O EXPRESSO DE SÃO PETERSBURGO
Há quem goste de carros ou de aviões, eu gosto de comboios, gosto muito de comboios. Há sete ou oito anos, não sei bem, decidi ir uns dias a São Petersburgo, que eu ainda não conhecia, a partir da Bielorrússia, onde estava de férias. De comboio, claro, porque aqueles comboios são um verdadeiro must: antigos e robustos, como a ideologia, e com compartimentos igualmente severos, cheios de rendinhas nas janelas por entre bules de chá preto. Gosto de ir olhando a paisagem e as nuvens em fuga na alta natureza, sobretudo porque, quando se anda de avião, as nuvens acabam sempre por converter-se numa baixa natureza sem altura alguma e a terra suspende o seu existir até voltarmos a tocar o chão. Os aviões são os parênteses da paisagem, mesmo quando a quilómetros de altura vamos olhando uma ou outra cidade, as montanhas, os oceanos.
Adiante, gosto de comboios e foi assim que viajei entre Minsk e São Petersburgo e a verdade é que aquela Veneza das estepes me roubou o coração: os seus canais, os restaurantes, o trémulo azul do entardecer no contra-luz dos monumentos, o contido esplendor do Museu Russo, as marinhas do Aivazovsky. Aquela cidade é de uma beleza tímida e excessiva, o que parece uma contradição, mas não é: trata-se de um excesso virado para dentro, como se o esplendor que é o seu fosse motivo de acanhamento ou de reserva, e não como o das cidades italianas, tocando de evidência o coração do viajante a cada esquina. Lembro-me igualmente do hotel pequenino e confortável, à beira do canal e com uma biblioteca onde li aos poucos a biografia do Trotsky em francês, enquanto esperava a hora de sair para a janta. Fui muito feliz ali, a viagem de regresso a Minsk é que já não correu tão bem.
Saímos ao fim da tarde e depois do jantar recolhemos ao beliche. Lembro-me de acordar de madrugada com um polícia aos murros à porta do compartimento – eram murros em russo e tinham, por isso, mais autoridade. O senhor queria ver os passaportes às duas da manhã de um certo dia de agosto e começou, por isso, a gritar comigo na língua da sua autoridade, abanando de ira o meu passaporte: eu tinha pedido o Visto para a Rússia até ao dia da minha partida de São Petersburgo, como é evidente, e às duas da manhã daquele dia de agosto eu estava ainda em território russo e com um visto caducado há duas horas. Era um facto que eu estava em situação irregular, mas o senhor nem queria ouvir falar dos óbvios argumentos: como poderia eu saber que na madrugada do dia seguinte ainda estaria em solo russo? E se a essa hora eu ia a dormir num comboio com destino a Minsk (para onde tinha visto válido), não era óbvio que eu pretendia mesmo deixar a Rússia? Arrume as suas coisas, vai ter que sair no próximo apeadeiro. Se eu tivesse matado a família em vez de ir pacificamente a dormir numa carruagem a caminho do meu destino talvez tivessem sido um pouco menos agressivos. Sim, no plural, porque a essa hora já estava com três polícias à ilharga, que depressa saíram a correr quando um outro começou também aos gritos. Pus a cabeça fora do compartimento e aquilo que vi não tem explicação: uma senhora de meia idade aos prantos agarrava-se aos pés de um polícia que lhe batia com uma vara de pau enquanto a arrastava pelo corredor fora. Tenho uma memória fotográfica daquela cena lancinante e daquele polícia que arrastava, tomado de fúria assassina, uma mulher natural da Geórgia e com um visto caducado havia seis meses. A senhora saiu algemada no apeadeiro onde também eu deveria ter saído, mas os polícias devem ter achado que o dito era pequeno demais para duas criminosas, de modo que saiu só a criminosa da Geórgia. Aquela dama estava de facto em apuros e não se pode dizer que não os tenha procurado, mas eu fiquei a conhecer os russos.
Alguns anos depois deste episódio começou o calvário bielorrusso, com a manipulação dos resultados das eleições presidenciais do comparsa pobre (e bastante mais burro) do Putin, Lukashenko de seu nome, e que tem por hábito meter na cadeia gente que não está de acordo com as suas políticas. Já vimos isso por cá, não já? Não deixa, no entanto, de ser curioso que os carrascos que agora maltratam em cirílico aqueles que entendem não merecer a paz tenham a mesma cor da dos prisioneiros portugueses dos tempos idos e isto deveria lembrar-nos a todos do óbvio: as ditaduras não são más por serem de esquerda ou de direita, mas porque são ditaduras. Há um moço bielorrusso simpático e inteligente (que já comeu muita paparoca aqui em casa) que está há mais de um ano na cadeia, em Minsk, sem julgamento nem direito a visitas. O que fez ele? Redigiu um post numa rede social bielorrussa denunciando os desmandos ditatoriais do lacaio do Putin. Se tivesse cosido o pai à facada seria, naturalmente, menos grave, e talvez pudesse ter, pelo menos, direito a julgamento.
Ora há pessoas e partidos que parecem esquecer o óbvio – o Forte de Peniche não é refém de uma cor, é refém de um crime que não tem cor. Sabem o que vos digo? Que o Altíssimo nos livre da perfídia subserviente dos tolos, como o senhor Lukashenko, mas pior do que um tolo é um louco varrido como o Putin, ainda por cima atiçado pelo megalómano delírio do crime. E se ainda há quem ache que o meia-leca da Sibéria é movido pelo gás da glória comunista eu sou a Ursula von der Leyen das Beiras. Felizmente que, para sossego meu e dos meus, posso dizer o que penso sem me acorrentarem às grades.
Isabel Cristina Rodrigues nasceu em Coimbra em 1967 e licenciou-se em 1989 na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Franceses). É Professora Auxiliar com Agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro desde 1991, tendo apresentado uma dissertação de doutoramento sobre a obra de Vergílio Ferreira (A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira), publicada em 2016 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Tem ainda dois outros volumes dedicados ao escritor, A Poética do Romance em Vergílio Ferreira (Lisboa, Colibri, 2000) e A vocação do lume. Ensaios sobre Vergílio Ferreira (Coimbra, Angelus Novus, 2009), exercendo maioritariamente a sua docência e investigação nos domínios da Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea e da Teoria da Literatura, em cujo âmbito tem publicado ensaios em revistas nacionais e estrangeiras.