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A poesia do neo-realismo em Portugal (Ensaio)
Por Maria João Cantinho Publicado em Ensaio, Literatura, Portugal a 5 de Outubro, 2022 4829 palavras
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A poesia do neo-realismo em Portugal

Por Maria João Cantinho (i)

É transparente como água que literatura não é política nem sociologia e que arte literária não é propaganda. Mas não é menos transparente que toda a obra literária – voluntária ou involuntariamente – exprime uma posição política e social e que toda ela faz propaganda seja do que for (inclusivamente do próprio umbigo).

Álvaro Cunhal, «Numa encruzilhada dos homens», in Seara Nova, 615, Lisboa, 1939, p. 286.

Toda a Arte é conflito e unidade.

Mário Dionísio

Foi numa conferência pronunciada em 1941, publicada depois na sua obra A Arte e a Vida, que o poeta e crítico António Ramos de Almeida opôs aos presencistas o «ideário» que norteava o que uma geração mais jovem pensava sobre a arte e a vida, as suas relações, abrangendo em especial o romance e a poesia. O autor atacava, de forma inequívoca, o isolamento do artista em «relação aos outros, com a vida e com a realidade.» (Guimarães, 1969, p. 109). Critica este o facto de encontrar «a Presença eivada de um esteticismo fechado dentro dele mesmo» (Ibidem). Foi precisamente esse esteticismo e a defesa da pureza da arte que isolou a Presença das inquietações da vida e da cultura nacionais e dos problemas vitais da história (à época vivia-se a Segunda Grande Guerra, como contexto europeu). Tratava-se assim de uma ruptura que as novas gerações, nomeadamente a partir de finais da década de 30 e começos da década de 40, face à geração da geração da Revista Presença, liderada por escritores como João Gaspar Simões, José Régio, António Sérgio, entre outros. E, a partir de 1941, a colecção Novo Cancioneiro consagrou esta nova geração de escritores, a que se chamou o neo-realismo. Alguns dos poetas neo-realistas, que se afirmarão no Novo Cancioneiro, começaram a publicar, no entanto, na Revista Presença, tais como Joaquim Namorado, Fernando Namora, Mário Dionísio ou J.J. Cochofel. Acerca deste grupo pós-presencista, «Edmundo Bettencourt, em 1944, diz-nos explicitamente que “apesar de

incompletamente definido (…) deve ter aproveitado a obra de libertação, sobretudo no que diz respeito à forma e à técnica» (Guimarães, 1969, p. 114), divergindo quanto ao critério de encarar a Arte.

Porém, que factores e circunstâncias determinaram o aparecimento do neo-realismo português, a par da sua expressão noutros países? Não podemos esquecer a existência do Congresso do Partido Comunista realizado em 1934, em Moscovo. Alexandre Pinheiro Torres afirma no seu artigo sobre o neo-realismo (Torres, 2002, p. 183) que o facto fez aparecer «a polarização dos marxistas-leninistas portugueses em torno de algumas revistas literárias que surgiram logo nesse ano e seguintes» (p. 183). António Pedro Pita defende que o neo-realismo traz na sua génese uma questão sobretudo ética e estética (Pita, 2002, p. 12), o que significa que o plano ético é determinante para a estética neo-realista, ou seja, para sermos mais precisos, o conteúdo deve prevalecer sobre a forma.

As publicações que mais se destacaram, do ponto de vista literário, foram A Imagem (mais ligada ao cinema), O Diabo, Vértice e a Revista Sol Nascente. O que é preciso salientar aqui é o aparecimento da ideologia relacionada com a literatura, tanto no que se referia à ficção como à poesia. Enquanto José Régio clamava contra a ideologia e contra o seu papel na arte e na literatura, os jovens que se reuniam em torno destas novas revistas defendiam a importância da ideologia e não deixa de ser sintomático que tenha sido Álvaro Cunhal o primeiro a defendê-la, num artigo assinado em O Diabo, de 27 de fevereiro de 1938 (Torres, 2002, p. 184). Foi neste contexto que surgiram as designações de neo-humanismo, que se opunha ao humanismo burguês de oitocentos. E é este novo humanismo que, de mãos dadas com a ideologia marxista, irá constituir o ideário do neo-realismo. Como nos diz Alexandre Pinheiro Torres, «não há no neo-realismo qualquer compatibilidade ideológica com o socialismo de oitocentos» (Torres, 2002, p. 189).

Referimo-nos evidentemente a Proudhon e ao socialismo do século XIX. E, de acordo com Alves Redol, um dos mais influentes neo-realistas, «A arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social». (Torres, 2002, p. 191). Pinheiro Torres assinala também a construção da «Frente Popular» (p. 192),

como o célebre contexto político e ideológico que reforçou o carácter geracional do neo-realismo. Nas revistas Sol Nascente e O Diabo é claramente visível o espírito político e a relação com as manifestações culturais que o reflectiam. Os autores que esta geração mais lia eram George Friedmann, Henri Lefebvre e Gutermann, todos eles portadores da herança marxista-leninista. Por outro lado, saliente-se a importância de um autor como Plekhanov, nomeadamente da sua obra A Arte e a Vida Social, que forneceu as bases para a argumentação contra os adeptos presencistas da «arte pela arte». Para Plekhanov,

tudo o que contribua para que se atinja um estado de maior justiça social, tudo o que traga um contributo positivo para que a opressão acabe, tudo isso é progresso social e uma arte ligada a esta ideia estrutural é certamente uma arte socialmente progressiva. Progressiva no sentido de se considerar como superior a posição em que se coloque o artista no centro dos acontecimentos do mundo e não acima ou ao lado deles. (Torres, 2002, p. 196).

Plekhanov afirma, assim, o estatuto da arte útil contra a arte inútil, encontrando-se aquela ligada ao marxismo-leninismo, preconizando a liberdade para todos os homens. A conferência de Redol, em 1936, que deu o «pontapé de saída» do neo-realismo, enquanto texto teórico, ainda antes da obra de António Ramos de Almeida, tem como fonte privilegiada as posições de Plekhanov. Ramos de Almeida estrear-se-ia, em 1938, com o livro de poesia Sinal de Alarme, o qual se deve contar entre as primeiras obras do neo-realismo. Na mesma altura, redige um artigo intitulado «Um livro, um crítico, uma questão» onde se posiciona contra o presencismo e, em particular, contra o excesso de subjectivismo dos artistas do Primeiro e Segundo Modernismos. Não que ele não reconheça o seu valor, mas advoga uma mudança de ênfase em função do espírito que se vivia nessa época na Europa. «A insistência de Ramos de Almeida na indissolubilidade forma-conteúdo (…) é na verdade, o horizonte ideal para que aponta o Neo-Realismo» (Torres, 2002, p. 200). Todavia, esta indissolubilidade pressupõe a prevalência do conteúdo, ou seja, da ideologia.

Esta mudança de ênfase de que nos fala Alexandre Pinheiro Torres não constitui apenas uma alternativa a práticas literárias anteriores nem se pode dizer, como afirma

Carlos Reis, «que o neo-realismo é um prolongamento ou uma simples reedição do realismo, tal como o praticaram autores como Balzac, Flaubert e Eça de Queirós» (Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, 1981, p. 13). São profundamente diversas as «raízes ideológicas, as preferências temáticas e as próprias técnicas literárias utilizadas» (Ibidem, p. 14). Por outro lado, nunca será demais dizê-lo, «o neo-realismo baseia-se numa concepção marxista do fenómeno literário» (Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, 1981, p. 16). Assim, olhando para a literatura como uma forma de consciência social, ele «valoriza a dimensão ideológica da criação literária, bem como a sua capacidade de intervenção sócio-política, à luz dos princípios fundamentais do materialismo histórico.

É nesta altura que aparecem as grandes discussões entre presencistas e neo-realistas, nas principais revistas, que são os seus órgãos de comunicação (como já referimos anteriormente), as quais se encontram compiladas por Carlos Reis (Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, 1981). Porém, o poeta neo-realista Mário Dionísio (e uma das vozes mais fortes destas querelas entre presencistas e Neo-Realistas) defende «que a geração neo-realista ainda não tem existência antes de 1939. Alexandre Pinheiro Torres questiona-se até que ponto esta afirmação será verdadeira (Torres, 2002, p. 206). Alguns autores, como Afonso Ribeiro, já tinham publicado contos, bem como Fernando Namora e Carlos de Oliveira haviam publicado em parceria um livro de contos. O que Mário Dionísio pretende dizer é que, face aos presencistas, ainda não existe a consciência de uma geração neo-realista, pois as produções dos jovens autores ainda não têm peso suficiente. Também a revista Sol Nascente proclamava que a tarefa grandiosa de se opor à metafísica e ao psicologismo «não podia ser obra de alguns indivíduos, mas antes de um desideratum de formação duma verdadeira consciência colectiva.» (Torres, 2002, p. 207). A ideia de uma transformação colectiva da realidade e do papel actuante do escritor (Henriques, 2011, p. 32), configurando um novo humanismo é a base da nova posição a que se chamou o neo-realismo.

Considere-se a poesia de Mário Dionísio, nomeadamente alguns poemas publicados em Sol Nascente, em 1937, «como os mais antigos que (…) é possível encontrar, imbuídos já do espírito do novo movimento. Estes poemas intitulam-se

«Caminho», «Complicação» e «Poema da Mulher Nova» (Torres, 2002, p. 212). Nestes poemas fala-se, não de um eu, mas de um nós, referindo o «caminho» de que os homens oprimidos passaram a dispor para lutar pela sua libertação e vencer os obstáculos. Autores como Fernando Namora, por exemplo, e Carlos de Oliveira, muito jovens, teriam aparecido a publicar na Revista Presença, tendo salientado J.J. Cochofel (mais tarde, em 1962) que Namora fez a sua aprendizagem junto da Presença, reflectindo-se esta «no confessionalismo introspectivo» (Torres, 2002, p. 215). A outros terá acontecido o mesmo, enquanto se iam consciencializando do ideário do neo-realismo, deixando o «eu» para adoptar o «nós». Todavia, distinguem-se ainda pelo abandono da teologia e da transcendência, ambas defendidas pelo movimento da Presença. Há, antes, uma profunda crença no dionisíaco e uma fé no irracional e no inconsciente, tomando-as como as verdadeiras forças que tornam possível a poesia autêntica (Vários, 1989, p. 16).

A ideia de uma geração ia-se, pouco a pouco, firmando, até tomar a sua feição mais expressiva no Novo Cancioneiro, que aparece como colecção de poesia em 1941 e que teve uma curta duração. Devemos, no entanto, referir as publicações Sol Nascente, O Diabo, Seara nova, Altitude, etc. Nestas e noutras revistas surgiram também textos em prosa e em poesia de autores neo-realistas que só se estreariam em livro mais tarde. Esta ideia de um fenómeno geracional está presente em três testemunhosii de diversa proveniência que atestam esta afirmação, mas destacamos o de Adolfo Casais Monteiro que, numa recensão crítica, afirmava: «Começa agora a desenhar-se a fisionomia de uma geração de poetas, cujas feições se podem já distinguir (…).» (Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, 1981, p. 23). Um outro factor que permite distinguir o fenómeno geracional, enquanto factor aglutinador, é o conflito com a geração anterior (Ibidem, p. 23).

Alexandre Pinheiro Torres assinala o aparecimento do primeiro grande livro de poemas do movimento neo-realista com a publicação de Rosa dos Ventos, de Manuel da Fonseca, em edição de autoriii e datada de 1941 (Torres, 2002, p. 219). A unanimidade dos críticos em relação a esta obra é uma evidência. Tratava-se de uma obra que trazia uma reviravolta temática na poesia portuguesa, com «inspiração bastante superior às primeiras produções que haviam aparecido no Sol Nascente» (Ibidem)iv. De Fernando

Namora temos em 1941, Terra, que inaugurou a colecção Novo Cancioneiro. Em 1941, apareceram mais cinco volumes da colecção: Poemas, de Mário Dionísio, Sol de Agosto, de J.J. Cochofel, Aviso à Navegação, de Joaquim Namoradov, Os poemas de Álvaro Feijó, Planície, de Manuel da Fonseca. Em 1942, foram editados mais três livros: Turismo, de Carlos Oliveira, Passagem de Nível, de Sidónio Muralha, Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro. Depois disso, quando o entusiasmo parecia extinto, surgiu em 1944 a obra póstuma de Políbio Gomes dos Santos, Voz que escuta. E foi o fim da colecção. De fora ficaram poetas como José Gomes Ferreira, uma das mais importantes vozes do neo-realismo poético, que chegou a ser convidado, mas essa edição nunca se concretizou.

Concentrando-nos, já não na ideia de geração ou dos factores que contextualizaram o aparecimento do neo-realismo, na questão da poesia (e deixando de lado a produção ficcional), interroguemo-nos quais as suas questões fundamentais. Uma delas, que salta à vista (e que foi bastante discutida), é a primazia do conteúdo sobre a forma, como já aqui foi referido. Para os neo-realistas, a poesia constituía-se como uma escrita que denunciava os males sociais e advogava o «despertar da consciência dos homens alienados face à realidade da justiça social» (Vários, 1989, p. 19). A poesia configurava-se assim como uma «arma de combate», essencialmente nocturna, em que «a noite aparece como propícia aos sonhos diurnos, à idealização de um mundo melhor, em que a verdade resgatasse todas as máscaras (…)» (Ibidem, p.18). O neo-realismo não procura dar só a realidade, como o afirma Carlos Reis (Reis, O discurso Ideológico do Neo- Realismo Português, 1983, p. 41), mas realça o heroísmo da luta daqueles que são os meios de transformação e este heroísmo não é individualista, mas sim colectivo. Por essa razão, o que mais importa é o conteúdo, como defendia Armando Bacelar, e a sua utilidade, que não deve ser perturbado por excessos formais. Também Alves Redol, umas das vozes mais importantes do grupo, defende a primazia do conteúdo (Reis, O discurso Ideológico do Neo- Realismo Português, 1983, p. 59). O conteúdo, como podemos deduzir aqui, é a informação ideológica. Como o poeta Mário Dionísio o proclamava no seu poema «Arte Poética»: «A poesia está na luta dos homens, /está nos olhos abertos para amanhã» (Vários, 1989, p. 151). António Ramos de Almeida di-lo no seu livro «A Arte e a Vida» de outra forma: «a arte é arauto, grito, voz expressiva

daquelas forças silenciosas que dormem nas entranhas mais recônditas da vida social. Eis porque a arte tem sido o clarim das grandes revoluções (…).» (Almeida, A Arte e a Vida, 1941, p. 24).

Como já aqui foi dito, os poetas neo-realistas, à excepção de Carlos de Oliveira, começaram todos a publicar em revistas anteriores ao Novo Cancioneiro. De acordo com alguns críticos à época, esta evolução, do presencismo para o neo-realismo, cobriu essa poesia de alguma ambiguidade: «Os últimos anos de existência da revista Presença, correspondendo ao despontar de alguns dos principais poetas neo-realistas, constituem assim um ambíguo e, por isso mesmo, interessante e fecundo período da nossa poesia» (Henriques, 2011, p. 62). Isto não significa que as suas poéticas não tenham evoluído para um recorte mais interventivo e social, como foi a preocupação essencial do neo-realismo. Todavia, no seu trabalho, João Laranjeira Henriques elenca algumas das linhas poéticas que se apresentavam nas obras dos jovens poetas neo-realistas antes de assumirem uma poesia comprometida, salientando um certo intimismo e, mesmo, um lirismo melancólico, fruto da influência do presencismo. Salientemos aqui, para se perceber a passagem da poética presencista à neo-realista, o texto fundamental de António Ramos de Almeida, já aqui abordado, A arte e a Vida. Nele, o autor estabelece as razões que levaram à mudança e Laranjeira Henriques corrobora-o:

A arte não é encarada como progredindo de um plano de enfoque mais intimista ou metafísico para um estádio de prevalência de uma qualquer traçada função social. Tanto quanto nos é possível ler, não se vê a passagem de uma para outra noção de arte como uma irreversível conquista ou avanço evolutivo. A arte muda (ou deve mudar) por contingência da história, o que em boa parte é ilustrado por todas as instâncias, na poesia neo-realista, em que é expressa uma fundamental e problemática consciência do tempo histórico. (Henriques, 2011, p. 84).

Se, em 1938, António Ramos de Almeida havia publicado um livro de poesia com um título sugestivo como «Sinal de Alarme», em que era visível o programa de A Arte e a Vida, com a ideia de uma contextualização histórica marxista, o segundo livro tem também um título muito esclarecedor, Sinfonia da Guerra. O título mostra desde logo o quão marcante era para a nova geração a experiência da Guerra Civil de Espanha e a iminência de um conflito bélico como a Segunda Grande

Guerra. No prefácio ao livro de António Ramos de Almeida, Rodrigo Soares ressalta a obra como uma denúncia, referindo-se a um «momento em que se joga o destino de mais de metade da população do mundo inteiro» e, mais adiante, de um «dos momentos mais graves da história da humanidade» (Henriques, 2011, p. 96). Nasce aqui, neste sentimento de perigo, de urgência da luta, tomando a poesia como arma de combate. Desta constatação faz Rodrigo Soares decorrer uma série de imprecações contra o lirismo e o intimismo presencistas, incapaz, na sua óptica, de se opor à barbárie que se avizinha e de responder aos desafios da sua época. No posfácio do mesmo livro, também Joaquim Namorado explicita a origem desta nova noção do papel da arte e do artista, relacionando-a com as circunstâncias históricas e a emergência da ideologia.

Se nos poemas de António Ramos de Almeida o passado (um passado mais puro e mais pleno) aparece constantemente comparado com o presente e o horror da guerra, o mesmo recurso aparece também em Terra, de Fernando Namora. Este utiliza o imperfeito verbal para contar “como era a vida nessa «aldeia plantada na berma da pátria», até ao soar do «grito da guerra»” (Henriques, 2011, p. 97). O presente é a constatação do tempo catastrófico. E essa é uma das condições fundamentais de ser poeta, do ponto de vista neo-realista. Por outro lado, há uma ideia de transmudação do sujeito em poeta, bem acentuada em poetas como Mário Dionísio e Joaquim Namorado. É a ideia do despertar para a nova condição do presente. Como nos diz o crítico:

O poeta não nasce poeta. O indivíduo torna-se poeta quando sai do seu microcosmo (em certo sentido, quando sai de si próprio), abdicando das suas comodidades e de certo sentido de segurança, pondo de lado íntimas inquietações, e expondo-se à vida, na acepção neo-realista de mundo e realidade exterior. (Henriques, 2011, p. 112).

Seguindo a mesma ideia, Joaquim Namorado tem um poema intitulado «Ascensão», onde refere a subida do homem a caminho da verdade, seguindo um certo recorte platónico (da alegoria da Caverna). Contém esse poema a ideia de libertação do poeta pela sua ascensão na via da verdade. Deixando a interpretação platónica um pouco de lado, vemos como é defendido o papel do poeta para o neo-realismo, sempre voltado para a verdade, sendo esta verdade a realidade exterior e não o intimismo

subjectivista e o ensimesmamento do sujeito, tal como ele é defendido pelos autores da Presença.

O lado mais optimista e mais socialmente empenhado na intervenção social, lutando por uma sociedade mais justa, parece ter sido, entre poéticas tão díspares (como nos mostrará Eduardo Lourenço), o fio que irmana os poetas do neo-realismo, sobretudo nas fases de maior afirmação do movimento. Eles comungaram dessa ambição e da esperança no progresso social. Todavia, essa fé no futuro é, de alguma forma, abalada pelo rescaldo da Segunda Guerra Mundial, que apenas nos oferece o espectro da barbárie e pela constatação de que os vencedores não viriam impor qualquer modelo democrático na península Ibérica.

Entre os extremos da esperança e da desilusão, houve momentos da poesia neo-realista que se subtraem à injunção ideológica, o que nos vem advertir contra as interpretações monolíticas sobre a poesia neo-realista. Tomemos como exemplo a poesia de Álvaro Feijó, que foi publicada na Novo Cancioneiro. A sua morte prematura e a adesão ao grupo levou os seus críticos a rotularem-no de neo-realista. Porém, observando o que diz João Laranjeira Henriques,

O que na poesia de Feijó se patenteia, e daí a sua relevância no âmbito de uma avaliação descomprometida da poesia neo-realista portuguesa, é todo um trajecto de dúvidas, hesitações e dilemas de consciência que o sujeito poético percorre até uma aceitação ou assunção do papel social do poeta (…) (Henriques, 2011, p. 119).

O crítico atribui este trajecto dubitativo à origem aristocrática de Álvaro Feijó e reconhece em J.J. Cochofel – que também possui uma origem social elevada – o mesmo tipo de dúvidas, relativamente à legitimidade da escrita para combater as desigualdades sociais. Tanto num caso como noutro, eles colocam-se de forma igual no cerne de uma discussão em torno da questão do papel do escritor, do artista ou do intelectual, na sua relação com uma classe social mais desfavorecida, pela qual desejam combater, mas com a qual, objectivamente, não coexistem em situação de igualdade ideal. Mas não é apenas nesse aspecto que se patenteia um certo desalento no espírito militante da época. Na óptica de Laranjeira Henriques, identifica-se em Feijó, em particular, uma

indecisão entre a identificação com o espírito geracional e uma descrença pessoal com reflexos na sua expressão poética (Henriques, 2011, p. 121). O que queremos dizer com isto é que nem sempre o optimismo histórico, característica fundamental do neo-realismo, caracterizou a poesia dos neo-realistas, apesar de haver um padrão que os unia. O caso da poesia de Feijó é, aos olhos de João Laranjeira Henriques, o melhor exemplo dessa indecisão, não permitindo defini-lo como um poeta da «militância absolutamente convicta» (Henriques, 2011, p. 126). O próprio poeta J.J.Cochofel também vai nesse sentido.

Um dos aspectos destacados por Eduardo Lourenço é que houve, no neo-realismo um «reaproveitamento das formas clássicas, particularmente dos Cancioneiros, de Gil Vicente e Camões» (Lourenço, 2007, p. 28). Também João Laranjeira Henriques sublinha o uso das formas populares, a par de formas clássicas da nossa tradição, como uma forma de aproximação do discurso poético à massa anónima e popular, em prol da qual a arte deveria combater, segundo as regras do neo-realismo (Henriques, 2011, p. 170). Encontramos, assim, aqui o uso de estrofes regulares, como o uso da redondilha e outros recursos aprimorados, aproximando-se do registo da oralidade. Por outro lado, a mensagem poética perde «uma semantização de tipo intelectual» (Ibidem), pondo uma máscara de autenticidade e de sinceridade. O longo verso branco, também uma característica do neo-realismo, herdado das formas modernistas, cede o seu lugar às formas mais próximas da tradição popular, sem se converter a uma linguagem demasiado simplificadora da realidade. A reabilitação poética das formas populares, recuperando a tradição, visa quebrar a distância entre o poeta e o povo, «recriando assim uma espécie de estado primordial de estreita relação entre a poesia e a vida» (Henriques, 2011, p. 172). Aplicando a expressão do crítico, isso obrigaria o poeta a descer da sua «torre de marfim»vi.

Eduardo Lourenço, na sua obra «Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista» adverte-nos, todavia, como também já vislumbrámos anteriormente, que a leitura mais actual destes poetas não pode resumir-se à Ideologia. Apesar da intenção ideológica estabelecer uma comunidade de princípio entre os poetas neo-realistas, todavia, a sua poesia não se reduz à ideologia. «Cada um deles se viu confrontado com qualquer coisa de mais visceral, irredutível, de mais profundo e revelador, uma realidade que é certamente a deles mesmos e do seu ser social» (Lourenço, 2007, p. 30). Falamos, evidentemente dos temas dos autores, das obsessões que enformam os poemas, as suas imagens, os seus ritmos. Por isso, a análise de E. Lourenço vai além do corpo ideológico da poesia de três autores que ele aborda. Em João José Cochofel segue-lhe o rasto da imanência, em Joaquim Namorado os aspectos da epopeia e em Carlos de Oliveira, porventura o mais ambíguo dos neo-realistas, o aspecto do trágico. Para Lourenço, Joaquim Namorado é «o seu mais típico representante» (Lourenço, 2007, p. 69), mais fiel, portanto, ao optimismo ideológico característico do neo-realismo (Ibidem, p. 104). Os seus poemas «Prometeu» e «Poema da Manhã clara», em Aviso à Navegação, são exemplo do mais vivo neo-realismo e, ainda, do «Novo humanismo».

Que devemos concluir acerca da poesia neo-realista? Os poetas que assim se denominavam, em torno das revistas atrás referidas, procuravam fazer uma poesia ao serviço da revolução. Assim, a Ideologia passou a ter um papel fundamental e isto notava-se mais na ficção do que propriamente na poesia. Eduardo Lourenço identifica «as notas ideológicas conhecidas do neo-realismo» (Lourenço, 2007, p. 244), que são uma «atenção privilegiada à camada popular, óptica da luta de classes» (Ibidem), mas refere que é nos romances e nos contos que este espírito mais se apresenta. A poesia neo-realista procura seguir o espírito da revolução, mas sabe que não pode introduzi-la senão poeticamente. E vive em si essa dialética. E essa contradição é vivida de forma mais acerada sobretudo nos últimos poemas de Cochofel e de Carlos de Oliveira.

O mundo, enquanto ordem social é posto em questão, mas a linguagem não. Esta é tomada como uma apropriação imediata e racional do mundo, mas não como a figura que cabe ao poeta restruturar e reinventar. Neste sentido, o neo-realismo conheceu os seus limites. A urgência da Ideologia e do combate ideológico fez eclipsar o trabalho da poesia como reinvenção da linguagem. Comparando o neo-realismo com alguns autores como Pessanha ou os modernistas, faltou-lhe ir mais longe, nesse «quebrar a cabeça contra o muro da linguagem» de que nos fala Lourenço (Lourenço, 2007, p. 252). Por isso ela não alcançou um estatuto mítico que nós atribuímos à mais alta poesia portuguesa. Falta-lhe «loucura verdadeira, ingenuidade autêntica» (Ibidem). Neste sentido, o poeta Carlos de Oliveira terá ido mais longe e os sucessores dos neo-realistas, mais atentos à liberdade metafórica da poesia, souberam alcandorar as suas poéticas a outras paisagens. Podemos dizer que, neles, a primeira apresentação do neo-realismo comparece totalmente transfigurada e muito mais enriquecida.

Obras Citadas Almeida, A. R. (1939). Sinfonia da Guerra. Porto: Sol Nascente. Almeida, A. R. (1941). A Arte e a Vida. Lisboa: Livraria Latina. Gasset, O. y. (2019). A Rebelião das Massas. Lisboa: Relógio d’Água. Guimarães, F. (1969). A Poesia da Presença e o Aparecimento do Neo-Realismo. Lisboa: Editorial Nova Limitada. Henriques, J. L. (2011). A poesia no neo-realismo português. Primeiras Manifestações e Novo Cancioneiro. Obtido de Repositório da UL: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3789/1/ulsd060903_td_Joao_Henriques.pdf Lourenço, E. (2007). Sentido e forma da poesia Neo-Realista. Lisboa: Gradiva. Pita, A. P. (2002). Arqueologia de uma problemática. Em A. P. PIta, Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português. Porto: Campo das Letras. Reis, C. (1981). Textos Teóricos do Neo-Realismo Português. Lisboa: Seara Nova. Reis, C. (1983). O discurso Ideológico do Neo- Realismo Português. Coimbra: Livraria Almedina. Torres, A. P. (2002). As Correntes Contemporâneas. Em Vários, História da Literatura Portuguesa (Vol. 7). Lisboa: Edtora Alfa. Vários. (1989). Novo Cancioneiro. Lisboa: Caminho.

i Investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. ii De Jofre Amaral Nogueira, Adolfo Casais Monteiro e Armando Bacelar. iii Como edição de autor, não integra a Novo Cancioneiro. iv Alexandre Pinheiro Torres refere-se aqui aos poemas assinados por Mário Dionísio e António Ramos de Almeida. v Joaquim Namorado foi, em Coimbra, a grande figura em torno da qual o neo-realismo orbitava, polarizador da energia do grupo, tal como Mário Dionísio o foi em Lisboa. vi Esta expressão é profusamente utilizada nos debates entre os presencistas e os neo-realistas, que acusam aqueles de não saírem da sua torre de marfim, distanciando-se do concreto e da realidade e refugiando-se no intimismo subjectivista.


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