Por isso eu acho o sorriso sutil algo escandalosamente belo
Para Jacqueline Alencar
Como bom subtropical que sou, não decifro bem as estações. Mas creio que era verão. Certamente era verão: fazia demasiado calor, as nuvens se dispersavam no firmamento, o céu azulava a tarde e havia anciães demais pelas esquinas. Afinei o meu gesto o melhor possível, apesar de haver-me vestido com uns andrajos horrorosos. Uma calça jeans preta, uma camiseta muito decotada, também preta, com os dizeres “Penso em arte o tempo todo”. Era adequada à ocasião – pensava –, porque iria encontrar-me com gente das letras.
Um calor tremendo e eu liquefazendo-me numa postura gótica. A tatuagem recente à mostra. Não me reconheceram a princípio. Recordo que depois José me disse: “o meu pai e eu duvidamos de que fosse realmente você, por conta da tatuagem… Só a minha mãe tinha certeza de que de fato era você”. Julguei o detalhe bem humorado e digno de nota. A mãe em questão era, de berço, boliviana e logo me contou que havia estudado lá pelo sul do Brasil e que tinha parentela no Acre (que obviamente ainda deveria ser terra boliviana. O Brasil não precisava de mais território. Nós não conseguimos dar conta). Ou seja, com tudo isso quero dizer que éramos irmãos, em vários graus: primeiramente, éramos gente, de carne, unhas, língua, miocárdio, solidões, etc.; depois, éramos da América Latina (odeio o nome América, digamos Abya Yala); depois, havíamos circulado por paragens similares. As outras divisões são insubstanciais.
Ela, que por certo se chamava Jacqueline, me ofereceu muitos sorrisos sutis, como um passarinho tomando água, e poucas palavras – as suficientes. Ouviu todos os meus despropósitos, todas as minhas absurdezas. Queixei-me da fala direta dos europeus (uma queixa clássica para nós, que pisamos em ovos) e contei-lhe uma anedota sobre uma ida ao supermercado. A moça do caixa queria me cobrar uma garrafa de água que eu não havia comprado lá. Aproveitei-me da forma objetiva de dizer as coisas e soltei impropérios. Digo, palavras bruscas; o meu espanhol à época era por demais precário. Eu ria da minha vingança. Que absurdo! Que bobagem. Ela não me julgou. Eu mesmo me autoflagelei depois, por soltar tantas frases assim, sem economizar palavra. Ela não.
Convidaram-me a mordiscar umas costelinhas num bar próximo à Plaza Mayor. Eu fingia que falava espanhol, eles fingiam de coração que me entendiam. Mas, no profundo das entranhas, entendíamo-nos: gente se entende. Jacqueline e o marido, Alfredo, deixaram o filho responsável por mostrar-me a cidade dourada nos dias subsequentes. Eu que acho o dourado amargo, sujo, duro. O dourado é meio vazio de tudo. Vazio no sentido negativo, claro. É como se acomodasse uma história de cinzas. É uma cor contraditória: conta mil histórias e é profundissimamente vazia. Não sei. Se eu pudesse explicar-me melhor o faria, mas se me explicasse melhor não seria eu.
Depois, voltamos à Plaza para fazer umas fotos. Eu trazia do Brasil um livro de Rizolete Fernandes, revisado por mim e traduzido ao espanhol por Jacqueline. Ela estava feliz, como estavam felizes os pardais que circulavam entre as mesas. Tinha um sorriso em que cabia um mundo, pastos onde vacas suspiravam, duas galinhas aprendendo a voar, umas sequoias enormes e uma selva escondida de segredos. Lembrei-me agora do disco de Gal Costa: “O sorriso do gato de Alice”. Esse sorriso que convida a tudo e sussurra: “tudo que é humano é nosso, tudo é compartilhável. Vem. Posso-te mostrar”. As pombas alongavam os pescoços, os sorvetes passeavam entre os pórticos, os risos dos poucos adolescentes ecoavam dentro dos carrinhos de bebês.
Não sei se o encontro, as costelinhas, os sorrisos, o calor angustiante, o reconhecimento, a escultura rodeada pelo público que não entendia por que o elefante de pedra soltava fumaça pela bunda… algo naquela tarde me conquistou, me pegou pela raiz. Depois disso, só fui descobrindo mais e mais o tamanho real de Jacqueline. Era enorme, apesar de baixa estatura. E tinha um sorriso de cruzar oceanos indomináveis, das dimensões de Abya Yala.
Hoje, Jacqueline descansa no vazio. Na amplitude, no infinito, no paraíso, no espaço. Chamemo-lo como quisermos, cada qual à sua maneira, desde que pronunciado pela língua do afeto. Cai uma chuvinha rala sobre as pedras douradas da cidade e é Jacqueline com saudade do chão, pacientemente vertendo-se. Há uma biblioteca em frente que também me remete a Jacqueline. É a biblioteca da faculdade de tradução e interpretação; e tradução também me remete a Jacqueline. É bom poder recordá-la nesta quinta-feira. Com um sorriso, agradeço a chuva que dança sobre o perfil da cidade que a acolheu.
Leonam Cunha, mar. de 2000e22