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Os grandes lagos da noite de José Manuel de Vasconcelos (Recensão)
Por Victor Oliveira Mateus Publicado em Literatura, Portugal, Recensões a 26 de Outubro, 2022 917 palavras
Poesia brasileira atual Anterior Revista Oresteia Nº 9, outubro de 2022. Seguinte

Os grandes lagos da noite. José Manuel de Vasconcelos. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021.

O livro “Os grandes lagos da noite” de José Manuel de Vasconcelos apresenta-se-nos como um conjunto de textos, onde predominam os longos poemas monostróficos (apenas nove não o são!) em verso livre e que, apesar da ênfase dada ao sentido, não descura a manipulação da linguagem, veja-se, por exemplo, a questão dos Paradoxos:

“a alegria dos encontros na casa que era perpétua

mas que desapareceu nas inacessíveis constelações”

(p. 25)

“Este mundo não existe mas temo-lo connosco

pertence-nos, percorre-nos como um sonho matinal”

(p. 27)

Se a Ciência procura, naquilo que nos rodeia, o Objetivo e Universalizável, se a Filosofia caminha entre o Racional, o Crítico e o suscetível de ser sistematizado, se a Religião traça pontes entre o Racional e o Revelado, já a Arte, e aqui concretamente a Poesia, caminha por via indireta, muitas vezes aproximando-se do seu objeto num cismar em forma de anéis concêntricos e com procedimentos, que, tal como a queda das muralhas de Jericó, só nos conduzem ao essencial se incomuns. Vejamos: logo no título deste livro os lagos e a noite , parecem acenar-nos o mundo físico, quando na realidade se referem ao existencial (à experiência vivida) e ao ontológico (aquilo que na realidade é) – exemplos:

“inscrevendo a noite nos seus troncos velhos

As palavras saem pouco a pouco das gavetas”

(p 9)

“e o mar largo e distendido

é como o sonho que nos abraça na noite”

(p 39)

O tema da noite surge inextricavelmente ligado ao tema da Felicidade, que irrompe sempre onde o eu-poético não está:

“As flores estão sempre do lado de fora

da vida e a vidraça miserável olha para elas

a convidar-nos para a festa silenciosa

das estações

onde tudo recomeça sempre

devastando o nada”

(p 41)

Este excerto remete-nos para outro pilar fundamental deste livro: a ideia de que os momentos de fuga a uma obscuridade tremenda e invasora são sempre efémeros e esparsos na noite, aqui metamorfoseada no conceito de nada (daí se ter falado acima da questão Ontológica). Essas interrupções no breu, essas clareiras (breves e cíclicas) encontram-se geminadas com os afetos positivos, nomeadamente o Amor, e com a Escrita, sobretudo com a Poesia:

“e o som da sua voz deixa-me tranquilo

maçã que se suspende num raio de luz

porque no sangue correm as raízes

das palavras

Homem e mulher chegam assim a um pensamento branco

como se entre os dois respirasse o mesmo espelho”

(pp 18-19)

“No túnel das horas pressentem-se já

os estampidos da noite

a ascensão da espuma

na espiral do prazer”

(p 49)

A Poesia – tal como a existência humana – é, por conseguinte, um território ameaçado:

“A poesia é uma questão de eternidade

as sombras intocáveis tocam-se finalmente

deixando desassossegos”

(p 29)

Este cismar em torno do humano como ente na – e para a – noite surge de forma paradigmática no poema Elegia dos falsos amores (p 26), onde nas três dimensões da temporalidade se inscreve esse ferrete noturnal de que o eu-poético jamais conseguirá fugir: no Passado (até ao7º verso), no Futuro (do 8º ao 12º verso) no Presente (do 13º verso até ao final). Parecendo querer escapar a experiências ditas inovadoras na Arte Poética – seja isso o que pretenda ser –, Os grandes lagos da noite furta-se a um solipsismo gratuito e ultrapassado,firmando-se antes como um olhar atento à contemporaneidade nas suas múltiplas vertentes:

  1. pela intertextualidade com autores modernos (Hilda Hilst, Herta Muller, Drummond de Andrade)
  2. pelo comprometimento social e político (Cf. poema O soldado na Praça Tiananmen )
  3. pela investigação científica, nomeadamente na área da astrofísica ( Cf. poema Cosmologia brevis)
  4. por um quotidiano que parece ir-se desmoronando:

“Uma cerveja em voz baixa

frente às ilhas dispersas

dos enganos

com flexões da solidão

no ginásio do mundo”

(p 8)

O presente livro, nesta atualidade já referida, ilumina um dos maiores Paradoxos das sociedades ocidentais, que, ao mesmo tempo que dizem procurar o biológico, o light, o verde, o cuidado com o corpo, o autêntico, etc. vão-se emaranhando num solo de aparências, de narcisismo, de fake-news, de inautenticidade nunca antes visto. Acerca disso afirma Lipovetsky  no seu mais recente livro: “ O novo lugar ocupado pela questão da autenticidade envolve um paradoxo flagrante. É, de facto, no momento em que o ideal da autenticidade se torna maciçamente consensual (…) O sucesso e a generalização extraordinária deste conceito no discurso social concretizam-se em paralelo com o eclipse da sua aura filosófica.” (In  A sagração da autenticidade, p 11). É exatamente este rasgão, este hiato entre uma autenticidade propagandeada e aqui almejada pelo poeta, mas que a reflexão mostra escapando-se (no hoje) por entre os dedos, é este desajuste que faz com que os mais atentos desemboquem numa nostalgia lúcida:

“habitação da lucidez

vontade de seres cor mental

que irradie o mais autêntico

sabendo que nada amanhã será igual”

(p 57)

“Tinha uma pedra no meio do caminho

tropecei nela

e magoei-me para sempre”

(p 47)

Essa nostalgia, essa melancolia mesmo, em certos momentos, faz com que o eu-poético olhando em redor não consiga vislumbrar oceanos, horizontes, mares, mas tão-só lagos, lagos grandes…e incrustados na noite.


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