedade-de-si que, segundo o libertário, se compreende o dever de tratar as pessoas sempre como um fim e nunca como um meio, o princípio kantiano da igualdade moral subscrito pela teoria da justiça como equidade. A questão da posse alude a três sujeitos distintos da justiça: aquisição de bens, transferência voluntária de bens e rectificação de uma injustiça do passado. Nozick apresenta a seguinte definição intuitiva e exaustiva da justiça de posses: «(1) uma pessoa que adquire uma haver em concordância com o princípio de justiça na aquisição tem direito a esse haver; (2) uma pessoa que adquire um haver, em concordância com o princípio de justiça na transferência de outrem que tem direito ao haver, tem direito ao haver; (3) ninguém tem direito a um haver excepto por aplicações repetidas de 1) e 2)» (14). Ou seja, uma distribuição é justa caso todas as pessoas estejam habilitadas a possuir o que possuem conforme (1) e (2) – parte-se do seguinte princípio geral: qualquer coisa que surja de uma situação justa por passos justos é em si justa. Esta concepção histórica de justiça é antípoda a toda concepção padronizada e final da justiça – como a justiça social distributiva igualitária, seja liberal (como a rawlsiana), seja socialista. Pois considera que estas, a curto ou longo prazo, pressupõem a ingerência do Estado na vida das pessoas. Para o liberalismo libertário, as trocas voluntárias e inocentes entre adultos responsáveis dissipam a estabilidade de qualquer padrão de justiça distributiva que tenha uma componente igualitária (15) – o igualitarismo é o inimigo mortal do capitalismo. Dito de outro modo, Nozick mostra-nos como a legítima liberdade das pessoas no uso das suas posses não deixa qualquer espaço às políticas e práticas da justiça social. A proposta liberal libertária nozickiana parece, deste modo, esquecer que para os pobres a liberdade vale pouco ou mesmo nada – aparentemente, “no paraíso libertário os sem-abrigo não têm direito a estar em parte alguma” (16). Todavia, Nozick defende algo distinto: conquanto tenhamos o dever moral de ajudar os mais carenciados, não devemos ser coagidos a fazê-lo (17). Que a sociedade capitalista seja motivada pela avidez egoísta, pura e simples, isso não significa que um capitalista não deseje fazer dinheiro de modo a sustentar obras de benevolência (18); ou seja, que as pessoas ajam por interesses individuais não denota a sua indisposição para contribuírem para uma sociedade onde os mais carenciados sejam tratados com dignidade. Não podem é aceitar que, numa sociedade resultante de um vasto número de acções individuais e de decisões livres, isso constitua uma obrigação. Ninguém pode forçar alguém que tenha direito aos seus bens a contribuir para uma causa contra a sua própria vontade, mesmo que todos os outros o façam. Moralmente desejável, a filantropia rege-se pela boa vontade de cada indivíduo. Todavia, isto não significa que o Estado mínimo nozickiano proíba a existência de comunidades conformes ao liberalismo igualitário rawlsiano e ao socialismo. O Estado mínimo permite-nos viver em comunidades distintas – admite que um grupo de pessoas crie uma vila comunista, onde todos os recursos sejam partilhados; outro grupo crie uma sociedade perfeccionista, onde todos os confortos sejam sacrificados em prol da sua elevada cultura; um outro grupo implemente um modelo de sociedade livre; e assim por diante. Nele os indivíduos são livres de criarem comunidades de diversos tipos e de passarem de umas para as outras quando o desejem. Isto significa que, ao advogar a neutralidade do Estado, o libertarismo nozickiano dá-nos a possibilidade de não sermos libertários e com isso, naturalmente, conduz-nos ao reconhecimento do libertarismo como o melhor dos mundos possíveis. A apreensão nozickiana do Estado mínimo como estrutura da utopia do melhor dos mundos possíveis e a sua concepção histórica de justiça trouxe um novo ímpeto ao optimismo e à esperança da sociedade capitalista americana, à hora sacudida pelo escândalo Watergate e o desastre do Vietname. Mas Anarchy, State, and Utopia, não obstante o seu sólido aparato conceptual arreigado à moral kantiana e à política lockeana, o estilo acessível de exposição de ideias e o imediato reconhecimento público – premiado pelo National Book Award, figurou na lista dos cem livros mais influentes do pós-guerra do The Times Literary Supplement – tornou-se uma referência filosófica não tanto pela proposta libertária veiculada quanto pela sua crítica à teoria da justiça rawlsiana. Reconhecido, assim, como um dos intervenientes mais relevantes do debate em torno desta teoria, Nozick foi intitulado de «filósofo político» quando a sua demora neste domínio constituiu um desvio de percurso do seu trabalho filosófico, à data focado no tópico da vontade livre. Na realidade, como veremos, o seu corpus filosófico estendeu-se muito além do domínio político, à filosofia da ciência, ética, teoria do conhecimento, metafísica, filosofia da mente e às meditações sobre o significado da vida – reveladoras de um conhecimento profundo da filosofia oriental, particularmente da indiana, pela qual se interessou desde a década de 60 e que, de resto, lecionou (19). Na sua obra política, Nozick anunciou a sua conversão ao libertarismo com base em fundações éticas que só posteriormente, em Philosophical Explanations (1982), viria a apresentar. Nesta obra concebe como tarefa maior da ética a demarcação entre as forças morais de atracção e de repulsa, cujo efeito não reside no comportamento de alguém, mas na sua magnitude em resultados futuros. A teoria ética deve, consequentemente, mostrar e explicar como e porquê os valores de uma pessoa condicionam e constrangem moralmente o comportamento de outras; como e porquê as suas formas de comportamento decorrem do valor da vida; e, ainda, como e porquê é preferível que uma pessoa se comporte moralmente face às outras – de acordo com a sua atracção moral. Em última instância, pode-se considerar que o libertarismo nozickiano se enquadra numa ética do respeito pela vida e autonomia de cada pessoa – base de todas as sociedades e primeiro nível ético de uma estrutura eticamente complexa e que se perfaz, sequentemente, na compreensão, caridade e luz (20) como frutos de escolha e desenvolvimento individual. Ao longo da sua vida, Nozick repensou a sua orientação libertária sem a renegar por completo. De resto, ela é transversal às suas abordagens sobre a natureza da coerção e da ética de Ayn Rand (1971), a metodologia da Escola Económica Austríaca (1976), as explicações de mão invisível (1994), a aversão dos intelectuais ao capitalismo (1986) (21), os fundamentos da ética (1981) (22) e sua a genealogia (2001) (23). Se, por um lado, as suas cogitações na teoria da decisão mostraram-lhe a relevância do valor simbólico de determinadas acções políticas – a proibição da escravatura voluntária, por exemplo – e como a posição libertária descura que numa sociedade democrática a política oficial expressa e afirma, simbolicamente, a autonomia e autogoverno dos indivíduos (24), forçando-o a moderar o seu libertarismo; por outro lado, a reiteração da ideia de que não se deve interferir nas escolhas e desenvolvimentos pessoais, mesmo ao nível da ética que pressupõe a benevolência positiva (25), reaproximou-o da via libertária de Anarchy, State, and Utopia. Todavia, jamais refutaria as críticas dirigidas ao seu pluralismo libertário – em parte por querer manter, em relação aos pontos de vista de que dimanam, a distância crítica necessária, mas em grande medida por o seu estímulo intelectualmente provir, essencialmente, de novas cogitações sobre novos tópicos. A aversão de Nozick à coerção, evidente no seu rumo libertário, é reiterada na revolução metodológica que protagonizou no seio da filosofia analítica. Uma viragem iniciada ainda no âmbito das suas reflexões políticas e perscrutada no seu retorno ao tópico da vontade livre articulado a questões sobre o conhecimento, o eu, o significado da vida ou modo como cada um de nós escolhe dispor do seu tempo, durante a década de 80. Questões que revelaram, mais aprofundadamente, a natureza coerciva do método analítico em que fora adestrado, desde os seus primeiros passos como filósofo, a identificar e refutar os pontos frágeis da argumentação. Como destaca em Philosophical Explanations (1981), a filosofia analítica norteia-se por um princípio compulsivo que leva os auditores/ leitores a acreditarem pela constância das consequências, quando as premissas dadas são anunciadas como prova. Rompendo com o espírito de disputa incitado pelos mentores da escola analítica e no trilho da «explicação científica» de Hempel – «modelo de lei de cobertura» em que explicar uma coisa consiste em inferi-la de uma lei e das suas condições gerais – Nozick propôs um método explicativo intimamente ligada ao conhecimento como «persecução da verdade», em que a nossa crença persegue a evidência. O conhecimento consiste numa relação real, pois apreendida independentemente do facto de alguém pensar ou não que isso aconteça, e específica com o mundo. O método explicativo de Nozick tem, assim, por intenção estimular o auditor/leitor a explorar vias alternativas, a meditar sobre o que se lhe apresenta e o que é possível. As nossas crenças fundam-se precisamente nas nossas apetência e curiosidade em aprofundar a compreensão sobre o mundo – só podemos explicar aquilo que cremos ser verdadeiro, enquanto provamos sem crermos no provado. A prova é um falso amigo da verdade. Com esta proposta de actividade de conhecimento mútuo (falante/ ouvinte, autor/leitor), Nozick expôs o seu pensamento sem atrair correligionários e abriu portas ao pluralismo filosófico – um pluralismo que, como salienta, de tempo e espaço, substanciado “[n]a possibilidade de coexistência de diversas unidades de pensamento, projetando diferentes perspectivas sobre a mesma realidade” (26). Sem o qual não teria debatido temas tão distintos com os seus pares – a natureza do liberalismo com John Rawls, a racionalidade da ciência com Thomas Kuhn (1922-1996), e o neo- -pragmatismo com Richard Rorty (1931-2007) – sem se fixar em qualquer um deles. O trabalho filosófico é, neste sentido, análogo ao artístico – autor e leitor viajam juntos, crescem frente-a-frente – e cada ensaio filosófico espelha o estádio de um processo de maturação em curso, de uma demanda ininterrupta (27). Se Philosophical Explanations constituiu o ponto de viragem do seu desígnio filosófico – assumido, a partir de então, como alternativa radical à filosofia analítica – foi em The Examined of Life (1989) que aplicou com mais afinco esta via não coerciva de exposição. Reexaminando, sob forma kantiana, algumas questões teóricas fundamentais – a objectividade da verdade ética, a vontade livre, a identidade própria e os limites do conhecimento – em Philosophical Explanations Nozick demonstrou que o propósito filosófico da explicação amplia o horizonte ético ao progresso moral. A temática «filosofia e significado da vida», abordada no capítulo final desta obra, é retomada e aprofundada em The Examined Life. Esta obra, de carácter mais literário que ensaístico, é fruto de um modo de pensar profusamente imbuído da filosofia oriental – nomeadamente, pela ênfase conferida à noção de «presença», à meditação pura do carácter pluralista da realidade. Nela a compreensão da filosofia como uma aventura dinâmica da transformação do «eu» na concretização do que dá significado e valor à sua existência – não tanto a procura (existencialista) quanto a sabedoria (zen) – subjaz à sua explicação sobre os tópicos da vida – o amor, a sexualidade, a felicidade e a morte, etc. É no âmbito particular que a vida de cada pessoa adquire significado, pois cabe a si, e só a si, escolher o modo de despender do seu tempo. Se sobre este significado – limitado, mutável, não profundo e que, enquanto estigma, deixa no mundo os seus vestígios – a filosofia nada pode concluir, o seu questionamento glorifica-nos enquanto seres com capacidade de escolha. Nos finais de 1998, Robert Nozick alcançou o cume da carreira académica, anunciando estar a preparar a obra que, como quis o destino, viria a ser a sua última, Invariances: The Structure of the Objective World. Ciente do pouco tempo que lhe restava, após a cirurgia e os tratamentos ao cancro de estômago, em 1994, e nada querendo fazer de diferente, mas tão-só fazer melhor aquilo a que dedicara a vida – pensar, ensinar e escrever (28) – prepara a compilação de textos que, fruto da investigação desenvolvida nos domínios da epistemologia, filosofia da mente e ética, sobre verdade e relativismo, invariância e objectividade, consciência e genealogia da ética, disseminara, desde 1997, nas palestras que fora convidado a dar em várias universidades europeias e americanas. Nozick morreu dois meses após a sua publicação, em finais de 2001. Encerra a sua obra com as palavras: «A filosofia começa com o espanto. Nunca acaba.” (29). Em Invariantes, o filósofo reitera a ideia de que pelo restrito método da prova é impossível evitar-se a mentira; e sob propósito de explorar territórios diversos em prol do cuidado e esclarecimento intelectuais, envereda por um método que consiste numa série de incursões filosóficas. Como sublinha, uma análise evolucionista de alguns dos nossos conceitos fundamentais tranquiliza e abala, em simultâneo, a estrutura de categorias e teorias pela qual compreendemos e explicamos o mundo. A cada momento somos obrigados a repensar o mundo, a revermos ou revolucionarmos as redes conceptuais que sobre ele lançamos em demanda de uma melhor compreensão. Como sublinha, é por crermos na possibilidade de um mundo melhor que o fazemos. Deste prisma, o relativismo, conquanto coerente, é falso, pois da verdade relativa a um determinado espaço-tempo não é possível inferir a inexistência da verdade para todo o espaço-tempo; ou seja, a «verdade local» não determina a sua estrutura global. Consequentemente, os alicerces do «relativismo social» ficam abalados – a verdade relativa à cultura, ao sexo, ao género e à posição social. A verdade social é relativa entre um ser humano e um outro ser (existente ou possível) do universo; nunca entre seres humanos contemporâneos. Nozick demonstra, assim, a necessidade de se chegar a uma caracterização geral da verdade em qualquer mundo possível; a uma teoria do que seja a verdade e não a uma teoria da verdade. O conhecimento da invariância dos factos, do seu alcance e limite, é o que fundamenta a sua objectividade ou verdade – diferentemente da objectividade da crença, dependente da índole do processo que está na sua origem, decorre do conteúdo e carácter dos eventos. Porque a objectividade nem sempre é o que se procura ou precisa, a verdade objectiva mobiliza-nos menos que a subjectiva – a coloração que lhe reveste a emoção lança-nos na acção. Por sua vez, a abundância de tentativas fracassadas de fundamentação da verdade ética encaminham-nos a um propósito mais modesto, à objectividade ética. Sobre a aplicabilidade da noção de verdade a este domínio, a análise final de Nozick aflora dois estádios: a caracterização da crença verdadeira e a identificação da característica verdadeira. Mostra que a objectividade ética está intimamente ligada à produção de enunciados sobre a função de ministrar a actividade coordenada em vista de benefícios mútuos; funcionando as suas normas como guias do nosso comportamento. Todavia, que as normas existam para alumiar essa coordenação explicita o porquê da sua existência, mas não como emergem. Esta questão requer ser explicada e não justificada. Os princípios éticos são admissíveis quando favoráveis ao critério geral conforme os princípios de coordenação e cooperação. O acordo ético decorre da partilha de intuições – ideia que remete para o horizonte da ubiquidade ética. Contra o relativismo o filósofo lembra que, tal como a alternativa de preferência na escolha social pressupõe a constância, o estatuto ético de uma acção ou política é invariante sob permuta de uma pessoa por outra. Ou seja, este ensaio acaba por alumiar a ideia nuclear ao seu pensamento político, a noção de direitos como atributos cuja satisfação é um bem em si e que não pode ser comprometida por qualquer razão, excepto a de uma catástrofe moral. Todavia, a análise do percurso intelectual de Robert Nozick permite concluir que este deixou marcas no mundo muito para além do mundo libertário e hiperoptimista, a que tendem a reduzi-lo. Na epistemologia, pela apresentação de uma versão da teoria externalista do conhecimento que, contra o cepticismo radical, abarca o conhecimento como “persecução da verdade” e atenta que a crença na verdade é justificável por factores internos e externos ao sujeito; na metafísica, pela defesa da via “continuador mais próximo” da identidade pessoal; e ainda pelo seu contributo para uma teoria da verdade objectiva, segundo a qual, o traço distintivo da objectividade real, ou da verdade, na ciência, na metafísica e na ética, é a “invariância sob as transformações”. A estas acrescem, naturalmente, as suas meditações sobre o significado da vida, profundamente gratificantes. Sem dúvida, Robert Nozick escolheu demorar-se na variedade de mundos que é o nosso mundo.
NOTAS
1. Nozick R. (1974), Anarchy, State, and Utopia, Oxford UK & Cambridge USA: Blackwell, p. 312. Tradução da nossa responsabilidade (TNR). Esta obra é a única do filósofo traduzida em português – Anarquia, Estado e Utopia, Lisboa: Edições 70, 2009. Não obstante, recorremos ao texto original.
2. Zlabinger A. (1977), “An Interview with Robert Nozick”. Libertarian Review, December 1977, p.17. TNR.
3. Cf. Lacey A. R. (2001), Robert Nozick, UK: Acumen Publishing Lda, p. 1.
4. Cf. Nozick R. (1997), Socratic Puzzles, Cambridge: Cambridge University Press, p.11.
5. Cf. Nozick R. (1989), The Examined Life. Philosohical Meditations, New York: Touchstone, p. 303.
6. Nozick R. (1997), p.2. TNR.
7. Borradori G. (1994), «Anarchy at Harvard – Robert Nozick», in American Philosophers, Chicago: University of Chicago Press, p. 76.
8. Cf. Zlabinger A. (1977), p. 12.
9. Cf. Nozick R. (1974), p. xv.
10. Cf. Ibidem, p. 183.
11. Cf. Ibidem, p. 16.
12. Ibidem, p. 26. TNR.
13. Cabrita, M.J. (2014), “Robert Nozick: A Reflexão Libertária na Apoteose do pluralismo”, in J. G. André, J. M. Santos e B. P. Dias (Org.), Teorias Políticas Contemporâneas, Lisboa: Documenta, p. 310.
14. Nozick R. (1974), p. 151. TNR.
15. Cf. Ibidem, pp. 160-164.
16. Waldron, Jeremy (1993), Liberal Rights: Collected Papers 1981-1991, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 314. TNR.
17. Cf. Wolff, Jonathan (1991), Robert Nozick: Property, Justice and the Minimal State, Cambridge: Polity Press, Cambridge, p. 12s.
18. Cf. Nozick R. (1997), p. 284.
19. Cf. Borradori G. (1994), p. 72;78.
20. Em The Examined Life Nozick apresenta uma primeira abordagem sobre a estrutura ética, reincidindo na questão em Invariances (2001). MARIA JOÃO CABRITA CA 8822 Revista Cintilacoes 3.indd 153 28/05/2019 18:07:54 REVISTA DE POESIA E ENSAIO | 154
21. Cf. Nozick, R. (1997).
22. Cf. Nozick, R. (1981), Philosophical Explanations, Cambridge: Harvard University Press.
23. Cf. Nozick R. (2001), Invariances: The Structure of the World, London: Harvard University Press.
24. Cf. Nozick R. (1989): 286-298.
25. Cf. Nozick R. (2001), Invariances: The Structure of the World, London: Harvard University Press, p. 280s
26. Borradori G. (1994), p. 81. TNR.
27. Cf. Cabrita, M.J. (2005), «Invariances: The Structure of the Objective World de Robert Nozick». Cultura – Revista de História e Teoria das Ideias, vol. XX, IIª série, pp.251-256.
28. Cf. Nozick R. (1997), p. 11. TNR.
29. Nozick R. (2001), p. 301. TNR.