Os grandes lagos da noite. José Manuel de Vasconcelos. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021.
O livro “Os grandes lagos da noite” de José Manuel de Vasconcelos apresenta-se-nos como um conjunto de textos, onde predominam os longos poemas monostróficos (apenas nove não o são!) em verso livre e que, apesar da ênfase dada ao sentido, não descura a manipulação da linguagem, veja-se, por exemplo, a questão dos Paradoxos:
“a alegria dos encontros na casa que era perpétua
mas que desapareceu nas inacessíveis constelações”
(p. 25)
“Este mundo não existe mas temo-lo connosco
pertence-nos, percorre-nos como um sonho matinal”
(p. 27)
Se a Ciência procura, naquilo que nos rodeia, o Objetivo e Universalizável, se a Filosofia caminha entre o Racional, o Crítico e o suscetível de ser sistematizado, se a Religião traça pontes entre o Racional e o Revelado, já a Arte, e aqui concretamente a Poesia, caminha por via indireta, muitas vezes aproximando-se do seu objeto num cismar em forma de anéis concêntricos e com procedimentos, que, tal como a queda das muralhas de Jericó, só nos conduzem ao essencial se incomuns. Vejamos: logo no título deste livro os lagos e a noite , parecem acenar-nos o mundo físico, quando na realidade se referem ao existencial (à experiência vivida) e ao ontológico (aquilo que na realidade é) – exemplos:
“inscrevendo a noite nos seus troncos velhos
As palavras saem pouco a pouco das gavetas”
(p 9)
“e o mar largo e distendido
é como o sonho que nos abraça na noite”
(p 39)
O tema da noite surge inextricavelmente ligado ao tema da Felicidade, que irrompe sempre onde o eu-poético não está:
“As flores estão sempre do lado de fora
da vida e a vidraça miserável olha para elas
…
a convidar-nos para a festa silenciosa
das estações
onde tudo recomeça sempre
devastando o nada”
(p 41)
Este excerto remete-nos para outro pilar fundamental deste livro: a ideia de que os momentos de fuga a uma obscuridade tremenda e invasora são sempre efémeros e esparsos na noite, aqui metamorfoseada no conceito de nada (daí se ter falado acima da questão Ontológica). Essas interrupções no breu, essas clareiras (breves e cíclicas) encontram-se geminadas com os afetos positivos, nomeadamente o Amor, e com a Escrita, sobretudo com a Poesia:
“e o som da sua voz deixa-me tranquilo
maçã que se suspende num raio de luz
porque no sangue correm as raízes
das palavras
Homem e mulher chegam assim a um pensamento branco
como se entre os dois respirasse o mesmo espelho”
(pp 18-19)
“No túnel das horas pressentem-se já
os estampidos da noite
a ascensão da espuma
na espiral do prazer”
(p 49)
A Poesia – tal como a existência humana – é, por conseguinte, um território ameaçado:
“A poesia é uma questão de eternidade
as sombras intocáveis tocam-se finalmente
deixando desassossegos”
(p 29)
Este cismar em torno do humano como ente na – e para a – noite surge de forma paradigmática no poema Elegia dos falsos amores (p 26), onde nas três dimensões da temporalidade se inscreve esse ferrete noturnal de que o eu-poético jamais conseguirá fugir: no Passado (até ao7º verso), no Futuro (do 8º ao 12º verso) no Presente (do 13º verso até ao final). Parecendo querer escapar a experiências ditas inovadoras na Arte Poética – seja isso o que pretenda ser –, Os grandes lagos da noite furta-se a um solipsismo gratuito e ultrapassado,firmando-se antes como um olhar atento à contemporaneidade nas suas múltiplas vertentes:
“Uma cerveja em voz baixa
frente às ilhas dispersas
dos enganos
com flexões da solidão
no ginásio do mundo”
(p 8)
O presente livro, nesta atualidade já referida, ilumina um dos maiores Paradoxos das sociedades ocidentais, que, ao mesmo tempo que dizem procurar o biológico, o light, o verde, o cuidado com o corpo, o autêntico, etc. vão-se emaranhando num solo de aparências, de narcisismo, de fake-news, de inautenticidade nunca antes visto. Acerca disso afirma Lipovetsky no seu mais recente livro: “ O novo lugar ocupado pela questão da autenticidade envolve um paradoxo flagrante. É, de facto, no momento em que o ideal da autenticidade se torna maciçamente consensual (…) O sucesso e a generalização extraordinária deste conceito no discurso social concretizam-se em paralelo com o eclipse da sua aura filosófica.” (In A sagração da autenticidade, p 11). É exatamente este rasgão, este hiato entre uma autenticidade propagandeada e aqui almejada pelo poeta, mas que a reflexão mostra escapando-se (no hoje) por entre os dedos, é este desajuste que faz com que os mais atentos desemboquem numa nostalgia lúcida:
“habitação da lucidez
vontade de seres cor mental
que irradie o mais autêntico
sabendo que nada amanhã será igual”
(p 57)
“Tinha uma pedra no meio do caminho
tropecei nela
e magoei-me para sempre”
(p 47)
Essa nostalgia, essa melancolia mesmo, em certos momentos, faz com que o eu-poético olhando em redor não consiga vislumbrar oceanos, horizontes, mares, mas tão-só lagos, lagos grandes…e incrustados na noite.