O meu corpo humano, Maria do Rosário Pedreira, Ed. Quetzal, 2022
O corpo é simplesmente uma alma. Uma alma enrugada, gordurosa ou seca, peluda ou calosa, áspera, flexível, estalejante, graciosa, (…) coberta de organdi ou camuflada em cáqui, multicor, coberta de graxa, de chagas, de verrugas. É uma alma em acordeão, em trompete, em ventre de viola.
Jean-Luc Nancy, 58 Indícios sobre o Corpo, trad. Sérgio Alcides
O meu corpo humano é o mais recente livro de Maria do Rosário Pedreira, autora de vários títulos de poesia, atualmente coligidos em Poesia Reunida (distinguido com o Prémio da Fundação Inês de Castro), obras juvenis, um romance, um livro de crónicas, letras de fados. Mantém ainda o blogue “Horas Extraordinárias”, para além de ser uma referência incontornável no universo da edição.
O meu corpo humano alicerça-se numa estrutura muito equilibrada, organizada em três partes com 20 poemas, cujos títulos correspondem a partes do corpo humano. Essas partes adquirem uma profunda unidade, que se vai desenhando numa atitude dialógica, de aproximação ao Outro, a culminar numa transfiguração desse Outro, de onde emerge a denúncia corajosa das injustiças, violência, miséria, desigualdades sociais que habitam o nosso mundo.
Nesta esteira, a primeira parte, intitulada “o meu corpo”, esboça os meandros da relação com o “tu”, os percursos trilhados por um “eu” em cujas “veias corre vento”, que pede: “dá-me um vestido inflamado de/ rosas e ensina-me as horas do amor:// daqui até à morte é um instante” (p. 13). Com efeito, as contradições do amor, o desgaste físico, os enganos, desenganos, aliados à forte consciência da passagem do tempo, são temas que percorrem esta primeira parte. Assim, o “peito” configura-se como o cofre onde se guarda o sigilo amoroso, os “olhos” assumem-se como arquivo onde se encerra a memória daquilo que “eu fui antes de ti” (p. 15). A “cintura” surge a unir as margens do tempo, num mecanismo de compensação pela sua passagem inevitável. As “lágrimas” evocam os amores e desamores a consumirem a vida sem nos darmos conta, sendo o espelho o elemento que ilumina a consciência, fazendo emergir o que se encontra subjacente. Por vezes, corpo e poema fundem-se num entardecer compartilhado, de onde emerge o declínio físico (“os poemas tal como nós, já vão/ murchando”, p. 22), o inconfessado receio do futuro. Nesta esteira, numa travessia de tempos, para além da evocação do passado, “o joelho” é o ponto de referência do modo como “se perde o pé” ao longo da vida, numa projeção equacionada além das praias da infância, sendo a salvação cada vez mais difícil. E, nessa trajetória profundamente humana, a dor provocada pela morte desenha-se sob a forma da ruga que permanece “como um sulco de terra” (p.27), no poema
“testa”. Se os “ouvidos” veiculam as vozes dos mortos amados, transfigurados pela memória, os dentes encarnam as fantasias, ilusões da infância, enquanto a “têmpora” desenha o cansaço, a iminente destruição a secar vidas, flores e palavras. Contudo, não é apenas a vida que se partilha, que se incorpora, mas também a morte, como sucede em “pele”: “quando me vierem falar da sua morte,/ tragam palavras frias e sem rendas, (…) Deitem-me junto ao seu flanco como/ morta (…).(p. 31).
Na segunda parte, emerge um teor mais marcadamente social, onde o “outro” irrompe, na sua diversidade, na multiplicidade de questões que se expandem, desde a solidão à miséria, cruzando as principais problemáticas da sociedade atual. Por conseguinte, a solidão, o vazio, a perda da unidade e do sentido são metaforizados no poema “costas” pela viúva impossibilitada de usar o vestido “com que ele adorava vê-la (…) porque tem o fecho nas costas.” (p. 38). Por seu turno, a morte surge também através do suicídio, representado em “pulso”, onde o eco da vida transparece, através dos objetos insignificantes como o botão em falta, ou o lenço de assoar. Além disso, em “Carpo, metacarpo e dedos”, emergem as dores, a morte, os amores ocultos, adormecidos no dorso dos pecados, enquanto “pénis” evoca o drama da prostituição e num outro poema, “os lábios” transportam “uma tristeza passada a ferro” (p. 42), espelhando o absurdo da violação de uma criança por parte de um familiar.
Também o drama dos refugiados surge na obra, em “pulmões”, inspirado na imagem amplamente divulgada pela comunicação social da criança morta numa praia da Turquia. Mas o rosto da miséria, das injustiças sociais desdobra-se ainda em “útero” (ando com o filho à fome/ os dois a beliscar a morte/ todos os dias.” (p.48), ecoando com outras nuances no poema “perna”, de onde irrompem também a doença e a dor física.
Por seu turno, as marcas da emigração clandestina, do descentramento, das mulheres que “viam crescer os filhos nas fotografias”, enquanto ganhavam “os calos de outro país”, adaptando-se ao chão estrangeiro anteriormente regado pelas lágrimas, surgem em “calos”. Além disso, a figura feminina como elemento fulcral no seio familiar, a sua capacidade de autossacrifício pelo bem comum, delineia-se, por exemplo, em “mãos”, já que as mulheres “ouvem a respiração/ do peixe dentro dos sonhos/ (…) são / as primeiras a dividir o pão e as últimas/ a poder chegá-lo aos dentes.” (p. 51). Mas também as restrições ditadas pela pandemia do Covid 19, as transformações do quotidiano esboçam-se em “unhas”, quando os dias partilham “a mesma escuridão das cómodas velhas” e a ausência da interação social se revela.
Importa ainda frisar a riqueza imagética que impregna os poemas, cujo fulgor podemos exemplificar em “nariz”, poema que convoca os diversos sentidos, aglomera sensações, denunciando o flagelo dos incêndios: “No monte, as ameixas são lâmpadas/ acesas e a pelagem vermelha das raposas lança chamas. Andam raios/ de sol à toa nas searas. (…)”, a culminar
com o renovado cheiro “a fogo e a morte” (p. 39). Além disso, em “cabeça”, evidencia-se o poder da Literatura na apreensão e compreensão da realidade, como veículo do conhecimento, repositório de memória, permitindo visitar as guerras, o sofrimento, transversais ao mundo, à História, ao longo dos tempos (“vi papoilas em sangue entre os cavalos caídos.”).
Na terceira parte, regressamos a “o meu corpo humano”, transparecendo um universo mais intimista, embora sempre em constante diálogo com um “tu”, numa inter-relação desvendada também pela natureza, como sucede em “braço” (“ouvimos a voz da/ terra contar segredos sobre/nós (…), p. 65. Neste contexto, é pertinente ainda salientar o teor catártico do ato de escrever, evidenciado no último poema, “ombros” (“escrevo para preservar a/ alegria, que é o que mantêm acesa/ a luz do amor” (p. 85). Assim, a escrita permite resgatar a memória, o amor, numa reconstrução dos labirintos da existência de um “eu”, cujas “gargalhadas ainda têm sangue” – verso paradoxal, algo sarcástico, a afirmar a incompletude, a impossibilidade de uma total expurgação.
Em suma, desprende-se desta obra um corpo humano que, tal como referiu Jean Luc Nancy, é sobretudo alma, extravasando o seu estatuto de “envelope”, para se converter em substância. Um corpo, além de si, feito “mapa-mundo” que desperta no leitor um magma de emoções, um corpo confrontado no constante duelo entre a identidade e a alteridade, multiplicado em outros corpos, a preencher vazios, espaços, tempos, rumo aos sentidos da Humanidade que habitamos.