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Penas Verdes em Tempos e Ventos de Guerra (Conto)
Por Cláudia de Sousa Dias Publicado em Contos, Literatura, Portugal a 3 de Outubro, 2022 1350 palavras
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Conto XIX – Penas Verdes em Tempos e Ventos de Guerra

Na minha casa, ao fundo do quintal, há um muro cinzento que corta a vista para o quintal das traseiras da casa do vizinho. Mas a cinquenta metros para lá do muro já se consegue ver as janelas do primeiro andar, da água furtada no segundo andar e metade da vidraça da sala do rés-do-chão e o homem a correr ali, incansavelmente, na passadeira rolante. A tarde está no fim e eu distraio-me a observar o interior das outras casas, geminadas, as pessoas ocupadas nos seus afazeres, indiferentes a olhares vindos de janelas indiscretas, que as casas inglesas quase nunca têm cortinas. As suas vidas, plácidas e banais, desviam-me o pensamento das notícias horríveis que me chegam da Síria.

Um vídeo da Al-Jazeera mostrava-me há pouco, em Aleppo, um bombardeamento previamente anunciado, obrigando à evacuação de um hospital pediátrico que era também maternidade. Doentes e pessoal hospitalar tiveram de fugir à pressa. Minutos antes do corte geral de energia, as enfermeiras da unidade neo-natal foram avisadas de que deviam desligar as incubadoras e sair.

Relutantes, as enfermeiras daquela unidade resistiram até ao último momento, mesmo após o aviso final nos altifalantes. Quando cortaram a energia, tiraram os bébés das incubadoras, quase todos prematuros, e segurando, dois e três ao colo, esperaram em lágrimas o último suspiro dos inocentes.

Desliguei o computador e vim para a janela da cozinha. O céu cinzento e espesso como pesado cobertor de chumbo. As árvores sem vestígios de verde, nuas, e a vegetação rasteira, queimada das sucessivas geadas. Na vidraça da sala da casa em frente, virada para as traseiras da minha, o homem continua a correr na passadeira rolante. As janelas das outras casas, agora que a luz se extingue, começam a exibir uma tonalidade amarelada, polvilhada, aqui e ali, por uma outra, azul-esbranquiçada, de écrans de televisores e computadores. Fecho os olhos, por alguns segundos e imagino-me em Aleppo. Na cidade onde o cinzento domina agora, não por via do clima ou da atmosfera. Mas do fumo e dos escombros, do caos e morte trazidos pela mão do homem, feito ódio e ganância sem medida. Volto a abri-los. Estou em Londres e não em Aleppo. Procuro avidamente qualquer mancha verde-vida, que escape a esta mórbida monocromia que domina ambas as cidades, uma por via do Inverno, a outra por via da guerra. Vejo então duas esmeraldas a luzir junto ao granito cinzento do muro ao fundo do quintal. Olho mais atentamente. As duas pedras, no entanto, movem-se. E do muro destaca-se então a silhueta de um gato, sem cauda, redondo e gordo como um texugo ou guaxinim. Ou, se calhar, um ainda mais remoto manul ou pequeno panda, para quem olha do extremo ponto ocidental na Europa. Notando a minha presença, o gato olha-me com intensidade.

Imóvel, porém. Friamente. Fixamente. Fecha então, os olhos, lentamente, para em seguida voltar a abri-los. Já não hostil, não desconfiado, mas ainda não afectuoso. O meu coração continua oprimido, mas começa a desacelerar. Aqui, sinto-me quase tão estrangeira quanto os desesperados refugiados, vindos de Aleppo, Palmira, Damasco, apesar deste país fazer (ainda) parte da UE. Mas eis que o gato desvia o olhar, atraído por qualquer coisa acima da sua cabeça. Uma ave verde, de cauda longa, corta o ar frio, manchando também de verde o céu cinzento e pousa no ramo mais alto do salgueiro da minha outra vizinha, que acolhe nove gatos vadios em casa, durante o Inverno. A ave verde pia, estridente, atraindo os olhos verdes do gato. Ao longe, aquela ave estrangeira parece quase um quetzal. O meu coração alegra-se. Dir-se-ia que um anjo acaba de afagar o meu peito com penas verdes.

………….

Passaram oito anos.

Outras guerras eclodem, o país onde estou desligou-se da União de que fazia parte e sinto-me agora ainda mais isolada, mais estrangeira.

Há mais um vídeo de guerra em directo, no youtube. Desta vez, mostram-me uma capital, ameaçada, mas intacta. Ainda. E Bela. Ainda.

Horas antes, assistira a um encontro de poetas que fazia um recital anti-guerra, por videoconferência, alguns deles debaixo de ameaça real de bombardeamento. A poesia fluía, primeiro em língua ucraniana, depois em inglês, traduzida por vozes do lado não europeu do Oceano Atlântico, mais um milagre das novas tecnologias. Mas a aflição e o desespero nas vozes e língua original, vertida pelos fazedores de poesia, eram impossíveis de se transmitir para outra língua. Das suas vozes, jorrava o horror perante a destruição e ameaça eminente de um ataque nuclear. Depois, o choque de uma jovem poeta, impotente e atónita, face à constatação de, naquele instante, ter perdido a casa dos pais, numa cidade vizinha. Destituída dos vestígios do passado, resta-lhe agora apenas a memória. Um poeta-sacerdote, de barba longa e capelo negro, transmitia a partir de casa, com as paredes forradas de símbolos religiosos, um poema inspirado no kyrie eleison.

Missa em tempo de guerra (1), um grito anti-guerra. E, enquanto lia o poema, fazia-o como quem reza. Como quem exorciza o Mal. Como se a poesia tivesse o poder de congelar as bombas. De paralisar as balas. Outra jovem, longe do cenário de destruição, invectivava o Senhor da Guerra, exuberante de húbris, expondo a sua violenta fome de liberdade.

Por detrás do sofá, um gato bravio, cor-de-neve e faiscantes olhos metálicos, fixava atentamente o écran, como que procurando identificar e memorizar os rostos dos participantes daquela reunião. No final da videoconferência, poetas, tradutores ou simples espectadores, desnudaram os rostos, dando-se a conhecer. Despediram-se, por fim, por entre lágrimas e beijos.

Sei agora que o pessoal veterinário e funcionários do Jardim Zoológico de uma das cidades assediadas se recusaram a abandonar os animais e, em Lviv, num hospital pediátrico de cuidados paliativos, as enfermeiras, algumas delas religiosas, resistiam estoicamente, cuidando e embalando as crianças ao som das canções que as próprias mães e avós lhes cantaram um dia, há várias guerras atrás.

………………

Dois dias depois, em Mariupol, outra maternidade foi destruída e, nesse dia, os pássaros não cantaram. Pássaros amarelos e azuis jaziam mortos no chão.

O Grande Gato Branco, de olhos relampejantes e longas presas, visíveis mesmo com a boca fechada, lançava-se sobre eles, faminto de sangue. Como um tigre de dentes-de-sabre. E, tal como outrora, aquela outra alma das trevas transilvânicas, Vlad Drakul, com o mesmo furor sanguíneo de uma insaciável sede de sangue humano, a sua pelagem branca ia-se-lhe tingindo de uma viscosa tonalidade vermelha-rósea.

Talvez um dia, de tanto se misturar o sangue dos belos pássaros amarelos e azuis, sorvido pela Mãe-Terra, nasça então uma Grande Ave Verde, com uma longa cauda cor de esmeralda. Uma ave que possa sempre voar para as copas das árvores mais altas. Cidadelas inacessíveis a gatos que se alimentem de sangue. A deslumbrante ave verde da Liberdade. Um Quetzal.

(1) Boris Khersonski, Missa in Tempore Belli.

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É Licenciada em Sociologia do Trabalho, com especialização em Educação e Recursos Humanos pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa (!997); Mestrado em Ciências da Linguagem – Linguística comparada pela Universidade do Minho (2015); Investigadora/Estudante de Doutoramento no King’s College London, área de Literatura Comparada. Escreve crítica literária em vários blogues. Colaborou na Revista Caliban. Iniciou na escrita de ficção há cinco anos, encontrando-se a desenvolver um projecto que envolve várias narrativas, com cenário em vários lugares na Europa.

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A foto da publicação é da autoria de Ana Paula Barros.


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