menu Menu
A presença de Isadora Duncan na poesia de Graça Pires (ensaio)
Por Eugénia Vasques Publicado em Ensaio, Literatura a 18 de Janeiro, 2022 1459 palavras
Três poemas inéditos Anterior Poesia lírica e crítica literária (ensaio) Seguinte

Isadora(s)

Ao contratar o barco [1903], Raymond explicou através de pantomima, e um pouco de grego antigo, que desejava que a nossa viagem, tanto quanto possível, se parecesse com a de Ulisses. (Isadora Duncan, A Minha Vida)

Everything must be undone. (Isadora Duncan, “The Dance of the Greeks”; La Danse de l’avenir, p. 50)

I hate dancing. I am an expressioniste of beauty. I use my body as my medium, just as the writer uses his words. Do not call me a dancer. (Isadora Speaks, p. 53)


  1. A primeira palavra de Jogo Sensual no Chão do Peito, poema (dramático) de Graça Pires, em seiscentos e trinta e quatro versos e cerca de uma trintena de sequências, é uma palavra de acção. Mas de acção intransitiva. “Aceito.”, diz, com ponto final, o eu poético. Porém, continua: “Deliberadamente aceito/reencontrar-me comigo.” A acção do verbo intransitivo muda abruptamente. Afinal a aceitação volve-se transitiva e dolorosa. Na primeira sequência deste poema, auto-épico (um prólogo, cantos e uma coda ou epílogo), que se espraia pelo campo semântico do olhar, radica o programa do que se vai seguir. Há um antagonista visível – justamente o “[seu] olhar” – que obriga à urgência de um reencontro. A poeta não recusa. E o grande antagonista “Tempo” terá, então, “o jogo de quem vence”. O corpo, por meio metonímico dos pés, “no improviso da dança”, inicia esse jogo, feroz, de enfrentamento do eu com a sua alteridade, com a sua memória. E, “na trama deste enredo”, num estranhamento de si, a poeta nomeia a Outra: “Isadora”.
    E a autobiografia duplamente ficcionada, da bailarina e da poeta, começa a desenrolar-se pelo fio enganador da roca de Penélope.

  2. Que fantasma é este que se desenha e de quem é o nome que encarna o simulado e especular enfrentamento de si? É, como se lerá, o fantasma mítico de Angela Isadora Duncanon, a norte-americana Isadora Duncan (1877-1927) que, quase sozinha (talvez ao lado de Nijinsky), simboliza uma revolução na Belle Époque da Ginástica Rítmica e da Ginástica Sueca. Símbolo da libertação do Corpo pela Dança, da libertação do corpo das mulheres das barbas de baleia e das normas antinaturais do Ballet, lutadora pela restituição do Corpo às Mulheres, defensora da trilogia programática Dança-Natureza-Nudez, Isadora, leitora ávida, melómana indefetível mas estudante bissexta e impaciente, foi uma pioneira desencontrada do seu tempo que dizia, sem pudor, ter somente três Mestres: Jean-Jacques Rousseau, Walt Whitman e Nietzsche, ou melhor, Beethoven, Nietzsche e Wagner!
    Largando, com os irmãos e outros libertários, as roupagens da sua classe, procurou um modelo de vida alternativa, peripatético e dionisíaco, inspirado no romântico ideal de uma mitificada Grécia Antiga, alimentado intelectualmente nos seus primeiros tempos de Londres (com Andrew Lang, o helenista, em lugar de destaque), e consubstanciado, aliás, no movimento Lebensreform da Alemanha e em comunidades anarquizantes como a de Monte Verità, na Suiça (que visitou no terrível ano de 1913), dançando, como mais tarde Laban e os seus discípulos, descalça e vestida com ligeiras e transparentes túnicas desenhadas segundo a estatuária grega e a pintura. Antes da Grande Guerra, Isadora, a californiana, ladeara o helenismo, o pacifismo, o feminismo, o safismo, a antroposofia, a psicanálise, o anarquismo, o comunismo, o vegetarianismo, a filosofia oriental via ocultismo, enfim, o movimento (simbolista) da dança como arte total, ritual e religião.
    Dançou pelo mundo e conheceu a glória. Perseguiu, de 1904 até ao fim dos seus dias, da Alemanha, aos Estados Unidos, da França à URSS, o inatingido sonho de fundar uma escola de Dança gratuita para crianças, sobretudo meninas, na qual o conhecimento seria alcançado através da prática da “expressão natural”. Era pagã, contra o absurdo do casamento, contra o sufragismo e o feminismo – enquanto existisse parto com dor! — e acreditava na maternidade. Perdeu os seus três filhos e perdeu-se totalmente de si, mas não da Dança. Em Corfu, sacrificou, no mar, a cabeleira em sinal de luto.
    Casar-se-ia por generosidade com um poeta nevrótico. Viveu a sua decadência e não entendeu o tempo novo de Zelda Scott-Fitzgerald. Ditou e inventou as suas memórias parciais por necessidade económica. Morreu num acaso trágico e espectacular que parecia encenação sua.
    3.
    E quem é, por seu turno, a Isadora do poema?
    Esta Isadora de Graça Pires inscreve – nas paredes de ressonâncias platónicas – gestos indecisos, palavras sombrias, pressentimentos, lágrimas, gargalhadas e desalentos. Reconhece a solidão que não mascara com as lembranças. Para se observar, para se ver de fora, esta Isadora recorda, ao contrário de Ulisses, o seu nome, a sua infância, inocente, as suas fugas, o mar, o corpo nu, a boa solidão de estar só, a vertigem. Treina a evasão de si. Nascida sob a estrela de Afrodite, loira, olhos violeta de revoltada, pernas esguias, com elas soerguia o corpo até à intimidade do chão. Descobria que a Natureza era a sua única escola.
    Sob a influência da Mãe, aprendeu a feminilidade sem enfeites. Adquiriu poder espiritual a ouvi-la tocar música clássica e a recitar os poetas do seu tempo.
    Começou a decifrar os mitos nos vasos gregos e na pintura de Botticelli. Percebeu o sagrado e o profano e que a dança é a expressão divina da humanidade em direcção à luz. Dançou descalça imitando os rituais aos deuses e aos anjos. Foi cúmplice das bacantes e dos bichos, das árvores e das chuvas, como Francisco de Assis. Procurou as máscaras da tragédia grega até à alucinação das vozes.
    Muito jovem, desejou fugir, mas interditou-se os sonhos.
    Regressava ao corpo sempre que o sangue lho pedia. Com as suas mãos – cingia, acenava, manuseava, suplicava, ordenava, tacteava –, imitava o ritual da posse e aprendeu a voar para a luz do sol purificadora.
    Rumou à Europa e pensou na vida como peregrinação.
    Encenou o seu corpo seminu e vestiu-o ligeiramente para o júbilo do voo; criou uma coreografia sobre música que só ela escutava. Inventou um erotismo de gestos abstractos das coxas firmes, das articulações ágeis, disfarçando a dor; com a sua pele suada, enfrentou as vozes que lhe espiavam o rodar das ancas para a acusar de imoralidade. Foi enlameada e difamada e acusada de escândalo e provocação. Mas os seus gestos, de tumulto erótico, vinham do instinto e eram arquetípicos, primordiais.
    Recomeçou sempre, bebeu em todas as fontes que lhe mitigavam a solidão. Ouviu e dançou a música – de Chopin, de Beethoven, de Wagner. Esculpiu, no espaço, figuras retiradas da vida: pétalas de rosa a cair, velas ao vento a lutar contra as ondas. Mimetizou a imobilidade e o espasmo do movimento convulso. Experimentou o transe e a euforia, o ar e o fogo da emoção dançada. Inventou gestos inspirados pelo enigma dos Mistérios de Elêusis. Nada nem ninguém a desviou do palco. A posteridade culpá-la-á por ter sonhado. Mas sonhou, trabalhou, deixou-se fascinar, enfeitiçar. Era possuída por um felino interior que lhe ditava as coreografias.
    Adorou os aplausos, mas nunca acreditou em Salvação. A Dança era o seu credo. Quis fazer uma escola habitada por crianças e ternura. Em país nenhum, da América à Rússia bolchevique, foi entendida.
    Enrolava-se na cortina azul, seu único cenário. Chegou até a escrever a sua vida. Percebeu, porém, que as palavras são insuficientes.
    Aceitou o destino de ser mãe, o sublime anseio.

[Rememora agora o passado e interroga-se: “Como contar aqui todos os tropeços, /todos os despojos, todas as solidões?”]

Lembra-se da fama, coisa vã. Surpreende-se com a passagem do tempo. Recorda os amores, as paixões, os desencantos.
Teve maus pressentimentos que a levaram a gostar de dançar ao som da Marcha Fúnebre de Chopin. Descobre, com a morte dos filhos, o grande, o único grito maternal.
E renuncia ao amor. Horror, guerra e caos. Mas ressuscita.
Regressa aos Estados Unidos da América, lugar onde nascera.
Naquele dia frio do sul da França, vê a natureza em convulsão e pressente um acto sacrificial. Tenta cobrir os ombros com o xaile vermelho. Cavalos cavalgam as ruínas do seu peito. O coração parou. “Morrer sim, mas devagar”, parece lembrar a bailarina. A poeta.


Anterior Seguinte

keyboard_arrow_up