O corpo estesiológico: para uma tópica erótica em Maurice Merleau-Ponty
(com António Ramos Rosa de permeio)
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luís filipe pereira *
“[…] Du Logos à l´Eros,
dont lúnion préside au passage d´un monde présent aux mondes possibles”
A.-T. Tymieniecka (1972, 13)
Pretendo reflectir, de modo necessariamente sucinto, acerca da função e estatuto da erotização da espacialidade. Eis a minha primal premissa: o espaço habitual, a transfigurar pela crepitação erótica, é o lugar do confinamento humano, abstido da lídima força de Eros, do signo da unidade, do pulsar do desejo.
O espaço erótico irradia num circuito de trocas, hibridismos, contaminações, contágios de entre-espaços, espécie de quale objectivo de um espaço criado em latência. É este o lugar do não-lugar do desejo enraizado num corpo de empatia [Einfühlung] (M-Ponty, 1995, 271, todas as traduções minhas) ou corpo estesiológico, significando que “[…] o corpo como poder de empatia é já desejo, libido, projecção-introjecção, identificação […]” (ibid.)
O autor de Signes convoca-nos, assim – é o que defendo – para uma intra-ontologia do desejo, para cenografias desiderativas que se não deixam capturar, censurar pela racionalidade representativa, logocêntrica, porquanto o espaçamento erótico é, eminentemente, nomático e icebérguico, transitivo. Ele é, por excelência, abertura a um outro (M.-Ponty, 1945, 195), trajectória para a metalógica do endoespaço, perspectivada como uma lógica simétrica (Matte-Blanco, 1988, 95), ou seja: uma lógica arcaica que mergulha os seus filamentos no abismo do inconsciente e, neste sentido, uma hiperlógica que colige as derivas da afectividade, por contraste com a lógica aristotélica, com o princípio da não-contradição (“Todas as características do inconsciente, ao invés do pensamento, tendem a unir e a fundir coisas que para o pensamento consciente são diferentes e plenamente diferenciáveis umas em relação a outras” – Matte-Blanco, 1988, 87).
Eros abre o espaço do matricial, gesta, bruta e selvagem (expressões de M.-Ponty), a alteridade no vaivém de desenfreadas permutas : o entresser (Llansol, 1988, 19). Por conseguinte, um mos topologicus atravessa a ontogénese espacial infundida pelo erótico no seu devir relacional.
Trata-se, creio, de um Eros-demiurgo, fogo heraclitiano que é parte do acontecer cósmico, tal um griphos, enigma de uma natureza parceira de um jogo de ocultações e errâncias sob o arco e a lira ____________ confraternização de contrários. Exemplifico a espacialidade intracorporal com estes versos de António Ramos Rosa que percepciona o desejo como fábula viva de enlaces:
“Todo o desejo quer espaço e quer seio
de uma eternidade ardente e anelante.
[…]
Toda a eternidade é esta
fábula viva de enlaces,
de inexoráveis gozos
[…]”
(Ramos-Ros, 2004, 17)
Eros poliniza uma colmeia intraespaciária: iça um espaço intensivo, desdobrando-se em intensidades, desejos e afectos: ars inveniendi (que a arte plenamente oficia) de um espaço rizomático (na acepção de Deleuze/Guatari), afectivo e não efectivo, palpável, carnal, estesiológico, protoespaço essencialmente hiperdialéctico, porquanto “[…] encara sem restrição o dédalo das relações a que se chama ambiguidade.” (M.-Ponty, 1964a, 129); uma ambiguidade com a raiz enleada à pulsação do desejo: Assim se abrem as portas do contacto (Ramos-Rosa, 1969, 37).
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Eros – érõs- irrompe como o genitor que tudo une e que aparece em Hesíodo entre os primeiros a evadirem-se do caos; espécie de primeiro motor nas vetustas cosmogonias e que surge no Lysis associado à filosofia como philia e como desejo (epithymia) direccionado para o preenchimento de uma falta (endeia), encrostamento provisório de uma ferida.
“Não possui a palavra uma imediatez carnal, não é ela umbigo e boca,
ritual de uma ressonância entre um e outro [este é , afinal, o sentido que atribuo
à noção de Ineinander em Merleau-Ponty] como uma lâmpada na pele? O desejo
da escrita não será o desejo de percorrer um corpo poro a poro, uma língua
com a sua língua?”
(Ramos Rosa, 1983, 37)
Ocorre, assim, uma inscrição na dobra libidinal do corpo estesiológico ancorado na carnalidade do mundo a partir dos sentidos e estruturas corporais: uma fronde de devires e transportes/metáforas, uma vez que “[…] como esquema corporal, o corpo estesiológico, a carne, ofereceram-nos já o Einfühlung do corpo com o ser percebido e com os demais corpos” (M.-Ponty, 1995, 272).
É, com efeito, na deiscência deste veio erótico que encontro o topos de uma permanente heurística, cuja trama medular é a distância, o hiato (écart), a diferença, insubsumível num sujeito de sobrevoo, numa consciência proposicional associada ao logos endiathetos (ao invés do logos prophorikos , uma distinção que mergulha as sua raízes em Fílon de Alexandria), ou seja, o corpo estesiológico abre flanco à compreensão da evolução de M. Merleau-Ponty de uma filosofia da presença (de cariz fenomenológico) para uma filosofia da diferença (de pendor ontológico, ou melhor, intraontológico).
Uma diferença que é uma seta em movimento propulsionada pela falta, pelo desejo: criação carnal de flutuações desiderativas adentrando-se na perda, no não sentido, no dissenso (na acepção de Lyotard), ou seja, nas vozes anónimas e polífonas (à semelhança da qualificação de P. Klee da sua pintura como polifónica) do desejo e que, simultaneamente, estão no começo, em estado nascente ou fala falante (tropo merleau-pontyano na obra Signes) do gesto escritural. Este é, sobremaneira, invenção do endoespaço conduzida pela irrupção do corpo na membrura do imaginário, do possível, que rompe com a constringente identidade, a qual, por seu lado, é o princípio da entropia e do solipsismo.
Tal ocorre porque, para M. Merleau-Ponty, a matéria do desejo aponta para a generalidade duma intencionalidade selvagem, latente, esgueirando-se, assim, às poses da consciência para ostentar uma conpreensão cega, libidinal e estesiológica:
______________________”A percepção erótica não é uma cogitatio que visa um cogitatum; através de um corpo ela tende para um outro corpo, ela faz-se no mundo e não numa consciência. Um espectáculo tem para mim uma significação sexual, não quando eu represento, mesmo confusamente, a sua relação possível com os órgãos sexuais ou com os estados de prazer, mas quando existe para o meu corpo, para esta potencialidade sempre pronta a enlaçar os estímulos dados numa situação erótica acrescentando-lhe uma conduta sexual. Há uma <compreensão> erótica que não é da ordem do entendimento, pois este compreende subsumindo uma experiência numa ideia, enquanto o desejo compreende cegamente, religando um corpo a outro corpo.” (M.-Ponty, 1945, 183).
Assim é porque o devir ou abertura à outridade do novo é da ordem do transbordo: o erótico sub(per)verte os limites da representação, tornando-se, outrossim, carne do desejo em que a imanência e a transcendência devêm quiasmáticas, numa relação de mútua expressão, i.é., de intercorporeidade num horizonte de promiscuidade ou de negação da presença estabilizada: entrelaço da actividade/intencionalidade e da receptividade/passividade.
Dito de outro modo: o corpo estesiológico emblema a entrega cega de um corpo a outro corpo, a que M. Merleau-Ponty chama indivisão potencial: “O quiasma em vez do Para-Outrem, significa que não há somente rivalidade eu-outrem (diferença tout court), mas co-funcionamento. Operamos como um corpo único.” (M.-Ponty, 1964a, 268)__________________________eis o que potencia uma permuta de tesouros (ibid., 268). Abre-se, por essa via, uma nova antinomia: princípio do desejo versus princípio da necessidade.
Porém, a necessidade finda uma vez saciada, enquanto o desejo quanto mais objectos de satisfação encontra mais é desejo, trazendo no seu movimento próprio uma rediviva inscrição residual, protozoária, da falta, sismo que fende o espaço inteiro deixando aparecer um transespaço que extravasa o espaço referencial, objectivo.
“No escuro círculo em que se expande a ferida
palpita o abismo
[…]”
(Ramos Rosa, 1986, 76)
Assim sendo, Eros alastra ao mundo, à escrita, à pintura (como lemos na obra O Olho e o Espírito) a prega da passividade ínsita, deste ponto de vista intraontológico, na generalidade sinérgica da carne permissiva do entrelaço eu-outro, projectando o espaço da excentricidade, do não-retorno da ipseidade:____________________
”As suas paisagens interpenetram-se, as suas acções e paixões ajustam-se plenamente: tal é possível desde que deixemos de qualificar a título primordial o sentir como pertença a uma mesma <consciência> e que, ao invés, o entendamos como retorno sobre si do visível, aderência carnarl do sentiente [sentant] ao sentido e do sentido ao sentiente. Enquanto recuperação e fissão, identidade e diferença, ela faz brotar um raio de luz natural que ilumina toda a carne e não apenas a minha carne.” (M.-Ponty, 1964a, 187).
Daqui intuo que o desejo nos torna enfeitiçados no sinuoso movimento entre o tranbordo dos limites e o regresso aos limites. Não será essa a razão por que o desejo se itera continuamente para alocar, ad infinitum, a dança dionisíaca [ressoam os Ditirambos a Dionisos de Nietzsche] da criação de uma espacialidade do entrelaçamento? Em jeito de resposta interrogante, diz-nos o poeta:
“Amamos ainda mas perdeu-se o espaço
da dança e dos seus signos lascivos
como poderemos viver sem a lúcida paixão
desse movimento que renovava o corpo e o espaço
e nos abria o mundo?”
(Ramos Rosa, 1997, 12-13)
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ou também:
“ O mito de Dionisos consagra a verdadeira essência da vida (a vida institual)
e, assim, projecta a unidade originária na dimensão actual do ser vivo. É a própria vida
que se manifesta na dança dionisíaca, ou seja, na experiência erótica, uma vez que nela
a pulsionalidade se liberta na comunhão total com o Outro.”
(Ramos Rosa, 1999 , 5)
Do que se trata, nesta minha proposta de uma Tópica Erótica em Maurice Merleau-Ponty, é de uma consonância intracorporal carreada pelo corpo estesiológico que é, afinal, um teatro da aparição de outrem (M.-Ponty 1964a, 275), o qual é iluminado por uma visibilidade anónima (M.-Ponty, ibid., 187) entendida como deicência do corpo próprio e do corpo de outrem. No imo deste interser erótico deixa de haver, em rigor, um “[…] problema do alter-ego porque não sou eu que vejo, não é ele que
vê […]” (M.-Ponty, ibid.). O autor de La Prose du Monde concebe, nesta senda, a membrura da intersubjectividade (M.-Ponty, ibid,. 287) enquanto quasi-reflexão, penetração, Ineinander (M-Ponty, ibid, 299) e que permite entrever “[…] uma relação circular segundo a qual o pequeno mundo privado de cada um não é justaposto ao dos outros, mas antes invadido por ele, antecipado por ele […]” (M.-Ponty, ibid, 187): _______________voluptuosa cosmologia do visível.
Todavia, ainda que Eros, no seu movimento de restituição, potencie reconfigurações nos interstícios da topologização de paisagens-outras, miragens e reflexos – como se Narciso para sempre irreconhecendo-se- não pode abster-se das sombras de Orpheu. Emerge, assim, não uma antinomia, mas um Entre-Dois enleando e disseminando Eros e Thanatos.
O desejo irrompe no espaço da escrita como projecção-introjecção da convergência. ____________________________
“ Ao escrevermos transformamos o ilimitado [o desejo], que vem de longe,
do mais longínquo, e atravessa a nossa carne e na escrita não se fixa
mas se converte na metamorfose resultante de uma consonância entre
a linguagem e uma espécie de pulsão.”
Ramos Rosa, 2005 b, 52)
Estamos perante a criação de uma nova espacialidade cujo ponto de ancoragem, em mutação, é a experiência estesiológica na sua feição erótica, no sentido que venho expondo, ou seja, a que segue o rastro de um espaço existenciário cuja génese é, justamente, a intencionalidade corporal que distribui a textura carnal (Ramos Rosa, 1975, 20) e mais ainda do que a intencionalidade corporal ao leme está uma intencionalidade global, anónima, embarcada numa pátria selvagem (Ramos Rosa, 20002, 2) e que traduz bem o devir conducente ao aprofundamento e transmutação da corporalidade na carnalidade (da fenomenologia em intraontologia) em Merleau-Ponty:
incêndio dos limites espácio-temporais para que se eleve o infinito emocional (Matte-Blanco, 1988b) e ponha em sobresalto os dittames da consciência e da discursividade, uma vez que o desejo é anterior ao labor da discriminação e da predicação que nos desambigua da tessitura carnal: “ […] a libido […] é o poder geral que tem o sujeito psico-fisiológico de aderir a diferentes meios […]” (M.-Ponty, 1945, 185). É, pois, da força do desejo que advém o impulso genésico de um espaço imaginal, de uma espacialidade delirante, exorbitante, que abala as variegadas modalidades de reificação e de encistamento da <realidade>, encrostada no seu citoplasma enfermo, rumo à realidade irreal (Ramos-Rosa, 2005b, 52) ou à coluna de fumo com que o desejo inventará outro corpo ___________________________________
“ […] que é um obstáculo ou uma ponte; em qualquer caso, há que atravessar. Desejo, a imaginação erótica, a vida erótica, tudo atravessa os corpos e os torna transparentes. […] Esta coisa é fascínio erótico […]” (Octavio Paz, 2001, 21-22).
Um fascínio com tal intensidade que raia a perdição, fazendo errar o corpo sobre o abismo de um “nada activo” (M.-Ponty, 1945, 193) consonante com a sua potencialidade criadora. Resulta desta energia a “incandescente urgência do desejo” (Ramos Rosa, 2002, 74), a sua manifestação incarnada e, desse jeito, “[…] é o fenómeno central do qual corpo e espírito, signo e significação são normalmente abstractos” (M.-Ponty, 1945, 193); vínculo gravitacional a “[…] outras paisagens além da minha.” (Merleau-Ponty, 1964a, 185). É assim, creio, que a intraontologia do desejo é uma seta desorientada na direcção da intercorporeidade, de forma a “[…] alcançar-se o princípio da captação, de o campo ficar livre para outros Narcisos, para uma <intercorporeidade>.” (M.-Ponty, 1964a, 185, sublinhado meu).
Por consequência, não se trata de um intervalar entre mim e mim à maneira de Bernardo Soares (Pessoa, 1990-91), porquanto o desejo erótico mapeia hic et nunc o desassossego de um espacejamento da alteridade: ____________________________________________o desejo é constitutivamente um projecto distributivo, dispersivo______________________________para além da fronteira.
“Imagens do meu corpo, espelhos da nascente
que no meu sangue murmura, são as pedras de toque
dos meus lábios errantes, do meu olhar sedento.
Porque estarão elas no mundo, para além da fronteira
da minha fome de identidade ardente?”
(Ramos Rosa, 2002, 69)
O fulgor do desejo faz-nos devir máquinas desejantes (Deleuze/Guattari, 2004): “Nas máquinas desejantes funciona tudo ao mesmo tempo, mas em hiatos [é de enorme relevância o écart em M.-Ponty], rupturas, avarias e falhas, intermitências e curto-circuitos, distâncias e fragmentações […] é que nelas os cortes são produtivos e são, igualmente, reuniões. As disjunções enquanto disjunções, são inclusivas.” (Deleuze/Guattari, 2004, 45).
“Não já sinais nem tropos nem imagens
mas só o corpo na noite do contacto [o Ser da indivisão em Merleau-Ponty)
o interior obscuro mas sem lugar
o espaço em que os traçados
se desfazem”
(ramos Rosa, 1984, 41)
Desejo que é, desta perspectiva que avento, princípio eidético da imaginação material (Bachelard, 1998); que tudo atravessa, que em tudo participa de forma ubíqua; pneuma da criação de “relações carnais” (M.-Ponty, 1964a, 323)______________________ anel de fogo do endoespaço da cosmologia do visível (M.-Ponty, 1964a, 318) enquanto despaisajar das paisagens ou logos mudo do corpo estesiológico (M.-Ponty, 1964a, 222): ___________________________________________
“Eros deixando de ser compreendido como um efeito ou como uma força orientada, mas como uma elevação até…X, ou uma espécie de ebulição, uma cova [creux] sempre futura – o desejo põe a mesma questão que a percepção = um espírito não desejaria mais do que perceberia. Qual é o Eu do desejo? É evidentemente o corpo.” (M.-Ponty, 1995, 272, sublinhado meu).
É a espiral do desejo que entrelaça o pintor e o espectador, o escritor e o leitor, cruzando-os numa intermitência implicada no regime do “prazer textual” (Barthes, 1988, 44). Cruzamento que engola a passividade e a actividade indivisas:
“ Eu diria da passividade da nossa actividade, o que Valéry menciona como um corpo de espírito: por mais inovadoras que sejam as nossas iniciativas, estas nascem no coração do ser, são embraiadas sobre o tempo que nos electriza, apoiados pelos eixos ou charneiras da nossa vida, o seu sentido é uma <direcção> […] não sou eu que me penso tal como não sou eu que faço bater o meu coração. Sair da filosofia dos Erlebnisse [de pendor husserliano] e passar à filosofia do nosso Urstifung.” (M.-Ponty, 1964a, 274-275).
Eis uma hiperdialéctica entre o Mesmo e o Outro, como bem sintetiza o poeta: “A imagem do pensamento será um leque em permanente mutação do Mesmo ao Mesmo, do Mesmo ao Outro, do Outro ao Mesmo.” (Ramos-Rosa, 2005b, 65) __________________________________isto é, poeta e leitor enquanto conjunções porosas (Ramos-Rosa, 1981f, 21) gravitando em torno da significância (Barthes, 1988) e esgueirando-se das “redes da economia de troca” (Coelho, 1988, 26), pois, estamos face a um acoplamento de corpos desejantes nos meandros de uma deiscência estesiológica e emergente da matricialidade do “[…] ser que não é ser para si, tampouco ser objecto, mas o ser contraditório do desejo humamo […].” (M.-Ponty, 1996, 155). Contrariedade resultante da circunstância inescapável segundo a qual: “O Desejo é uma pergunta/Cuja resposta não existe.” (Cernuda, 1993, 178) __________________
Di-lo o filósofo de maneira lapidar:
“A sensibilidade dos outros é o <outro lado> do seu corpo estesiológico. E deste outro lado, nichturpräsentierbar, e dele posso ter a suspeita através da articulação do corpo de outrem sobre o meu sensível, articulação que não me esvazia, que não é uma hemorragia da minha <consciência>,
mas que, ao invés, me redobra de um alter ego. […] O acasalamento dos corpos, ou seja, o ajustamento das suas intenções a uma única Erfüllung, a um só muro em que elas colidem de dois lados, é latência sob a perspectiva de um só mundo sensível, por todos participável, que é oferecido a cada um.” (M.-Ponty, 1964a, 286).
Deste jeito, a expressividade (poética ou outra) pode fazer-nos imergir num crivo estendido sobre o caos; instaurar a linha de uma feiticeira (Deleuze/Guattari, 1992, 43 e 42) que torne o desejo uma força motriz capaz de escavar um protoespaço de abertura ao Outro, à intercorporalidade:_______
“O corpo libidinal e a intercorporeidade. Isto é = a Einfühlung [empatia]. Corpo-coisas, penetração à distância dos sensíveis pelo meu corpo. As coisas como o que falta ao meu corpo para fechar o seu circuito. Mas isto é igualmente abertura do meu corpo aos outros corpos: como toco a minha mão tocante, percebo os outros como percebentes. […] Universal-lateral de co-percepção do mundo. […] Freud dá assim, uma contribuição essencial no que concerne ao esquema corporal: é preciso recuperar tudo o que ele disse acerca desta endopercepção dos outros (e dos animais) – o <Prazer> aberto sobre a <realidade> – o Prazer está aberto como o sentir está aberto sobre as coisas (Eros, Desejo).” (M.-Ponty, 1985, 281, sublinhado meu).
Conquanto de maneira sempre provisória, periclitante, o desejo é via de um habitar-com, introduzindo uma aporética vislumbrada como hiato, i. é., como uma “[…] negatividade natural, uma instituição primeva, sempre já aí.” (M.-Ponty, 1964a, 270),
“Não posso imaginar-te ausente ou na distância
Porque tu és a minha segunda respiração
E com ela sinto que o mundo é habitável.”
(Ramos-Rosa, 1994, 48)
Deriva:
Serve esta para aflorar, de forma breve, o tópicos Eos vs Cronos, na medida em que o endotempo é o avesso da cosmologia do visível merleau-pontiana; prototempo da pulsão erótica, insurgente ante a regularidade cronológica: myse-en-abyme de cronos, dado que a tópica erótica que ausculto em Merleau-Ponty se increve num tempo, eminentemente, dispersivo, reversível e que é como que transmudado num “campo de presença” (M.-Ponty, 1964a, 227) onde o tempo habitual, serial, é transportado para uma espécie de atemporalidade comandada pelo daimon desiderativo incubado no sono do tempo (Ramos-Rosa, 1988, 40), no coágulo do tempo (ramos-Rosa, 1972, 19).
Eros é, em horizonte, convite para um espaço presuntivo, escalonado em profundidade, qual fundo inconvertível em figura, das palavras aquém das imagens no âmbito de um espaço atmosférico, marginal, amotinado, como se arrière-pays rimbaudiano ou desejo de um algures (Bonnefoy, 1988).
A trajectória de Merleau-Ponty – com esta advertência: “Uma direcção não está no espaço: ela está em filigrana através dele.” (M.-Ponty, 1984a, 275) – vai desde a afectividade na sua exaltação erótica mais imediata até aos nexos mais fundos e respeitantes à circularidade, ao entrelaço com a dimensão cósmica _________________________
” […] a apreensão da significância sexual pressupõe a capacidade de nos colocarmos numa situação; este poder fundamental torna-nos simultaneamente capazes de transformar a situação de facto, de tal forma que o sentido sexual assume uma mais global significância.” (Langer, 1989, 55): o homo erotikos concilia-se com a natureza inteira, reabilitando uma espacialidade onírica e aisthésica da coexistência (intraespaço) de um Ser de promiscuidade (M.-Ponty, 1964a, 307):
“Estou contra o muro, contra a página,
contra a inércia clara.
Aqui poderá morrer
todo o desejo. Jamais,
Jamais! Para que se erga
no próprio centro vazio
esse tumulto d sombra,
esse outro sono da luz.”
(Ramos-Rosa, 1969, 28)
In fine, o desejo escava a dobra do “[…] espírito bruto como natureza selvagem. […] Urge despertar este espírito aquém das positividades sedimentadas […] este ser do dentro e já não o de fora.[…] Ser que é infraestrutura, membrura, charneiras […]” (M.-Ponty, 1995, 282).
Desta guisa, a tópica erótica, em Maurice Merleau-Ponty, tem ínsita a transcendência e, nas suas pregas, a vacuidade, a indigência, desfrisando-se na estrutura erótica do espaço como intraontologia (M.-Ponty, 1964a, 280), ____________________________rastro, abertura, reversibilidade, deiscência de uma espacialidade heurística que dá a ver uma ontologia do dentro (M.-Ponty, 1964a, 290).
referências bibliográficas
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* luís filipe pereira
Luís Filipe Pereira nasceu em Lisboa, na década de 70. É licenciado e pós-graduado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É licenciado em Literatura francesa e pós-graduado em Criações Literárias Contemporâneas pela Universidade de Évora e é Mestre em Teoria da literatura pela mesma Universidade (tese de Mestrado sobre a poética de António Ramos Rosa em intertextualidade com a intra-ontologia de Maurice Mereleau-Ponty). Cursou Direito na Fac. de Direito de Lisboa, &etc.__________
É autor dos livros de poesia A Tela do Mundo (DG Edições), 2008, No Lugar da Pouca Farinha, Coimbra: ed. Temas Originais, SériePreto no Branco-2, 2016, Consoante as Estevas. Lisboa: Coisas de Ler (Colecção Clepsydra), 2018 e Elogio da Espera [61 + 43 poemas], Lisboa: Poética Grupo Editorial, julho de 2022. Inúmeras publicações nacionais e estrangeiras,