Literatura para a Infância e Ideologia
É habitual nos livros destinados aos mais novos, depararmo-nos com um destinatário expresso, a criança ou o jovem, muitas vezes explicitamente definido pelo poeta ou narrador e outras vê-lo subentendido nas marcas específicas deixadas por inúmeras caraterísticas do texto, onde a adequação linguística, concretizada por vias múltiplas, adivinha um leitor que ainda necessita de estratégias lúdico-expressivas para poder aceder ao conteúdo textual.
A problematização da Literatura Infantil enquanto objeto que se parece reduzir pelas marcas estilísticas e/ou estruturais que emergem dos textos e que a diferenciam da literatura canónica, tem sido alvo de muitas reflexões, mas pensamos que “é na entidade recetora que a Literatura Infantil encontra a sua especificidade não porque seja constituída por textos nos quais os traços, as caraterísticas ou a sua capacidade de funcionamento semiótico revelem alguma defetividade, mas tão somente porque alguns dos seus recetores dada a especificidade da sua natureza, possuem e manifestam experiências de interação com textos diversas das de um leitor já experimentado (…)” (Azevedo, 2006:12).
Nessa perspetiva, deparamo-nos, logo à partida, com o confronto entre os fatores paratextuais que anunciam o destinatário, coadjuvados por um título normalmente apelativo e anunciador da entidade recetora, mas figurando-se em temáticas muito pouco exploradas, até ao momento, tendo em vista as crianças e jovens. Referimo-nos às biografias e historiografias ficcionais e textos explicitamente construídos para veicular ideologias e/ou valores, a maior parte das vezes assentes na “concepção que cada um dos escritores tinha do que devia ser a intervenção cívica, em período de retraimento e de mordaça” (Letria, 1994:24).
Estes textos nascem, então, enraizados noutros textos, dinamizando, no entanto, o campo de outras palavras novas, nascidas “das brechas do velho discurso, e solidária daquele” (Jenny, 1979:44), mas parecem querer de imediato assumir-se num dialogismo com o destinatário, oferecendo-lhe nos títulos mediatos sinais indicadores de que o conteúdo textual estará completamente a aguardar a sua chegada, como se a relação triádica que se espera pela intrusão de um mediador adulto, facilitador da relação leitor e o texto, quase fosse dispensável. Isto, contudo, viria contrariar o caráter ambivalente dos textos da literatura infantil (Shavit, 2003: 66) que prevê que um leitor-modelo adulto, experiente, ajude o leitor-modelo criança, ainda com reduzida experiência de vida e de saberes, a construir os significados sociais e individuais que o texto lhe oferece, mas, ao mesmo tempo, sustenta a crença na capacidade do jovem leitor poder, autonomamente, aceder de forma simples ao conteúdo complexo que estes textos sustentam. Para tal, o leitor vai encontrar, nas teias de um título impregnado de solicitações lúdicas, o convite a entrar no enredo onde personagens, ações e valores se oferecem em construções ficcionais que visam convocar o leitor para a organização de ideologias e sistemas culturais tidos como imprescindíveis à sua humanização, enquanto ser pertença de uma polis, de que vai ser também construtor ou reinventor.
As biografias e historiografias para a infância obedecem a uma norma de estruturação que, articulando-se com componentes do imaginário infantojuvenil, desconstroem a complexidade temática para que esta possa ser amplamente recebida pelo leitor pouco experiente. Assim, não nos querendo esquecer da noção de “ambivalência do texto”, queremos destacar os espaços abertos que preveem determinados comportamentos interpretativos dos leitores. Ao evidenciarem-se neste tipo de textos, que se dirigem explicitamente ao destinatário infantil, parecem querer apelar a esta comunidade de leitores para a atenção, que deverá exercitar através da leitura oferecida, para componentes ideológicas e de valoração oriundas da apropriação do mundo histórico, factual e empírico, observando-os como futuros cidadãos interventivos.
Esta intencionalidade implícita poder-nos-á levar à observação da literatura Infantojuvenil como espaço de aquisição do conhecimento, valorizando a “teoria das ideias”, a inteligência ordenadora do demiurgo, ou seja, todo aquele que é construtor do Universo e cuja função é modelar as ideias da matéria com o melhor possível. Por analogia, a funcionalidade das temáticas que integram os textos ficcionais biográficos, historiográficos ou de explicitação de valores poderá basear-se nestes paradigmas que recorrem por vezes a narrações míticas onde os termos “imitação” ou “participação” ganham particular significado, pois os seres sensíveis, crianças e jovens, são convocados a imitar as ideias que decorrem das leituras efetuadas e, posteriormente, a participar nelas, organizando padrões de referência modelizadores da sua forma de estar no mundo.
Com efeito, a leitura é sempre uma tentativa de buscar significados com interesse provenientes do exterior, porque a estrutura do leitor, enquanto ser humano, é a de interação com os outros, de permutação de significados com outros a quem se reconhece o estatuto e se procede a protocolos onde se deseja estabelecer o desejo de comunicação. Assim sendo, a literatura pode apresentar-se com uma função “útil” no sentido em que pode ser “doutrinal ou cognoscitiva” (Dominguez Caparrós, 2002:27-31), na perspetiva de uma prática comprometida ou ideológica, pois contempla a imitação da realidade, fomenta a capacidade de generalização e tem finalidades formativas e/ou educativas provenientes do exterior e que estabelecem grandes conexões com a sociedade.
Então, “el papel del escritor consiste en llevar esta visión al máximo de conciencia, y darle, en el plano de la imaginación, una representación estructurada” (Dominguez Caparrós, 2002:70) para o qual contribui o conceito de visão do mundo, expresso no plano literário pela criação de um universo de seres e de coisas, em interação.
Em Portugal, apesar da recente publicação de múltiplos livros do género a que nos referimos, temos de destacar José Jorge Letria como um dos autores com elevado espólio focalizado para a preocupação da veiculação de ideias sobre os processos histórico-sociais, em que as personalidades ficcionalizadas intentaram provocar alterações através de condutas inovadoras por universos nunca antes debelados. Essas personagens sustentam a materialização da necessidade da evolução, perpetuando nas gerações vindouras os modelos supremos e aperfeiçoados do homem.
Esta aceção encara a literatura como praxis transformadora da realidade, pois parte de uma grande motivação executada por ela, hasteando fatores subjetivos de crítica que lhe dão forma pelo juízo que nela se efetua, através das ações e dos mecanismos lúdicos de observação de que se impregnam os enredos. Isto levar-nos-á ao conceito de ideologia como “construção da verdade”, em que as “sociedades são observadas como entidades em mudança, mais separadas por conflitos do que unidas por um consenso estável” (Mclellan, 1987:25). O mesmo é confirmado por Geiger (2000:194) quando refere que as “ideologías son ideas o series de ideas que no se corresponden con la realidad”, mas se se admitir a significação do pensamento, o discurso necessita de ser mediado para se tornar compreensível e a esta mediação também se pode chamar ideologia, pois trata-se de uma representação que o sujeito elabora a partir das relações efetivas dadas pelas condições de vida em que se encontra.
A instituição-literatura, porque medeia feitos político-sociais e humanos provenientes da concretização do mundo empírico e histórico-factual, é um veículo de partilha de valores variados, incluindo os ideológicos, não só porque possui significados, naquilo que os textos dizem, como executa a forma como esses significados são ditos e se apoderam de significação. E não podemos excluir a literatura do aparelho ideológico do estado, embora tenhamos que a
colocar na área de pertença da sociedade civil, onde o aparelho ideológico educacional desempenha um papel importantíssimo na formação social.
Embora pela sua natureza a ideologia pareça ser independente destes aparelhos, ela desempenha um papel preponderante na representação da relação vivida pelo ser humano com a realidade, que passa por ser uma relação imaginária com as condições de existência reais.
Com efeito, as temáticas que se anicham a este tipo de textos surgem como processos camuflados de explicar a realidade e que, por serem ficcionalizações, não lhe correspondem. São, por isso, construções de uma ilusão que se vincula à realidade, mas basta “interpretá-las” para reencontrar, sob o ponto de vista da representação imaginária do mundo, a realidade nelas representada.
Neste espaço de reflexão, vemos o jovem leitor direcionando para as normas de coerência a ter em conta na orientação da sua prática enquanto ser do mundo, que nele age e interage e que, se possível, aprenda a desenvolver constantemente um espírito crítico, interventivo, com base nos pressupostos que o desejam cidadão detentor de liberdade e construtor da realidade, numa sociedade contemporânea marcada por fragilidades e novas desigualdades.
Fitoussi & Rosanvalon (1997:3) referem que a crise que se atravessa, sociológica e antropológica, é, ao mesmo tempo, “uma crise da civilização e uma crise do indivíduo”. Assim sendo, de que forma é que a literatura se mantém atenta às transformações sociais e de que modo preconiza um conjunto de valores a assumir por cada cidadão-leitor no sentido de contrariar o “individualismo”, enquanto doutrinação que exalta o valor do ser humano individual?
Desde sempre o homem procurou nos seus relatos criar um mundo. A verificação da veracidade desse relato por parte do recetor implica a constituição da categoria de “verdade”, que delimita os discursos históricos e literários. Inventar um mundo é uma prerrogativa do estatuto literário, pois esta cria um simulacro da realidade, povoada por personagens-modelo que labutam na teia das ações que se desenrolam no texto, segundo perspetivas que destacam componentes adjuvantes ou opositoras dos seus projetos de vida ficcional. Por isso, a criação desses mundos possíveis obedece a componentes das quais fazem parte conjuntos, implícitos ou explícitos, de valores humanos, sociais, ecológicos, recolhidos pelos exemplos doados pela interação que o homem executa com o mundo empírico e que trespassam as barreiras do real, colocando-se nos mundos possíveis, expressos pelos textos.
Assim, surgem os textos de explicitação de valores escritos para serem lidos por destinatários ainda pouco acostumados a refletir sobre as temáticas de organização social, que apelam a uma participação do individual não somente numa componente formativa de doutrinação, mas espelhando a necessidade da participação no domínio coletivo, “entrelaçados com ensinamentos inspirados acerca das questões humanas e da sociedade global, na qual se encontra hasteada a bandeira do «novo intervencionismo»” (Madureira, 2002:55), tal como é possível observar nas temáticas sobre ecologia, terrorismo, liberdade, violência, cidadania … explicada aos jovens e… aos outros de José Jorge Letria.
Biobibliografia
Teresa Macedo nasceu em Gominhães, Guimarães, em maio de 1962.
Tem ocupado a sua vida profissional, lecionando no Ensino Básico e, cumulativamente, no Ensino Superior.
É investigadora no CIEC da Universidade do Minho, doutorada em Estudos da Criança, na especialidade da Literatura para a Infância e Juventude.
Dedica parte do seu tempo à escrita, sendo autora dos seguintes livros:
O Presépio de Musgo (2011). Edição de Autor.
Amanhã é Natal (2012). Edição de Autor.
A Minha Avó (2003). Edição de Autor.
A sopa dos pobres (2014). Edição de Autor.
Encantos (2015). Edição de Autor.
Musgos (2015). Porto. In-Libris.
Os Emigrantes (2016). Edição de Autor.
Baquet- A Vala Comum (2018). Fafe. Labirinto.
Fragmentos de Natal (2018). Fafe. Labirinto.
Guimarães- Tesouros Clandestinos (2019). Fafe. Labirinto.
Torcatus (no prelo).