Não Matarás! Lisboa: Gradiva Publicações, 2022.
Não matarás é o título do mais recente romance de Teresa Martins Marques. Esta obra, centrada no assassinato de Aldo Moro, insere-se num território pluridisciplinar, onde, para além da Ficção, se nos depara igualmente a História, o Jornalismo de Investigação, a Política e a Ética. Assim, e tomando como ponto de partida esta acessão, poder-se-á igualmente afirmar que Não matarás se integra num continuum de textos com uma intenção dual, que é a de desmontar acontecimentos relevantes no decorrer do nosso eu coletivo mostrando – ou tentando mostrar – pormenores desses acontecimentos até então pouco considerados e, simultaneamente e através desse labor investigante, forçar-nos a questionar valores, comportamentos e paradigmas sociais. De entre esses textos assumiram particular relevo: o trabalho de David Yalop em torno da morte de João Paulo I, a minuciosa investigação sobre o mundo do Opus Dei levada a cabo por Robert Hutchison e os inúmeros livros escritos sobre o assassinato de Olof Palm. Tomemos como exemplo um desses livros, que, não tendo a vertente ficcionada, mantem, contudo, esse confronto com a realidade objetiva e o seu respetivo desvelamento, falo do Contra todos os inimigos de Richard A. Clarke, homem estreitamente ligado ao Departamento Americano de Segurança Interna. Diz Clarke após os atentados do 11 de setembro: “A ideia de um ataque com aviões em Washington parecia remota para muita gente e os riscos de abater um avião numa cidade eram elevados. Além do mais, os opositores do nosso plano defendiam que a Força Aérea podia sempre enviar caças para proteger Washington em caso de ameaça. (…). Apenas tivemos êxito em garantir a autorização para que os Serviços Secretos continuassem a examinar as opções da defesa aérea (…) A maior parte das pessoas que souberam dos nossos esforços para criar um sistema de defesa aérea para o caso dos terroristas tentarem lançar um avião contra o Capitólio, a Casa Branca ou o Pentágono achou, pura e simplesmente, que nós éramos doidos. “ (Op. Cit. pp 191-192). Vemos, por conseguinte, que este género de obras quer possuam a vertente ficcionada, quer não a possuam, tem uma terceira função a juntar às duas referidas acima, que se traduz numa arqueologia do não sabido ou mesmo do deliberadamente não revelado. E esse trabalho, seja ele proveniente apenas de um discurso geometrizante de cariz científico ou opte antes por uma postura dialógica com a Ficção, não se tem restringido ao nosso passado recente: existem investigações credíveis e rigorosas sobre acontecimentos do nosso passado remoto, veja-se, por exemplo, o monumental trabalho de Jean des Cars sobre a morte do herdeiro do Império Austro-húngaro, morte essa que só em 1982 a Imperatriz Zita, a última do referido Império, resolveu revelar (e fundamentar) as suas suspeitas de se ter estado perante um complot político, que envolvia várias potências europeias. Vemos, pois, que em trabalhos deste tipo urge uma enorme exigência de rigor – caso contrário entrar-se-ia na vulgata das teorias da conspiração – que acaba por forçar os seus autores a uma tarefa, por vezes de vários anos, de confronto com as fontes; acerca dessa exigência de rigor veja-se o que diz a própria Teresa Martins Marques no seu livro: “Tentar descortinar o que é verdade ou mentira no caso de Aldo Moro obrigou-me a uma investigação que durou três anos e meio, viajando para Itália, consultando os mais variados documentos e lendo mais de uma centena de livros, dedicados ao caso Moro. “(p 294).
Em Não Matarás, a autora traça a vivência de Moro desde o momento em que a sua escolta é chacinada e ele é raptado, a 16 de março de 1978, no cruzamento da Via Mario Fani com a Via Stresa, até a altura – 55 dias depois – em que ele é assassinado. Em mais de duzentas páginas são trazidos à luz do dia: locais, datas, nomes, acontecimentos daquele que foi um dos mais significativos acontecimentos políticos das últimas décadas do século XX. Apenas dois pormenores que atestam o quão rigoroso é este trabalho: a caraterização psicológica de Paulo VI coincide exatamente com o que sobre este Papa diz Hutchison no livro acima referido, o mesmo sucedendo com a estranha morte de Calvi, em Londres: “Não restam dúvidas de que foi Andreotti quem obstaculizou à intervenção do Papa junto do Presidente da República. E não deixa de ser estranho! Conhecendo-se os escândalos que nos anos seguintes envolveram o IOR (Banco do Vaticano) e o Banco Ambrosiano, que culminaram com o assassinato de Roberto Calvi, e a demissão de monsenhor Marcinkus, presidente do IOR… “ (p 171). Escândalos, raptos, assassinatos, instituições, de tudo dá conta TMM neste seu livro, fixando conexões e datas. A ousadia de Moro tinha sido tão-só a tentativa de trazer o Partido Comunista para a esfera do poder através do célebre “compromisso histórico”, que colocaria à frente de um dos principais países europeus a Democracia Cristã juntamente com o PCI. Após o rapto, e sequestro, de Moro as principais figuras do Estado defendem a célebre “estratégia de firmeza” (de não negociação com as Brigadas Vermelhas; da não troca de prisioneiros) que desembocaria na execução de Aldo Moro e é disso que também fala Teresa Martins Marques: quais os principais defensores da “estratégia de firmeza”? A quem interessava a execução de Moro? O que sabia ele e qual a sua perigosidade? E é a tudo isto que este romance responde.
Paralelamente à trama política surge-nos a voz de Anna (nome de guerra de Letízia), a narradora de uma história paralela à real que com esta se vai entrelaçando. Ficção e realidade vão urdindo assim, de modo entrecruzado, uma tessitura com a função de captar o leitor para o interior do que está a ser narrado, para o cerne de um real que urge questionar e não aceitar passivamente, já que aquilo que é, se encontra escondido, muitas vezes, debaixo daquilo que aparece, e é nesse sentido que Não matarás, apesar de se tratar de um romance, se alia de novo a obras de outro tipo: leiam-se, por exemplo, as primeiras dezenas de páginas de La faiblesse du vrai da filósofa Myriam Revault d’ Allones ou Les Narcisse da psiquiatra e psicanalista Marie-France Hirigoyen (estes dois livros partem do conceito de fake news, do fenómeno Trump e da sociedade que aí é “pintada”), vemos, por conseguinte, que romances deste tipo têm uma função primordial: devolver-nos a esse Espanto essencial que nos força a sair dessa Caverna que tantos nos oferecem como sendo o “real verdadeiro”.
Este livro, para além do forte realismo político (perante os nossos olhos desfilam todas as figuras italianas significativas da época: Andreotti, Fanfani, Craxi, Casarolli, Giovanni Leone, etc.), desenvolve igualmente um minucioso realismo cultural, social e económico, atente-se às páginas relacionadas com a violação de Anna (pp 93-98); assim como também não é aqui menosprezado tudo o que corre a par com questões eminentemente éticas, por exemplo a questão dos valores esparsa por toda a obra (Exos: p 77, p 219).
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Victor Oliveira Mateus
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