Apresentação do livro «Escrito na Grécia», de Amadeu Baptista
Quando me foi colocada a questão de apresentar o livro «Escrito na Grécia» pensei que me seria simples e suficiente, por conhecer razoavelmente a Grécia, por ser amiga do poeta, por ser escultora com fortes raízes na harmonia e na proporção exigidas aos escultores gregos, por gostar da poesia dele. Estava enganada, não iria ser fácil a tarefa, o que me incentivou a ler e a reler esta poesia com redobrado empenho.
Ao beber e embeber o espírito destes pequenos poemas, apoderou-se de mim a força daquele profundo silêncio que advém da hipnose: regressei aos tempos académicos das Belas Artes, às leituras dos clássicos e da mitologia, aos museus, às minhas próprias viagens a Atenas e a algumas das mais emblemáticas ilhas gregas. Fui transportada para o poder redentor da poesia através de lugares, mitos, poetas, filósofos, símbolos e obras que me são caras. Fiz uma grande viagem por gentes, paisagens, mares, ilhas, deuses de um mundo perdido e reencontrado na palavra do poeta, que recorre a uma linguagem coesa de grande simplicidade formal, a um modo de ver pessoal, envolvente e descritivo. Nesta poesia viajamos com um narrador e anfitrião que, em certos poemas, se torna protagonista quando toma para si a pele de quem desvenda, através da palavra, o mistério da existência humana. Viajamos pelo olhar do homem e pela mão de uma estética da arte que nos conduz ao pulsar vivo do coração da história e da humanidade: ao coração da Grécia.
Em «Escrito na Grécia» Amadeu Baptista demonstra ser um homem erudito capaz de introduzir na poesia referências histórico-culturais e histórico-literárias da Grécia Antiga e da Grécia Moderna, e o homem comum, aquele que é capaz de olhar e de ver, para de seguida narrar e descrever com lucidez, ora arguta ora delicada e contemplativa, a sua experiência. Estes poemas devolvem aos seus contemporâneos o berço da ocidentalidade, na medida em que, sendo um exímio narrador dos tesouros do passado, do encanto das paisagens, dos contrastes entre a pobreza e a fertilidade, do domínio dos homens sobre a natureza e da natureza sobre os homens, das costas das ilhas torneadas e envoltas em mares azuis, é sobretudo o guardião de uma luz clara e brilhante, das cores e dos aromas que tudo invadem na Grécia. «(…) Aqui a luz domina, seduz, adoça. Persegue passo a passo os que sonham.» (pág.84).
O poeta revela-se um solitário contemporâneo convertido ao paganismo das utopias. Talvez tenha sido esse o caminho que escolheu ou o que a vida lhe deu, sem escolha possível. Leu muito, viu muito, sofreu muito, imaginou muito. Apaixonado pelos temas que elegeu para os cantar, dissecou-os, metendo-se ele próprio, subtilmente, na pele dos gregos actuais. Vem à superfície a sua capacidade para se transmutar no outro, seja um ícone, uma imagem, um personagem, um sinal, uma ilha. É ao redor deles que produz deambulações poéticas inter-activas das quais resulta a construção de uma poesia sóbria, fluida, emotiva, eivada da imanência da beleza.
A sua poesia enlaça o hálito da grande tradição helénica com as pessoas imprevisíveis e hospitaleiras que, ao longo dos séculos demonstraram coragem e determinação em tomar nas mãos o seu destino. Ele invoca-as com um rigor escorreito, quando afirma: «(…) Nós, os gregos, vivemos por um pouco de terra e esta água que nos convoca à vida e à viagem.» (pág.12), ou então: «(…) E isto sei: os meus pés são de barro e de pedra o meu espírito, de pedra indestrutível. (…)» (pág.56).
Há nesta poesia um halo abundante de impressões que nos tocam na alma e ficam marcadas na nossa memória, na inequívoca junção do passado e do presente, como se lê em: «(…) Entretanto, os vivos voltaram ao passado para reconstruir a cidade e os seus jardins perfumados.» (pág.61) ou: «(…) A poesia é essa onda de choque que vem do passado e chega até nós, inaudível como cem mil cavalos a incendiar o mar.» (pág.93). Ou ainda «(…) Ninguém nos fala e não falamos com ninguém. Mas ouvimos vozes à nossa volta.» (pág.63).
Amadeu Baptista apropria-se da antiquíssima herança da liberdade de pensamento grego, quando o espírito se descobria a si próprio, essa força motriz da cultura grega, transmudada na capacidade para raciocinar e reflectir livremente sobre o sentido da existência, para reescrever a vivência actual dos gregos, dando-nos o seu testemunho: «(…) O labirinto serve para ampliar a beleza, o vínculo com o enigma dos que nos precederam.» (pág.69).
A linguagem da poesia de Amadeu Baptista é reconstruída de um modo muito querido ao poeta, do avesso para o direito, do longe para o perto, do interior para o exterior, do que a Grécia foi, é, ou lhe transmite ser, e é nesse manto encantatório que envolve o leitor. Todos os poemas narram histórias, por curtas que sejam, histórias que o narrador reinventa, não raramente remetendo-nos para o tema central, desenvolvendo-o, renovando-o. Há em cada um deles uma coesão temática e formal que se pode subentender pelos títulos que compõem o livro, mas também por uma narrativa de aparente simplicidade, lúcida, audaz, que canta a vida e a morte, o ser e o não ser, o lembrar e o esquecer.
As imagens, os símbolos, os padrões, as figuras usadas, são únicos em cada poema e é a partir deles que as palavras brotam escorreitas em versos que reconstroem o sentido do real. Vejamos dois exemplos: a partir da imagem do deus mitológico que enfrentou o Olimpo, o titã Prometeu, ele diz «(…) E assim foi que da treva árida roubei o fogo e fiz de mim proscrito. Agora estou preso a uma rocha agreste como castigo por incendiar espíritos.» (pág.87) ou, a partir da poderosa figura do deus do mar e protector das águas, escreve: «(…) Talvez aqui tenha nascido o universo, por acção de Poseidon e das libélulas.» (pág.86).
Raramente o narrador se torna coloquial, mas quando o faz, arrasta-nos consigo: «Os deuses, sabes, são uma danação que salva, faz-nos bem saber que existem, (…). Os deuses, sabes, são o nosso consentimento e a nossa recusa de mancharmos o presente com o que dilaceradamente reluz à nossa frente.» (pág.75).
É uma sorte poder apresentar uma voz poética com a enorme dimensão humana de Amadeu Baptista, sobretudo nesta época histórica, um tempo em que convivemos com a dilaceração da nossa própria fragilidade no planeta Terra.
Margarida Santos
Nasceu em Gaia, Portugal, em 1946. Licenciada em Escultura pela ESBAP/1968. Professora entre 1968 e 2006. Vários cargos no Ensino. Autora de Eventos, de Tertúlias Poéticas e de Programas Culturais. Autora de obra pública e privada dentro e fora do país. Realizou milhares de obras em desenho, pintura, escultura: bustos, retratos, relevos, troféus, múltiplos, medalhas. Fez Monumentos de Arte Pública Urbana, de interior e de exterior, em grande escala, implantados em diferentes locais do país. Realizou centenas de obras de autor, dezenas de exposições individuais. Participou em centenas de mostras colectivas. Trabalha em estúdio próprio desde os 18 anos. Promoveu e desenvolveu acções de cidadania. Dedicou-se à solidariedade na promoção da Dádiva Benévola de Sangue. Preside a Fundações de âmbito cultural. Trabalhou nos media: jornais, rádio e televisão. Há publicações suas dispersas em revistas, jornais, catálogos, antologias poéticas e outras. Fez crítica de Arte. Promove visitas guiadas ao seu estúdio a pessoas singulares, grupos e escolas. Apoiou e promoveu jovens artistas. Publicou os livros «eu amo tu» (Arte), «Fragmentos de uma Biografia Roída» (Biografia), «Luz Íntima» (Poesia). e «Do Barro ao Bronze – Assim nasce uma Escultura» (Arte/Escultura modelada). Tem livros por publicar e continua a escrever. Trabalha nos sectores artísticos com total criatividade. Promove causas sociais com independência.