menu Menu
A poesia catalisadora de Albano Martins
Por António José Borges Publicado em Literatura, Portugal, Recensões a 4 de Junho, 2022 1350 palavras
Poesia Espanhola Atual (II) Anterior Mientras dure la luz de Dionisia García (Recensão) Seguinte

MARTINS, Albano (2017).
Pequeno Dicionário Privativo
seguido de Um punhado de areia.

Porto: Edições Afrontamento.

Esta penúltima obra de poesia de Albano Martins (em 2019 foi editado o livro Os dados de Eros, com a chancela da Glaciar), publicada em vida, é constituída por duas secções com um total de 78 páginas: a primeira, Pequeno Dicionário Privativo, com quarenta e seis poemas, e a segunda, Um punhado de areia, com oito poemas. Estas secções seguem, por ordem, o título do livro. Trata-se de um livro contido na dimensão da sua poesia em forma de prosa e profundo e exemplarmente temperaturado na expressão e na linguagem. O título e os títulos transportam, como assim deve ser, a ideia de um pequeno dicionário, no sentido de glossário do universo poético de um autor e da própria poesia, no sentido privativo, se quisermos, como assim mais motiva num exercício de subsídio para a sua arte poética.

Esta obra suscita o prazer da leitura desde logo pela agradável apresentação gráfica alusiva à natureza contemplativa e autorreflexiva e pelo seu formato retangular alongado, o que embora parecendo algo de somenos ou casual, na verdade não o é, pois torna mais íntima a toma do livro. E é na ordenação alfabética dos poemas que reside um dos aspetos que na construção da obra oferece imediatos patamares de acesso ao seu universo, sendo que dois aspetos que talvez fechem as portas mais óbvias sejam o seu duplo título e a opção pela poesia em forma de prosa.

De entre os mecanismos que o autor utilizou para que o leitor entre na obra, destacamos, a abrir, a nota que informa da publicação anterior em jornal e livro, de alguns poemas que constam nesta obra, os quais o poeta considera fixados.

Para um leitor comum compreender esta obra é necessário atravessar o nevoeiro do dia-a-dia, abrindo o coração e o entendimento a uma forma de dizer por outras palavras e elucubrações as coisas que nos habitam e só elaborando desta maneira pode o crítico ajudar a abrir ao leitor a intenção deste livro. Não será, assim, irrelevante considerar que não pode o crítico esclarecer ou iluminar esta obra, na medida em que só o leitor, instância quanto a nós superior a qualquer estudioso ou especialista, pode concluir os sentidos que Albano Martins (AM) cava fundo nos termos que o poeta escolheu. O que é olhar, ver e reparar no “Absurdo”, numa “Acácia”, “Lágrima”, “Mulher”, no “Tempo” ou “Verão”? O poeta não explica nem se explica sobre estes e outros sentidos dos quarenta e seis poemas. Abre caminhos numa floresta de perspetivas que dependerá da experiência individual de cada leitor. Deste modo, a obra muda ou enriquece instantaneamente o olhar do leitor perante o livro a cada poema, em cada virar de página… até Um punhado de areia que avoluma a abordagem até à densa e leve “Infância”, «A palavra antes da palavra, antes da fala: in-fância» (p. 69). Poderíamos dizer: que maravilha esta entrada no tempo e no templo de cada poeta, na chama incandescente da eterna inocência que é amar. Neste sentido, AM conjuga o verbo agradecer paralelisticamente no poema “Este chão que me deu a seiva ou esta outra forma de agradecimento” (pp. 62-64), um poema que imortaliza os companheiros da inocência do poeta.

Que questões, então, este livro coloca a quem o lê e que resposta lhe pode ser dada, ao livro? As questões são inconcretas porque frutificam na universalidade e na intemporalidade dos temas. A resposta que lhe pode ser dada só pode ser a da leitura dedicada, determinada e renovada, ora com estas atitudes surgirão naturalmente as respostas possíveis às principais interrogações que a obra coloca. Com efeito, destacamos dois poemas que traduzem por si só o caminho que queremos vincar no caráter desta bela obra que experiencia as valências da nossa existência:

LUZ

A do sol, soberana, que a lua aluga às vezes e
reenvia graciosamente para a terra. A do relâmpago,
sufocada à nascença. A que às vezes se vislumbra ao
fundo do túnel e acende clareiras na escuridão. Todas
as luzes – uma só luz – para dizer «bom dia» à vida.
Uma só lâmpada para dizer «boa noite» e adormecer.
(p. 36)

PAIXÃO

O seu sinónimo perfeito é sofrimento, mas o sofri-
mento por amor é o único humanamente tolerável e,
mais do que isso, apetecível. Diria mais: a paixão é a
única forma digna de enfrentar a vida e resistir aos
diários assaltos da morte.
(p. 39)

            Estes versos – «verbetes-poemas»[1], no dizer do romancista e crítico literário brasileiro Álvaro Cardoso Gomes – alinham com um dos propósitos máximos de toda a poesia forte: uma interrogação sobre a existência, justamente uma das grandes linhas da ars poetica de AM. Fascina, por fim, nesta poética a energia das palavras «evocadas para desencadear imagens»[2].

            Estamos, deste modo, também perante um eficaz e luminoso dicionário poético (com sentidos a cujo osso do entendimento não aspiramos) de oposições entre o pulsar e a partida e, precisamente, de luta voluntariosa contra o destino.

            Concluímos que com a palavra de Albano Martins e uma poesia assim nunca seremos pobres nem estaremos sós.


[1] In GOMES, Álvaro Cardoso, “Dicionário Privativo”, p. 163, apud Letras Com VidaLiteratura, Cultura e Arte (I, nº 9), “Dossier Escritor Albano Martins” (org. António José Borges e António Fournier), Lisboa, Theya Editores, 2018-2019, pp. 155-299.

[2] Idem, p. 165.

***********

António José Borges, nascido no Peso da Régua, licenciado em Ensino de Português e Alemão, Mestre em Ensino da Língua e Literatura Portuguesas e Doutorando em Estudos Portugueses, tem lecionado no ensino público e privado e é investigador no CLEPUL da Universidade de Lisboa, onde coordenou ciclos de conferências e dirige o “Dossier Escritor” da revista Letras Com Vida. Lecionou Literatura Portuguesa Contemporânea e Teoria da Literatura na Universidade Nacional Timor Lorosa´e. É vice-diretor da Revista Nova Águia.
Foi cronista permanente na revista Tribuna Douro e contista no jornal timorense Semanário e tem colaborado em revistas nacionais e estrangeiras, entre as quais: Navegações (Brasil); Espacio/Espaço Escrito – Revista de literatura en dos lenguas (Galiza); O Escritor (APE); Mealibra (Círculo Cultural do Alto Minho); Humanitas (Universidade de Coimbra); Douro – Estudos e Documentos (Faculdade de Letras da Universidade do Porto); Terra Feita Voz (Círculo Cultural Miguel Torga); Geia (Revista da Tertúlia de João de Araújo Correia); DiVersos; Letras Com Vida (CLEPUL), Revista de Letras (UTAD), Foro das Letras, Submarino (Univ. de Turim, Itália) e Ecos do Oriente, entre outras publicações de ensaio, poesia e conto em antologias portuguesas, de crónica em Goa e ensaio em Itália e no Brasil. Além do Português, está publicado em Tétum, Inglês e Italiano. Atualmente, é contista e ensaísta permanente no jornal As Artes entre as Letras.
Foi Membro do Júri do Prémio de Literatura (modalidade de ficção) Cidade de Almada (2010) e do Prémio de Poesia do Festival de Literatura e Filosofia de Fátima: Tábula Rasa (2015, 2017 e 2019).
É autor dos livros: Timor – As Rugas da beleza (crónicas, 2006); de olhos lavados / ho matan moos (poesia – edição bilingue, com tradução para Tétum de Abé Barreto Soares, e ilustrações de Piera Zurchter, 2009); José Saramago – da Cegueira à Lucidez (ensaio, com prefácio de Miguel Real, 2010), Fármaco (poesia, 2012), Agulhas de Água (poesia, 2016), Peito à janela sem coração ao largo (crónicas, 2019) e Diacrónicas (crónicas, 2020). Tem no prelo o livro de contos E se tudo o que converge deve subir.


Anterior Seguinte

keyboard_arrow_up