menu Menu
Avenida da Liberdade (Conto)
Por Filipa Vera Jardim Publicado em Contos, Literatura, Portugal a 4 de Outubro, 2022 3043 palavras
La Cicatriz del Canto, livro de Noé Lima (Recensão) Anterior Kant: A Crítica da Razão Pura : alguns tópicos (Ensaio). Seguinte

AVENIDA DA LIBERDADE

-E tu, como te chamas?

-Eu?

-Sim, como te chamas?

-Avenida da Liberdade.

-Mas isso é um lugar. Tu, como te chamas?

– Avenida da Liberdade!

– És um lugar?

-Está ali escrito, não vês? “Avenida da Liberdade”.

-Sim, mas tu, tu mesmo, como te chamas? Ninguém é um lugar…

-Eu posso ser um lugar. Agora eu sou um lugar e escolho ser este lugar.

-Porquê? Porque escolhes ser um lugar, porque escolhes ser este lugar?

-Porque é só isso que eu sei neste preciso momento. Não sei mais nada…

Nem sequer o teu nome?

-Não me lembro de mais nada, nem sequer do meu nome. Nem sei se tenho um nome. Estou aqui, neste lugar e leio ali na minha frente, na tabuleta “Avenida da Liberdade”. E, é isso que quero ser agora. Sabes, o momento é tudo, ou quase tudo o que me resta.

O dia começou assim, nem frio, nem morno, nem pálido, nem especialmente bonito, nem especialmente acabrunhado. Um dia corriqueiro, numa avenida banal de uma cidade que se amanhecia.

A vulgaridade estendia-se aos passantes, agasalhados de cores diversas, calçados com botas e sapatos e sapatilhas de formas diversas e transportando volumes grandes e pequenos, insignificantes ou triviais.

Os pássaros, aparentemente também eles desmemoriados, volteavam por cima das cabeças das pessoas, sempre hesitantes na direcção a tomar.

Ao meu lado, o rapazito de ténis esburacados continuava

-Não vais trabalhar?

-Não sei.

-Não sabes se vais trabalhar? Mas toda a gente vai trabalhar.

-Não, não sei. Se calhar devia saber mas não sei. Não me interessa sequer o facto de se calhar dever saber, percebes. Já não me interessa! Não forço as situações que não existem e nem sequer as explicações. Muito menos as explicações. Não sei o que é o trabalho. Se calhar vou trabalhar e nem sei…

-Olha vê além, chegou o Sr. Director. Pode ser que eu hoje tenha sorte. E o miúdo desatou numa correria por entre as pessoas, os pacotes, as botas os sapatos e os pássaros que desenhavam rotas, todas aparentemente imaginárias e inconsistentes, na brandura azul do céu. Fiquei-me ali, a vê-lo desaparecer atrás da esquina de um prédio envidraçado. Quem seria o Senhor director? Porque corria ele assim?

A luz matinal, intensa luz matinal da cidade, rodopiava à minha volta cada vez mais brilhante, à medida do dia que tinha chegado momentos atrás e agora se acomodava, totalmente decidido a permanecer.

Os dias chegam sempre assim, saltitantes, apressados e absolutamente decididos a permanecerem. Sem a consciência plena de que quando chegam, o fazem apenas por um tempo determinado. Depois, creio que é o próprio lugar que lhes lembra esse facto. Ou então, é a noite que os expulsa quando escorrega pelos mesmos sítios abaixo. Este dia chegou aqui a esta cidade e a este lugar. Chamo-lhe e chamo-me Avenida da Liberdade porque era a tabuleta que tinha defronte dos olhos quando o dia chegou. Um dia inteiro e eu com ele, a nomearmo-nos mutuamente. É sempre assim que eu faço. Ou, pelo menos, é sempre assim que eu decido fazer. Ou, é assim que eu neste dia, neste preciso instante da minha vida, decido fazer. E agora, o que programar para um dia inteiro quando nem sequer sabemos quem somos? Antes deste dia chegar, o tempo frio da escuridão passara-se devagar por baixo de uma arcada. Lá dentro, o teatro enchera-se e esvaziara-se como se fosse um pulmão. O que se passou lá dentro eu não sei ou, já não me lembro, é indiferente. Não me lembro de nada do que se passou anteriormente, independentemente do anteriormente ter acontecido ontem, antes de ontem ou, num passado já com a data desbotada. Resta a música que sei que invadiu a noite toda, acobertada comigo por debaixo das arcadas. E os acordes que talvez porque permaneceram tanto tempo, se relembram a si mesmos, agora. Efectivamente, não sou eu que os lembro, são eles que se

relembram sozinhos e, se fazem trautear, constantemente, no céu curvo da minha boca.

O miúdo dobra a esquina do prédio à minha frente e grita-me:

-Tive sorte, ora vê:

E abre a mão onde reluzem umas moedas.

-Foi o senhor director. Vou comer agora, queres vir?

Quero, quero ir. Não sei para onde mas sei que sinto o estomago às voltas. Não me lembro de quando comi, muito menos do que comi. Já não acho sequer importante lembrar-me. Quando isto começou, fazia um esforço enorme para recordar. Ou então, não era um esforço enorme mas tão só a vontade que surgia assim, numa urgência, de saber o que tinha acontecido, o que me tinha acontecido. Isso foi quando isto começou. E, francamente, também já não sei quando isto começou. Nem creio que seja agora, minimamente importante. Aprendi a viver o momento e a esquecer-me dele, naturalmente. O esforço e a urgência de querer recordar, foram dando lugar a uma paz que nunca me lembro, nem poderia, ter vivido.

Hoje acordei com o sol e estou aqui. Chamo-me Avenida da Liberdade como a rua que se espraia aos meus pés. Daqui até lá abaixo e, daqui até lá acima. Uma rua larga e de coluna direita, chapéu de estátua e sapatos abertos para um largo que vai desaguar sabe-se lá aonde.

Quero ir contigo miúdo, e viver contigo este momento. Serão a tua vida e a minha vida de mãos dadas, a palmilharem instantes neste preciso lugar.

-Vamos até ao fundo da rua ver os pombos e comer castanhas?

-Vamos sim, mas devagar.

-Porquê devagar? Andas sempre assim, tão devagar?

-Não sei se ando sempre devagar, mas sei que os pés não correm mais e tenho que ocupar o dia inteiro. E amanhã, não restará nada do que hoje aqui se passa. Amanhã, será um novo dia. Nada do que aqui e agora vivermos existirá nesse novo dia. Por isso, nunca apresso o passo, percebes?

-Percebo. Também não preciso de ir depressa. Só tenho é fome.

Fomos andando então, ao sabor do tempo que se deixa navegar de barriga para baixo, pelas costas, direitas, da avenida ao sol da manhã. Ao fundo, um bando de pombos

demora-se a debicar migalhas. O velho das castanhas pergunta com um sorriso desdentado:

-Para os dois ou só para o miúdo?

-Para os dois. Hoje somos dois. Somos um e cada qual e juntos somos os dois.

Como assim? É o pai dele?

-Não, sou só uma circunstância e um lugar que se cruzou com ele.

-Aqui está para os dois, quentinhas, é assim que o miúdo gosta. Quase todas as manhãs me aparece aqui. As castanhas quentes a contorcerem-se-nos nas mãos debaixo do dia trajado de azul, de um azul profundo e mágico.

-O que é uma circunstância? Eu também sou uma circunstância?

-Claro que és. És uma circunstância, um lugar, o cheiro das castanhas e o fumo, o azul que te embebe o olhar. Mas no teu caso e porque te lembras, és muito mais do que isso: és recordação.

– Eu não quero ser recordação porque eu não me quero lembrar.

-Mas lembras-te, mesmo que não queiras lembras-te. Tu tens memória e lembras-te.

-Não, não me lembro. Não me quero lembrar…Ela batia-me. Ele também, com um pau e mandava-me pedir. Pedir todo o dia debaixo do sol quente e da chuva fria e trabalhar nos sapatos dos senhores. Uma vez engraxei uma meia e levei uma tareia. Não me quero mais lembrar.

– Eu percebo. Faz assim então: pensa só nos dias bons, nas coisas boas que te aconteceram. Esquece as meias e os sapatos. Quem tem memória tem essa capacidade sabes, podes lembrar-te do que quiseres.

-Menos da noite… Posso lembrar-me do que eu quiser sem a noite? Não gosto nada, nada da noite. Tenho muito medo do escuro.

-Não tenhas. O escuro não é real. Ele torna-se real, apenas. Os sonhos também não são reais. São uma forma de no outro dia acordarmos e sabermos que a noite se foi embora para sempre e esse escuro nunca mais existe. Ele é apenas uma ausência de luz. Assim que um dia chega, logo o escuro desaparece.

-Não é para sempre, ele volta, na outra noite…

-Não, ele nunca mais volta porque acaba ali. A luz que chega mata o escuro. De manhã, a noite e o escuro acabam. Se acontecer outra vez uma noite, ela será outra noite. Os

sonhos serão por isso diferentes, porque cada dia que se vive é único e os sonhos alimentam-se de vida. Quem não vive não sonha. Deves por isso pensar apenas no dia e concentrares-te em vivê-lo o melhor que conseguires.

-Então, hoje há uma roda gigante lá em cima no parque no fundo da Avenida. Vê-se quase todo o mundo de cima da roda gigante, vens comigo?

-Claro que sim, eu vou contigo. Hoje eu sou contigo e tu, tu és comigo.

-Porque te queres chamar assim, Avenida da Liberdade?

-Porque assim sei que existo e estou aqui.

-E ontem, onde estavas ontem e como te chamavas?

-Não sei, ontem já passou. Nada do que aconteceu antes existe agora. Nada do que se passar agora, existirá amanhã.

-Mas eu lembro-me muito bem de quando eles me batiam e tenho uma nódoa negra ainda aqui na canela, vês?

-Tu lembras-te, eu sei. Por isso tens um nome e tens um passado. Eu não tenho nome nem tenho passado. Se ele existiu eu não me lembro. Nunca me lembro de nada, nem sequer de mim…

-Nem de há bocado?

-Nem sequer de há bocado.

-E gostavas de te lembrar?

-Não sei… Imagina que alguém me bateu?

-Se calhar nem sequer te lembras de ter comido as castanhas que acabamos ainda agora e estavam tão boas. Assim, andas sempre na primeira vez. Nunca passas da primeira vez e por isso, não aprendes nada.

-E achas que é importante eu aprender? Mesmo que aprendesse, depressa esqueceria. Lembra-te, eu não tenho memória. As coisas acontecem e partem para um lugar onde nunca mais as poderei alcançar.

-Estranha a tua vida.

-Não é vida. É só uma parte da vida. É uma condição da vida.

Descemos ofegantes a avenida e saímos pela ponta do chapéu estátua. O parque ingreme anunciava a diversão, o horizonte e a roda de onde se vê o mundo inteiro.

-Chegámos! Já cá estamos e agora, chamas-te o quê?

Olhei em volta e senti-me perdido. Tínhamos corrido parte da avenida até ao chapéu em forma de uma rotunda que girava e, ainda mais para lá. As referências eram outras. O lugar, largo e amplo. A rotunda aflita a voltear, a voltear e um verde-mar por ali acima a roçar-se sôfrego no empedrado geométrico.

-Diz-me lá: e agora como te chamas? E agora?

A pergunta a ecoar na minha cabeça: E agora? E agora?

Agora sei que é só a roda que roda e um pássaro a levantar voo. Talvez daqui a mais um pouco seja só a roda que roda e o pássaro tenha já voado.

Não sei quando isto começou, mas começou. Lá, num lugar e num instante. Um tempo antes disto ter acontecido e eu saberia, certamente, de mim e poderia recordar o que me tinha acontecido. Um tempo depois e já não seria eu, ou seria somente uma parte de mim e não haveria nenhum passado. Pode ser que tenha tido casa e família e amigos e gente. Pode ser que tenha tido rotinas e coisas. Pode ser que tenha sido feliz ou infeliz ou sábio ou, ninguém relevante. Hoje, nada me resta desse passado. Nem sequer a aflição de não ter passado, não sinto nada. Nem angústia, nem prazer, nem desprazer, nem ausência nem presença. Existo, apenas e só e sei que não me lembro. Sinto apenas, que não me lembro, mas aprendi a viver no presente, sem nenhum passado. Não me faz nenhuma falta o que eu já fui.

-Vamos subir na roda? Eu nunca subi numa roda e tenho medo.

-Como é que tens medo do que não conheces?

-Não sei mas tenho medo. Acho que é por ser muito grande, a roda. Deve ser por isso que lhe chamam roda gigante.

-Isso é porque olhas para a roda e a comparas contigo que és pequeno. Se olhares para a rotunda lá em baixo, do cimo da roda, verás que não é assim tão grande.

-Tens razão a rotunda é maior e tem graça ser um chapéu. A avenida também é muito grande. Cabiam muitas rodas na avenida. E tu, tu tens medo?

-Eu não posso ter medo. Nunca andei numa roda. E se andei, já sabes que eu não sei

-Pois, desculpa, esqueci-me de que para ti é sempre a primeira vez.

– Anda, vamos para cima!

Sempre a subir, sempre a subir. Como se não houvesse fim no azul de céu, deste lado. E sempre a descer, sempre a descer, como se não houvesse fim no verde geométrico da relva, deste lado. E depois sempre a subir, sempre a subir… E o céu azul que se

apresentava demasiado azul em cada volta como se nunca tivesse existido numa outra volta anterior, sendo que o céu existe em todas as voltas e o geométrico da relva, também. – Gosto de ver o mundo daqui. É o mundo todo, não é? Tão grande! – Creio que sim, que será todo. Ou, pelo menos é o todo que nos cabe a cada um de nós, neste preciso momento.

-Vês, além, parece um bocado de lua.

-É um bocado de lua, realmente.

-E o resto?

-Não sei. Não faço ideia de onde está o resto da lua.

-Ás vezes, ela aparece toda. Outras vezes, aparece só uma fatia de lua. Onde fica o resto?

-Na tua memória em primeiro lugar.

-Na minha memória? Sou eu que guardo o resto da lua quando ela não está no céu?

-Pois és, tu guardas o resto da lua quando ela não está no céu. Guarda-la na tua memória e na lembrança das noites em que te apareceu por inteiro.

-E se a lua nunca mais sair da minha memória e nunca mais aparecer inteira, lá no céu?

-Não creio que isso aconteça, em algum momento, alguma coisa te fará recordar.

-Eu recordo-me do que quero?

-As vezes sim e as vezes não. Temos partes de acontecimentos que nos são enviados. Mas sim, também somos agentes de recordações. Somos nós que as fabricamos.

-Como?

-Vivendo. Quando vives fabricas recordações, muitas recordações.

A roda parou. Estamos cá em cima e cá em cima, pespontado no horizonte, está o mundo todo.

-Olha, tão bonito! Vê, lá adiante, parece uma praça. Vamos até lá?

-Podemos ir, depois. Agora estamos aqui em cima a olhar o mundo inteiro. Não apresses as coisas. Sente o ar que passa tão depressa a querer acariciar-te a cara. E vê as folhas que num balanço caem aos pés das árvores agora tão pequeninas.

-É verdade, tens razão as árvores ficaram pequeninas. Mas eu lembro-me delas enormes. Ainda há bocado, no chão, pareciam-me tão grandes…

– A tua perspectiva é diferente, agora. Estamos aqui em cima as árvores parecem-te pequenas.

-Espero lembrar-me sempre delas assim. Parecem flores e as flores parecem pequenas formigas amarradas ao chão.

De repente, a roda recomeçou a andar. As árvores foram-se agigantando e as flores tomaram balanço para crescer até quase a meio dos joelhos do meu pequeno companheiro.

-Gostei muito. O mundo fica tão diferente lá do alto. Vamos embora?

-Que pressa tens tu rapazinho. O dia está por aqui, não se vai assim embora…

-Eu sei, mas eu vi uma praça bonita lá de cima. Vamos?

Devagar com as mãos dadas descemos o parque e encetamos um novo percurso em direcção a um outro lugar. Mudar, parece-nos melhor do que permanecer. Pelo menos na mudança, os acontecimentos surgem e o meu pequeno companheiro tem pressa de passar pelas coisas.

Deve ter havido um tempo assim em que também eu tive pressa de passar pelas coisas, de viver as coisas. E, digo deve porque, evidentemente, nada disso está presente agora. Sei que esta doença me acompanha desde há muito. O tempo foi-me fechando as janelas e as portas ao passado. Primeiro devagar, com cerimónia. Os óculos que mudavam de sítio, as chaves esquecidas quase em permanência. Depois, as palavras, as frases, os pensamentos, os rostos… Não me recordo hoje, de ninguém, comigo incluído. Não sei o que fiz no tempo que me foi dado viver. Terei, pela ordem natural das coisas, sido criança, depois um jovem e espero que tenha sido feliz. Se o não fui, o facto de não me lembrar também ajuda a que isso não me afecte. Ou, será que mesmo no esquecimento existe alguma lembrança? Onde será que fica a vida quando nos esquecemos dela? Vive-se porque se recorda. Esse instante fugaz a que chamamos presente acomoda-se nos recantos da memória assim que nasce. Nasce-se para se ter passado, apenas e só para se ter passado. Quem não tem passado se calhar nem sequer existe…





Anterior Seguinte

keyboard_arrow_up