CASA DE CAMPO : As metáforas na abordagem narrativa de José Donoso*
Trata-se de um livro denso dividido em duas partes, cada uma composta por sete capítulos.
Envolvente no seu discurso inovador e trama exuberante, é tão transparente na prosódia, como intrincado na arquitectura da efabulação. Rompe com os cânones literários, sem perder a beleza estilística, ou a riqueza lexical.
A não linearidade exige um esforço adicional ao leitor, mas a montagem alternada agarra-o de forma mais subtil, uma estratégia em que os cortes intencionais no plano narrativo, apartes do autor com os leitores, quase convocam os últimos à participação.
As duas partes da acção situam-se numa zona remota do Chile, tendo como palco principal uma propriedade de ricos senhores, Marulanda. Podem representar o antes e o depois de um cidadão-escritor que expõe a sua metamorfose no plano sexual, ou a de um país em transformação, cercado por perigos que vão crescendo à sua volta. As gramíneas invasivas, que vão devorando a floresta saudável, o equilíbrio da Natureza, são a primeira metáfora escolhida.
As personagens principais, membros de uma família alargada, os Ventura, revelam uma invulgar voracidade pela riqueza, assente no ouro extraído nas minas das suas terras. Trabalhado depois pelos autóctones até ficar em finas lâminas, é vendido a clientes estrangeiros habituais, que o vêm recolher periódica e avidamente, também.
Vivem num mundo de estranhas regras e representações, à margem do mundo real. A lei que deve prevalecer, é a que impõem. Sete casais, um deles incompleto por viuvez da mulher mais velha da família e trinta e três crianças vivas. A morte violenta de duas delas ocorre durante o desenvolvimento da trama. A idade dos adultos, exceptuando dois deles que estão a caminho de a alcançar, situa-se na casa dos 50. A das crianças, algumas precoces para os anos de vida, vai dos 5 aos 17.
Consideram-se a classe dominante, mas precisam da existência dos nativos. Mais do que precisar, dependem do trabalho escravo de uns e dos víveres que outros fornecem à mansão senhorial. Não os querem perto demais. Convém arranjar motivos que justifiquem o seu afastamento, ou a relegação para bem longe da Casa, onde a família passa três meses por ano para vigiar os trabalhos. Antropófagos, parece lhes a designação ideal para espalhar o pânico entre a descendência e os habitantes da cidade.
Classificar assim os autóctones é, no mínimo, uma perversão linguística, tendo em conta que alguns precisam de procurar, entre os detritos, o alimento que os sustém, uma forma de vida miserável que os assemelha aos animais e que nos remete para o poema de Manuel Bandeira, O Bicho.
Espalhar o pânico é-lhes conveniente. A família passa por salvadora de uma sociedade “naturalmente” dividida em miseráveis e muito ricos, sendo eles os mais privilegiados no topo de uma pirâmide erguida pelas suas representações doentias. E se os miseráveis devem ficar acantonados no seu mundo, também é importante aprisionar e sufocar o grito da única personagem masculina lúcida da Casa: Adriano Gomara, ligado pelo casamento à mais nova das mulheres da família, Balbina Ventura, de 47 anos.
Inteiramente diferente dos outros, Gomara não está interessado na riqueza material. É médico, humanista, defensor do conhecimento para fortalecer o sentido crítico que promove a abertura de horizontes. Preocupa-se com o bem-estar dos nativos, com o respeito pelas suas condições sanitárias e pelas raízes culturais que os dominadores desprezam. Mas apesar dessa lucidez, costuma ser transportado numa jaula para animais durante as viagens da capital para Marulanda. O seu pecado: ter matado à chibatada uma das filhas, que acabara de assassinar a própria irmã metendo-a no forno da lenha e ainda o chamara para assistir ao fim do macabro espectáculo…
Só ele ia endoidecendo de dor, os outros logo assumiam o papel de excêntricas personagens na imutável existência e prendiam-no, sedado com láudano, na torre da própria Casa. Aqui chegados, identificamos a nova metáfora de uma Casa (país) afectada por uma neurose colectiva, que subverte a apreciação da saúde mental dos seus habitantes. A História dá-nos exemplos sobejos..
Em A Partida, primeira parte composta por metade dos capítulos, os pais seguem para um passeio idílíco. A Casa fica entregue ao estado caótico das pulsões primárias dos mais jovens. Umas ainda por amadurecer, outras (quase todas) reprimidas. Como nos sonhos de Santiago Nasar (1), uma criança suspeita… Nem os serviçais das várias funções de manutenção da casa, nem os “educadores”, executores de castigos, nem o Mordomo acima de todos, ficam para trás? Até os animais saudáveis e as carroças levam com eles.
A mudança será operada pelas duas figuras quase mitológicas do romance: o pai aprisionado e o filho ainda criança, Wenceslao (9 anos) convertido em personagem mais importante do livro. Representante do país em crescimento? Talvez a idade de transição, a proximidade com o pai depois da morte violenta das irmãs, tenham sido os motivos para a sua escolha simbólica pelo autor. Maduro para a idade, vestido de menina pela mãe que não quer filhos varões, o rapazinho é quem primeiro assume um papel de rebelião contra a ditadura das regras, cortando os caracóis louros e abandonando as saias de renda.
Donoso fará um apanhado eloquente destes conceitos na floresta semântica da ficção, mas a propósito dos protestos do menino, que exibe a virilidade sob as saias, diz-lhe a prima Melania, 16 anos: “…a aparência é a única coisa que não engana…”, forma original de desmontar o aforismo : “as aparências iludem”.
Desenha-se a IIª parte, O Regresso, com igual número de capítulos, mudança radical e dolorosa, com tanta repressão na Casa. Terá passado um dia, um ano? Não sabem, nem saberão. Todos os objectos para medição do tempo acabam por ser destruídos, os vidros das janelas pintados de preto para não verem o sol. A certa altura da narrativa pode ler-se: “…seria inútil explicar (…) que a distinção entre presente e passado, bem e mal, tu e eu é, com frequência, de matéria aparentemente mais fraca que o ferro de algumas lanças”.
Os cortes intencionais e esporádicos do autor-narrador-personagem, apelam à entrada do leitor no rendilhado da tessitura ficcional, um saco fechado com interstícios de dimensão razoável, por onde se poderia apreender o evoluir da narrativa, se ela fosse fácil de seguir. De fora o leitor vê as pontas do fio serem urdidas, como um convidado a preencher as lacunas da família disfuncional, ou tão-só a compreender as motivações do autor, ele mesmo à procura de afirmar a sua identidade sexual. Talvez por isso, menos importante do que um leitor interventivo, seja conquistar empatias no traçado do mapa psicológico do romance, construído na ressonância da própria dor de Donoso. Ainda preso à sua criação no final do livro, ele confessa quanto lhe custou deixar a loucura das suas personagens, assim emaranhadas no tempo e nas funções, com as quais acaba por se confundir.
Para ajudar a enformar esta ideia, remete-se para a leitura de Correr el Tupido Velo (2), da autoria da filha adoptiva do escritor. O pai, com quem ela mantinha uma relação conflituosa, quase lhe pede um trabalho de “apaziguamento”. Dedica Casa de Campo à mulher, com o mesmo nome, que morreria uns meses depois dele e deixa a Pilarcita uma missão espinhosa. Com base nos 64 diários que o pai guarda em Iwoa e Princeton, onde tinha leccionado, nas cartas da mãe, nas suas próprias memórias, descobre outra de si mesma…O pai até lhe aponta tendências suicidas… Doloroso, para ela. Mesmo assim cumpre a “promessa”, retirando o título do seu livro das páginas do romance do pai e deixando, em definitivo, ou talvez não, uma pedra sobre o assunto…
Voltemos à Casa de Campo e às suas labirínticas entranhas, ou aos frágeis alicerces de um país em busca da sua afirmação identitária. Tudo é aparência, a verdade ainda está por descobrir pela maior parte dos jovens, deixados sem a legião de servidores, só alguns, enquanto os pais rumam ao paraíso, afinal inventado pelo que dizem ser louco…
Ninguém desmonta a sua personagem até ao dia da partida, só depois. Sabem que o perigo ronda, mas parece-lhes o momento ideal para violarem as regras. Sem medo? Não, o medo subsiste. E é com ele que exibem agora os instintos reprimidos e expõem os segredos da descoberta do corpo, indícios que apontam para a preparação de uma Casa nova, uma sociedade emergente, aparentemente ingovernável sem os ditadores, mas mais autêntica na diversidade.
O que pretende, afinal, José Donoso com este Casa de Campo? Diz Mário Vargas Llosa, em História Secreta de um Romance (3), e numa comunicação dedicada a Carlos Fuentes que, com ele e com Gabriel Garcia Márquez, foi dos maiores admiradores de Donoso: “Escrever um romance é uma cerimónia parecida com o strip-tease. Como a rapariga que, sob impúdicos reflectores, despe as suas roupas e mostra, um por um, os seus encantos secretos, também o romancista desnuda em público a sua intimidade através dos seus romances”.
Mas Llosa logo acentua uma diferença fundamental: longe de acabar na revelação de encantos como a rapariga, o autor expõe os ”demónios que o atormentam”, obsessões, culpas, rancores, ou a parte mais feia e escondida de si mesmo. Uma acaba despida, o outro vestido, mas todas as vivências pessoais, suas ou de outrem, que o motivaram a escrever, são mantidas em segredo por meio de disfarces tão subtis, que no fim praticamente ninguém, nem ele mesmo, consegue encontrar esse pulsar autobiográfico na ficção que criou. Se tomarmos as palavras de Llosa como certas, então Donoso expôe-se completamente, só não identificamos onde e como.
Já em livros anteriores (4), o autor expõe a sua veia criativa de ficções quase épicas, escolhendo uma Casa como microcosmos preferencial para operar transformações pessoais e colectivas, uma espécie de laboratório de experiências com origem na metamorfose individual constante. Sempre com muita tensão, conflito, ambiguidade de (e entre) as personagens, promove uma diferenciação discursiva em relação a outros autores de língua espanhola que, em conjunto, contribuíram para uma explosão de vivacidade na literatura latino- americana.
A ficção de Donoso remete para um território conceptual na deriva da imaginação, que cria sentimentos antagónicos no leitor: atracção e repulsa. A realidade, ou a ficção arrebatada que a pretende retratar, é crua nas suas contradições, mutante e diabolizada pelas personagens, seres marginais em constante inconformidade biocultural. Não há laços de forte solidariedade entre elas, ou com os de fora, nem amores fraternal e filial. São alheias ao destino uns dos outros, embora todos aspirem à mudança.
Sem dúvida que José Donoso pretende realçar que as imposições ditatoriais, os castigos, as torturas, não conseguem fazer respeitar qualquer autoridade, a não ser pelo medo. E se aceitarmos, como a maioria das recensões ao livro, que ele esboça uma cópia do Chile em decadência moral e social, então o romance é o de um génio, como concluíram os dois prémios Nobel da Literatura Vargas Llosa e García Márquez. Carlos Fuentes, que foi colega de Donoso em jovem, fundamenta afirmação parecida, dizendo que só ele conseguiria transcender os limites do passado recente “…erguendo um estandarte no reino da imaginação”. Chegaram a conviver todos em Barcelona, na década de sessenta, então considerada capital editorial do livro em espanhol.
As assimetrias do Chile de Pinochet cabem assim nos limites das disfunções de Marulanda? Ali situa-se a esfera protegida dos ricos senhores, separados pela alta vedação de estacas de ferro encimadas por lanças de ouro. Do lado de fora o mundo rural dos excluídos, considerados “perigosos” pela ideia que intencionalmente os donos do poder vão difundindo. E basta repetir, matraquear uma ideia, para que ela fique inculcada na memória. A força da Propaganda…
A ressonância dessa invenção, o perigo dos “antropófagos”, serviria de protecção à família, se a virulência destrutiva não estivesse dentro dela. Nem os elementos mais importantes conseguem soletrar os indícios. Parte deles na vontade dos mais novos se rebelarem contra a rigidez das regras. Outra parte no medo presente em todos, até no autor, ao descobrir-se nessa viagem que empreende, para construir uma ficção verosímil. Afinal a antropofagia é a mecânica das sociedades: os mais poderosos nutrem-se dos mais fracos.
O medo está sempre presente, tanto na vulnerabilidade da dependência, como na arrogância de quem domina. Um elemento da família diz que “toda a mudança é perigosa…”. A manutenção da ordem sob ditadura, é sinal de medo. É ele o criador das ousadias maldosas: antes que nos ataquem, destruímos nós…Daí que os segredos, os enganos, as diferenças abissais no plano socioeconómico e o amor não prodigalizado, promovam a revolta.
Em OCASIONAIS I Eduardo Lourenço tem um capítulo dedicado a este tema (5). E afirma que “A revolta que se compreende, existe dentro de um círculo puramente humano: revolta de homens contra o crime de homens. Revolta que é já escolha, pois esses homens assumem a responsabilidade de classificar como crimes, certos actos de outros homens e pagar sem hesitações por um valor que desejam introduzir num mundo diferente a eles”. É a sociedade dividida.
Os jovens da família, naquela casa ingovernável sem o trabalho da maioria dos serviçais, sem o poder do Mordomo para impor a rigidez da oligarquia, têm de encontrar formas de resolver os problemas. Sem medo? Não, ele faz parte de qualquer aventura, mas na confusão de hierarquias, encaram formas de o vencer. Afinal sentiram, ao longo dos anos, o pulsar do submundo das manifestações eróticas, da tortura, dos roubos aos infelizes trabalhadores, dos enganos aos de fora. Aprenderam os vícios da imoral dominação.
É a emergência de uma sociedade nova pela revolta. E como em todas as revoltas, não estão unidos, nem pelas regras impostas, nem pelo respeito afectivo. Por isso aquando da fuga, conspirada entre parte dos primos, precisam dos excluídos em arranjos posteriores e dos nativos, metáfora de vida nunca interiorizada: todos precisam de todos. E talvez haja uma desconfiança maior em relação a alguns da casa, que antes pareciam tão próximos, mas “o indivíduo é metamorfose, é instante, transeunte efémero dos caminhos da vida…” , como se pode ler a certa altura da narração.
Aquele mundo antes protector é afinal uma prisão. Não de alta segurança, como julgavam, antes bem fácil de transpor para alcançar a liberdade. Mas ela virá a revelar-se um mundo cruel de antropófagos reais.
Pilar Donoso suicidou-se em 2011, aos 44 anos…Será melhor, por agora,
CORRER EL TUPIDO VELO.
Maria Helena Ventura
Fevereiro 2023
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*José (Manuel Yáñez) Donoso, foi professor de Inglês, contista, jornalista e ROMANCISTA. Nasceu em Santiago do Chile em 5 de Outubro de 1924, cidade onde veio a falecer a 7 de Dezembro de 1996. Entre 1967-1981, viveu em Espanha e passou por outros países EUA e Europa (viveu em Lisboa algum tempo).Obteve o Prémio Nacional de Literatura do Chile em 1990. Casou com Maria del Pilar Serrano com quem adoptou Pilar Donoso, tinha ela apenas três meses.
CASA DE CAMPO é uma edição da Cavalo de Ferro (a 2ª.) 2019, Lisboa
Tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu
Notas
1- Crónica de Uma Morte Anunciada, Gabriel García Márquez, 3a. Edição- O Jornal, Maio de 1986.
2- Correr el Tupido Velo – Pilar Donoso, Edições Alfaguara, 2009, Santiago do Chile.
3- Pullman, Washington State University, 11 de Dezembro de 1968.
4- O Obsceno Pássaro da Noite, José Donoso, Edições Benvirá, 2013, Brasil.
5- Revolta:Escolha de Revoltados, in Ocasionais I (ensaios) – A Regra do Jogo Edições, Julho de 1984.