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François Villon, o "poeta maldito" da Idade Média, evoca Paris (Ensaio)
Por Leocádia Regalo Publicado em Ensaio, Literatura, Portugal a 5 de Outubro, 2022 2015 palavras
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Francois Villon, o “poeta maldito” da Idade Média, evoca Paris

Nos últimos anos da Idade Média, um poeta como Eustache des Champs celebra galhardamente, numa balada intitulada “Paris”, os encantos da capital francesa.

C ‘est la cité sur toutes couronnée

Fontaine et puits de sens et de clergie

Sur le fleuve de Seine située:

Vignes, bois a, et terres et prairie.

De tous les biens de certe mortel vie

A plus qu’autres cités n’ont;

Tous étrengers l’aiment et l’aimeront,

Car, pour déduit et pour être jolis

Jamais cité telle ne trouveront:

Rien ne se peut comparer à Paris.

Ao refrão Rien ne se peut comparer à Paris, Villon acrescentará mais tarde, com convicção, na “Ballade des Femmes de Paris”, Il n est bon bec que de Paris… Eis-nos perante um espírito medievo que, com um acentuado realismo (concebido não como designação periodológica, mas como processo de representação mimética do real) porá a nu, em termos mais mordazes do que os que usou Eustache des Champs, certos aspectos da vida parisiense e dos cancros sociais que infestaram Paris, no fim da Idade Média.

Um jovem estudante e posteriormente Mestre da Sorbonne, que se presume ter desaparecido aos 32 anos (1431 – ?), consagrado pela lenda, tanto na sua poesia profundamente autêntica e reveladora dos bas fonds de Paris, como na sua personalidade tumultuosa e rebelde que lhe valeu a prisão e a clandestinidade, há-de atravessar os séculos na literatura francesa e ser reconhecido pelos poetas românticos do século XIX, nomeadamente Baudelaire, Nerval, Verlaine e Rimbaud, como uma referência arquetípica de poeta maldito, assim como, no século XX, marcou a poesia de Georges Pompidou, de Bukowski ou Bob Dylan.

Villon ama Paris como meio degradante onde se alberga toda a corja de ladrões, debochados, prostitutas, seres duvidosos e mal queridos por uma sociedade aburguesada que os odeia e teme. As suas composições poéticas não retratam a corte ou a aristocracia pudica que, nos últimos anos da Idade Média, começa já a perder um pouco da sua prepotência, prepotência essa tantas vezes posta em risco pela jacquerie ou por uma turba de burgueses que desejam ascender às altas esferas sociais. Este passo de Froissart é bem elucidativo.

Alors ils s’assemblèrent et s’en allérent sans autre conseil et sans aucune armure, si ce n’est pas de bâtons ferrés et des couteaux, en la maison d’un chevalier qui demeurait près de là. Ils brisèrent la maison, tuèrent le chevalier, la dame et les enfants petits et grands et mirent le feu à la maison… Ainsi firent-ils en plusieurs châteaux et bonnes maisons.

As consequências de uma quase guerra civil foram mais maléficas para a França do que propriamente a Guerra dos Cem Anos.

São, portanto, os bas fonds, as tabernas, os bordéis, a prisão que formarão o cenário duma poética que Villon traça em termos irónicos, muitas vezes obscenos, e que levará o leitor a penetrar na Paris de licenciosidades, de elasticidade moral, onde o estudante do Quartier Latin se preocupa menos com a Escolástica do que com o gozo desenfreado da decadência social e moral.

O próprio Villon, através de certas alusões, pinta-nos o ambiente universitário da época. O Quartier Latin era frequentado por estudantes de todas as condições sociais. Ao lado dos filhos dos grandes senhores, arrastavam-se os menos privilegiados pela sorte.

Et les autres sont devenus,

Dieu merci! grands seigneurs et maîtres;

Les autres mendicant tous nus

Et pain ne voient qu’aux fenêtres;

Le Testament, XXX

O aproveitamento dos alunos era bastante deficiente. O poeta libertino confessa:

Bien sais, si j’eusse étudié

Au temps de ma jeunesse folle,

Et à bonnes moeurs dedié,

J’eusse maison et couche mole.

Mais quoi? Je fuyoie l’école

Comme fait le mauvais enfant.

Le Testament, XXVI

Entretanto, as horas de ociosidade eram preenchidas com os divertimentos mais extravagantes. Na estrofe 12 do Lais de François Villon, lê-se :

Item, je laisse à Saint Amant

Le Cheval Blanc avec La Mule

Trata-se de uma alusão às tabuletas das tabernas e das hospedarias, que os estudantes arrancavam e passeavam em cortejo, a fim de casarem, por exemplo, o cavalo branco com a mula. Deste modo, Villon diverte-se, legando aos seus amigos os letreiros das tabernas que ele frequentava. Conhece os pions que bebiam pourpoint et chemise ( Le Testament, LXXXIII) assim como o taberneiro Rogin Turgis, a quem roubou, com grande risco, quatorze muids de vin. Troça dos frades, como Maître Laurens, que tem les yeux si rouges/ Pour le pêché de ses parents/ Qui burent em barile et courges ( Le Testament, CXXIV). Escreve a “Ballade et Oraison” para Jean Cotart, elogiando o prazer báquico do compincha, ao mesmo tempo que pede a intercessão do Prince divino pela sua alma. No envoie da “Ballade Finale”, escreve:

Prince, gent comme émerillon,

Sachez qu’il fait au departir:

Um trait but de vin morillon,

Quand de ce monde vont partir.

Como se pode perceber, Villon frequentava assiduamente os meios mais duvidosos, na companhia de outros colegas. Paris estava infestada de tabernas, de prostíbulos e das chamadas estuves. Segundo os historiadores, existiam oito ruas com esta denominação, onde a população masculina procurava o deboche, em teatros e bordéis, com as Margots da época, que se banhavam na presença de mirones de olhos lascivos. Na “ Ballade de Merci”, o poeta crie merci a todos os vagabundos e meretrizes que ele conheceu, nestas ruelas mal afamadas e, num rondeau, aconselha o seu amigo Jenin l’Avenu a frequentar as estuves.

Villon explica mesmo a condição da mulher do seu tempo que, por dinheiro, vende o corpo: no princípio elas eram honestas; no fulgor da juventude apaixonaram-se secretamente por um clérigo ou por um estudante, mas cansam-se depressa desse amor venal e caem na prostituição:

Honnêtes si furent vraiment,

Sans avoir reproches ni blâmes.

S’il est vrai qu’au commencement

Une chacune de ces femmes

Lors prinrent, ainsi qu’eussent diffamés,

L’une, un clerc, un lai, l’autre un moine,

Pour éteindre d’amour les flammes

Plus chaud que feu Saint Antoine.

Le Testament, LXI

E conclui:

Que c’est nature femenine

Qui tout vivement veu aimer.

Le Testament, LXIII

A “belle haumière”, bafejada na sua juventude, revolta-se contra a velhice e contra as necessidades da profissão, que fizeram dela um farrapo. O poeta pinta, com traços bem realistas, todo um corpo em corrupção, cansado pelo vício, corroído pela concupiscência. Contudo, a cortesã não se deixa vencer pela revolta. Ainda lhe resta qualquer coisa a fazer: incitar as suas pupilas a viver hedonicamente a sua juventude.

Paris estava, então, mergulhado na prostituição. A mulher, o ser frágil que facilmente se deixava seduzir, arrastava-se lugubremente pelos cantos.

Regarde m’en deux, trois, assises

Sur le bas du pli de leurs robes,

En ces moutiers, en ces églises;

Tire toi pres, et ne te hobes;

Tu trouveras la que Macabres

Onques ne fit tels jugements.

Entends; quelque chose en dérobes:

Ce sont de beaux enseignements.

Le Testament, CXLV

As próprias ordens religiosas colaboravam no desfile, esquecendo os votos monásticos.

Si ne suis je pas qui leur donne,

Mais de tous enfants sont les meres,

Et Dieu, qui ainsi les guerdonne,

Pour qui souffrent peines ameres.

Il faut qu’ils vivent, les beaux peres,

Et mêmement ceux de Paris,

S’ils font plaisir à nos commeres

Ils aiment ainsi leurs maris.

Le Testament, CXVII

Daí, as interrogações sem resposta na “Ballade des Dames du Temps Jadis” e na “Ballade des Seigneurs du Temps Jadis”. Villon, fazendo uma retrospectiva das mulheres castas e dos homens que pela glória engradeceram a pátria, pergunta:

Mais ou sont les neiges d’antan?

Mais ou est le preux Charlemagne?

A sociedade de que ele faz parte escoou todo o sentido de pudor e de honra. As virgens e os heróis perderam-se na bruma do tempo. Só a morte, que atinge todos, poderá depurar um mundo em putrefacção.

Je congnois que pauvres et riches,

Sages et fous, prêtres et lais,

Nobles, vilains, larges et chiches,

Petits et grands, et beaux et laids,

Dames à rebrassés collets,

De quelque condition,

Portant atours et bourrelets

Mort saisit sans explication.

Le Testament, XXXIX

Para além de todos estes males, a indigência tomava proporções alarmantes. Villon faz referência aos maltrapilhos que dormiam ao relento pela cidade. E tremiam…

…à chere renfrognée

Maigres , velus et morfondus,

Chausses courges, robe rognée

Gelés, murdris et enfondus.

Le Laís, XXX

A esta classe de vagabundos pertencem universitários como o poeta, que tentam todos os meios de sobrevivência, envolvendo-se em rixas e recorrendo ao roubo. É vê-los pelas ruas, pelas feiras, cantando e dançando à laia de jograis ou menestréis, exercitando todos os truques para aliciar o espectador menos experiente, tentando ganhar alguns cobres. No “Épitre à mes amis “, o poeta alude a este tipo de parisienses e aconselha-os na “Belle Leçon aux Enfants Perdus “e na “Ballade de Bonne Doctrine a Ceux de Mauvaise Vie”.

A turba era completada por malfeitores chamados “les compagnons de la coquille “ ou “les coquillards”, assassinos e ladrões da mais torpe origem, que constituíam o terror da população. Para envolver de mistério a sua actuação e, sobretudo, para se esquivarem às diligências policiais, os coquillards usavam uma espécie de gíria, chamada “le jargon jobelin “.

É possível que Villon fizesse parte dessa quadrilha, pois, nas onze baladas em jargon et jobelin, mostra-se bem identificado com esta gíria e dá conselhos de prudência, para que assim estes delinquentes se livrem da forca.

Depois desta vida de boémia, o poeta esperava a morte temerosamente. Como o destino dos enfants perdus é a forca, Villon escreve o seu Épitaphe, composição plena de sinceridade e realismo. É que, na Idade Média, a ideia de morte obcecava e aterrorizava as pessoas, sendo representada nos seus aspectos mais macabros. A própria exposição dos enforcados fazia lembrar aos transeuntes que a justiça era implacável. Assim vagueva a morte com os seus espectros fatais, na Ballade des Pendus, escrita por Villon perante a sentença de enforcamento que caiu sobre a sua cabeça, cassada em 1463, data em que é banido de Paris por dez anos. A partir daí, sabe-se que viajou por França, tendo mesmo sido acolhido por Charles D’Orléans, o príncipe poeta, mas perdeu-se-lhe o rasto…

A obra de François Villon, encarnada como conjunto de textos que não podem deixar de estar relacionadas com os substratos político-sociais que os geram, representa indubitavelmente um contributo apreciável para um estudo sociológico de Paris, no declinar da Idade Média.

A guerra, a fome, as epidemias que alastravam pela França, como por quase toda a Europa, criando nas populações vícios e formas de comportamento justificados em função dos condicionalismo apresentados, conduziram, em última instância, a uma decadência moral, cujas consequências inevitáveis eram a luxúria e a pilhagem.

Os diversos aspectos dessa decadência projetados na obra poética de Villon e, mais do que isso, o processo de elaboração de uma escrita simultaneamente cruel e sarcástica, colocada ao serviço de uma representação desapaixonada dos costumes da cidade que tanto o absorveu, constituem a sua originalidade e independência de pensamento, tornando-o o detentor de uma obra que continua a fascinar cinco séculos depois.

Bibliografia:

VILLON, François, OEuvres Poétiques, Paris, Garnier-Flammarion, 1965.

LE GENTIL, Pierre, Villon, Paris, Hatier, 1967, coll.”Connaissance des Lettres”, n. 59.

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