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Poesia Portuguesa
Por Ana Mafalda Leite Publicado em Literatura, Poesia, Portugal a 6 de Outubro, 2022 1178 palavras
Não Matarás! de Teresa Martins Marques (Recensão) Anterior Poesia Portuguesa Seguinte

KOLN CONCERT NO ÍNDICO

O concerto de Colónia espalha-se pela baía até ao limite das
nuvens
ao tremer das águas sucessivo segue o altear do piano em seu
espasmo infinito
esqueço-me do rumor das casuarinas
esqueço-me de todos os sons
apenas o crescendo desse revolver do piano no interior das águas

e chove tanto de súbito no mar
chove essa chuva quente e boa
que se dilui água na água

transparente o azul chumbo de uma linha no horizonte desenha
estranha contemplação dos anos uns sobre os outros rolam nas
notas do piano
como uma odisseia formidável

um redemoinho sem sossego tão sossegado e brando
aqui pousado nesta janela por onde entra toda a paisagem do
Indico
entretecida do concerto de Colónia
aqui na baía com dois barcos que passam ao longe
e no seu passar passam com eles os meus breves dias, a
respiração do tempo bate devagar dentro das águas pousadas as nuvens
em longo sofá azul esmaecido repousam do céu a luz do impreciso devir

não sei se me apetece falar
todos os sons são mais precisos que os da fala
por isso apenas ouço
desde que nasci que ouço
todas essas vozes que caminham em silêncio pela garganta do
mundo e estremeço de admiração
pelas múltiplas raízes do seu correr de sentidos as nuvens
entretanto ficam azul escuro
e corre uma brisa devagarinho pela margem do esquecimento
acordo para a noite e percorro com o olhar a verdadeira face do
silêncio nestas notas que correm o piano em que o concerto nunca
mais acaba
devolvido à redundância de um solfejo a prumo na quilha do
mar adormeço

desse sono que é ser em devir em deriva
desse sono que é memória perdida lançada nas redes que deixei
que deixo que deixarei ao longo desta costa neste mar que me
devolve ao estado de ser perpétuo

pouso a cabeça entre os joelhos e o mar continua a entrar pela varanda invade a
mesa e alaga a casa de azuis ultramarinos, meia noite, esmeralda turmalina nas
notas de Keith Jarrett vibradas ao encontro daquelas amuradas de nuvens e
destes sofás de ouro que
a noite traz cheia com sua lua enlouquecida de tão gravitada em
luz

obesa de laranja e fruta etérea caminha por sobre as águas
como se fosse em direcção ao infinito
assim vai lenta e vagarosa a atravessar aquele horizonte do
silêncio em que o mar descobre mais para diante a ilha de Madagáscar

no seu pangaio de luz a lua vai nua
e já quase branca
ofélia-da-índia
rumor de sonho
deitada em sua morte iluminada faz chorar os muezins nos
píncaros dos minaretes mais a norte dizem que hamlet enlouqueceu

e com ele toda a costa deste castelo desta amurada índica

sopram búzios a levante keith jarrett mergulha no mar com seu
longo piano de cauda e as notas ouvem-se lentas a trinta e três
rotações

porque me esquece o coração de ser? porque tão estranho esquecimento me
povoa ? a porta abre-se de repente com o
vento e entra de novo a brisa índica pela mão de jarrett em
múltiplos acordes

o seu piano emergiu das águas e atravessa agora a planura
ondeante deste horizonte em que não acabo e a que pertenço como
um silabar de música ausente desde que nasci neste lugar neste
ondear interminável da memória

quem sabe um dia estas águas serão mais serenas já quase
próximas de não se ouvirem os rumores que fazem quando o bater
das ondas chega próximo do coração chega próximo desse lugar
apetecido donde se parte como de um cais sempre em viagem de
navio fantasma
que o tempo o traz nos seus inumeráveis regressos
demanda impossível em allegro andante ma non tropo

jarrett suspira e o mar de novo ondeia pelas semibreves que o
quase êxtase vibrou em mi maior quando lua de novo se despiu
das nuvens e mostrou seu perfil cheio entregue ao fim desta noite
talvez ao começo da próxima e de tantas outras que hão-de vir sobrepostas e lentas

aqui neste sossego sem qualquer memória em que apenas o
concerto de colónia se entranha num tempo agora ouvido junto ao coração em jazz
estribado a horizontes perdidos por ti keith jarrett
no meu mar índico agora cor de azul meia-noite em mim
navegando com barcos fosforescentes que singram altos em
acordes longe e longamente soprados

em soltos panos de lua

(Keith Jarrett, The Koln Concert)

***

OS PANOS DE SOL E DE LUA

meus panos estampados
a vermelho amarelo soltos
me envolvem laranja oiro

solar incêndio dos sentidos

enlaçados dançam minhas ancas
antigas de desejo

nos pés o som percutido estremece
arabesco de finíssimo coral

em coro as vozes
dolência intensa

batem palmas

o oriente
a solo se ouve

em sagrado lamento
em lento meneio
uma voz crescente sobe das águas

meu corpo despe seus panos de sol
e entra devagar pelo mar

djilaba de gaze a noite se dilui lenta
em açafrão de lua

***

CARROSSEL GIRALUME

aos meus irmãos Zé e Manuel

o voo do teu sorriso breve figura de criança com os caracóis em espiral
a infância enche-se de suspiros a floresta levantando lentamente os olhos
verdes desce a cambraia dos dias extasiados onde vais tão leve? debruado
tempo de estrelas gigantes os olhos redondos

seguem o voo dos pássaros nos ramos o tactear vermelho das flores de
acácia a rir no escuro elas baixam os dedos

é a festa de céus felizes
amadurecem os frutos as mãos tocam a idade onde canta o pássaro do eco
enchem-se do ouro da tarde dos sons repercutidos na chuva de fogo
leves luas rolam o cheiro doce de queimados incensos no vento
é noite nesse mês de longe uma pedra de quartzo solta uma cintilante
borboleta azul

outra lua declina pétalas meditando sobre coisas esquecidas a fronte
voltada para a noite dos jardins suspensos
lá onde o sangue das verdes florestas deambula no coração obscuro
lá onde pulsa uma outra lua maior ainda
amarelolaranja fogo e mais estranha

em roda contínua um carrossel giralume atravessa a noite

segue-a à volta do mundo

***

JANELA PARA O ÍNDICO

de azul em azul se espalha em fogo
as muitas águas não poderão apagá-lo

o teu beijo é um vinho perfumado
doce embriagado é o teu amor
e os meus versos tão leves
como os anéis dos meus cabelos

a lua resplandece como um espelho suspenso
a lua vagueia

borboleta

cintila o mar meu corpo
que o vinho seja rubro
nas ondas nos lábios se reflicta a lua cheia

esta mesma lua este mesmo mar nos ilumina meu amado
acende-se a época da monção das buganvílias escarlates
um trémulo sono

quem muito ama pouco lhe basta para suportar
a separação? o vento acaricia o teu rosto
a lua impregna-se da tua presença
e o vento do teu perfume

a janela do mar abrindo para os azuis ou um vinho
rubro de doçura? a janela do coração abrindo para os vermelhos
de novo a noite ou o dia? a lua cheia uma taça ébria de amor

pirilampos estrelas cintilam nas constelações desta noite
eu sou o teu sabor

selas-me o coração com a tua boca

***


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