A PALAVRA É O CORAÇÃO DA CASA: recensão ao livro Uma casa no outro lado do mundo.
Formado em filosofia é o poeta Victor Oliveira Mateus e a poesia é a sua casa. Não poderia deixar de esta construção ser alicerçada nos dois pilares de sua consciência, de um lado o pensar sobre o mundo, do outro, o manifestar-se em imagens. E aqui, como de um livro de poemas se trata, abordaremos a visão interiorizada que o poeta tem das coisas e do próprio fazer poético. A poesia se manifesta por metáforas que procuram aprender (apreender) o mundo e suas criaturas. Diz-nos, no posfácio, Fernando Pinto do Amaral: “Compreende-se que o papel da filósofa espanhola seja aqui tanto mais decisivo quanto consegue unir na sua escrita poesia e filosofia, sendo essa vocação filosófica uma tendência antiga de Victor Oliveira Mateus”. A filósofa aqui mencionada é María Zambrano, com sua metáfora sobre o coração. Sobre ela fala Fernanda Henriques, no seu artigo: María Zambrano e a razão poética: um olhar contemplativo: “(…) o reconhecimento da impossibilidade de um saber absoluto com a consequente condenação da tarefa humana de decifração do real a um quadro metafórico”. Onde fica, portanto, a decifração do enigma da compreensão da realidade?
Segundo a filósofa só entendemos a realidade a partir de duas formas interpretativas, uma a racional, o cérebro, e a outra metafórica, o coração (HENRIQUES, 2011, p. 621). Gaston Bachelard, em texto posterior, chega a uma concepção análoga ao inferir: “Para bem especificar o que pode ser uma fenomenologia da imagem, para especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é, mais que uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma. Deveríamos então acumular documentos sobre a consciência sonhadora.” Cérebro e coração, espírito e alma, são dualidades interpretativas similares. Nelas podemos basear-nos para procurar entender, ou melhor dizendo, ler e sentir, a poesia de Victor.
Partindo-se do título uma casa no outro lado do mundo vemos a importância que a metáfora da casa e do movimento/distanciamento tem para o poeta. No poema a casa, p. 9, temos:
O poema não é uma casa
onde me instale
com bagagens retortas
sufocos
uma casa com janelas entaipadas
paredes com vidros e ponta d’aço
cadeados de muitas voltas
o poema é uma casa de plantas às avessas
(…)
Aqui já se mostra a evidente dicotomia entre o exterior (as paredes da casa) e o interior (o poema é uma casa de plantas às avessas). A casa existe como objeto, mas para entendê-la só com o poema que mostra o avesso da casa. Dizendo de outra forma, o poeta só pode ter o entendimento do todo, se unir o cérebro que pensa a casa e o coração que a ilumina de dentro, através da palavra, do poema. A metáfora tem esse poder de ligação entre o sólido e obscuro, e o fluido e transparente. O poeta é jogado de um lugar seguro, mas insuficiente, para outro inseguro, mas transparente, como no poema a margem, p. 12: o sítio/por onde te defines/tem agora uma transparência/que julgavas inalcançável”. Para essa iluminação ser conseguida só através da imagem do movimento, rios, naufrágios, mudanças. Só correndo o risco da viagem interior é que o poeta pode mudar de casa:
(…)
E
por fim
constrói a tua casa
no outro lado do caminho
nesse lugar onde ninguém passa p.16.
É uma entrega radical e de estranhamento, de saber-se correndo o risco de, ao aprofundar suas verdades interiores, construir a sua casa “nesse lugar onde ninguém passa”. O poeta tem consciência disso e encontra-se pronto: (…) podes levar-me quando quiseres/ estou pronto p. 18.
Para isso, o poeta tem a poderosa arma da palavra e do poema, a metáfora que habita o coração da casa. Só ela faz com que o eu-lírico do poeta não se desfaça, como no poema perseguição:
(…)
Vieste
e mudar de casa
não é mudar de caminho
há sempre qualquer coisa
que vem agarrada a nós
Essa coisa que vem “agarrada a nós” é a subjetividade, o coração, a alma. Feito diz o poeta no poema relendo maría zambrano, p. 28:
O coração não é uma metáfora
um enigma que à beira da vida
nos ilumina o caminho
não é um subterrâneo
uma alfurja empestada
onde armazenamos memórias
e desencantos
não é tão-pouco um órgão
procurando função e estatuto
o coração não é uma metáfora
mas a fonte de todas as metáforas
um caudal
um solo originário
donde resuma o que não temos
nem nunca poderemos ter
A poesia de Victor Oliveira Mateus, nesse livro, não se resume a esse recorte que fiz para entender sua concepção da metáfora e da poesia. Escolhi esta visada por me parecer a que mais me chamou a atenção na minha leitura. A poesia em Victor pulsa e pensa, coração e cérebro, alma e espírito. Liga o simples ao complexo, o denso ao fluido, o obscuro ao transparente. Poesia é, então, a ponte entre essas realidades aparentemente dessemelhantes. Basta ter a coragem de atravessá-la.
REFERÊNCIAS
1. HENRIQUES, Fernanda. María Zambrano e a razão poética: um olhar contemplativo; https://docplayer.com.br/11189343-Maria-zambrano-e-a-razao-poetica-um-pensar-contemplativo.html. acesso em 05/10/2022.
2. ________. María Zambrano e as metáforas do coração; https://www.academia.edu/27561601/Maria_Zambrano_e_as_Met%C3%A1foras_do_Cora%C3%A7%C3%A3o Acesso em 05/10/2022.
3. BACHELARD, Gastón. A poética do espaço; Martins Fontes, São Paulo, 1998.
4. MATEUS, Victor Oliveira. uma casa do outro lado do mundo; Ed. Labirinto, Fafe, 2022.