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Poesia lírica e crítica literária (ensaio)
Por Paulo Franchetti Publicado em Brasil, Ensaio, Literatura a 18 de Janeiro, 2022 1933 palavras
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Insônia

Tenho a impressão de que desenvolvemos no Brasil uma espécie de aversão à lírica. João Cabral tem um papel relevante nisso, sem dúvida. Assim como a poesia concreta, cujo significado nunca vai muito além do procedimento. A verdade é que Cabral terminou por ser mais ou menos onipresente, nas últimas décadas. Vi tantas vezes glosado o tema da pedra ou da faca, que certa vez me referi ao grande contingente de imitadores ou admiradores incorporantes como “o clã da pedra”. E sinceramente creio que todo poeta contemporâneo deveria sentir-se envergonhado de glosar pela milésima vez os lugares preferenciais da poesia de Cabral. Também me parece verdadeiro que a poesia concreta teve um papel importante na condenação ao lirismo, que é exorcismado brandindo um anátema tão vazio quanto “rigor”, que é pedra de toque de elogio: “confessionalismo”.

Como crítico, sempre tentei compreender o movimento e a tendência. Já como leitor, leio com algum tédio os protestos contra a poesia lírica, “confessional” ou “visceral”, e também me cansa aquela parte da poesia contemporânea que, em verso prosaico ou prosa entrecortada, abastarda e resume a cartilha da pedra ou do antilirismo. Como leitor, procurava sobretudo, na poesia, um traço de interesse, de dissonância, de novidade marcada pela individualidade. Dizendo de modo brutal, o mais das vezes me surpreendia perguntando-me: o que esse sujeito tem a me dizer, além de propor um elogio da poesia, do poeta, ou mais um artefato verbal desprovido de nervo? O que ele tem a me dizer que já não foi dito melhor pelos seus próceres ou paredros?

Ou seja: houve e há sempre um duplo olhar: o do professor, que analisa e tenta entender, e o do leitor, em busca de conhecimento, prazer e novidade. E este perguntava-me, frequentemente, antes de abandonar o livro ao compromisso do professor: por que eu leria outra manifestação dessa glosa infinita daquilo mesmo que é a doxa universitária no Brasil?

Como leitor, portanto, o que eu buscava (e encontrava aqui e ali, em medida vária) era o pulso da minha época, transmitido por uma sensibilidade individual, única, radicalmente inserida no seu tempo e não mais uma tentativa de corresponder a um desenho histórico ideal, na busca de sedução de um leitor igualmente historizado e ideal.

Boa parte da poesia que tenho lido no Brasil ao longo das últimas décadas é uma poesia que evita o risco. A ironia está em que a poesia de quem mais glosa esse tema (poesia é risco) é a que menos risco corre, pois se compraz na repetição do mote, forjando a exclusão que almeja como defesa justamente contra o não ter nada a dizer. Não é que diz e corre o risco de dizer. Nem que faz algo novo depois de 50 anos, e corre o risco de fazê-lo. Pelo contrário, não diz outra coisa a não ser que corre o risco que se recusa a correr, fossilizada num futuro ainda por vir, ou que teria de ter vindo, mas não veio: o futuro que, vindo, se anula em outro futuro desejado . Nessa seara, o que sempre me impressionou foi, em maior ou menor grau, a negação do presente, em nome do futuro – e a passagem fulminante da projeção do futuro para o lugar almejado no museu. O lugar do futuro do pretérito e do condicional: naquele tempo teríamos feito isto, se tivéssemos as condições; seria muito melhor se nos tivessem ouvido ou nos seguido…

O que interessa ao leitor que sou é exatamente o presente, a apreensão da forma transitória, que pode sumir como a fumaça no ar, ou permanecer como um rastro ou um monumento. Presente que só pode ser conquistado, eu acho, por meio de uma personalidade forte, disposta a correr os verdadeiros riscos, que são a falta de certezas e a valorização da experiência, não no sentido “científico” de conseguir algo que almeja ser regra no futuro, mas no sentido de tateio do que é mais obscuro e pessoal, e que resiste às narrativas de prestígio. Ou seja, não experiência no sentido científico – principalmente porque em arte, nos nossos dias, a reprodução do procedimento, em vez de confirmar o seu valor e assim agregar esse valor à nova obra, produz o efeito contrário, pois a reprodução das “conquistas” soa fatalmente como rebaixamento, percebe-se como perda de impulso, conformação ou mesmo banalização -, mas “experiência” no sentido vulgar, como quando alguém diz “minha experiência neste assunto”, ou “é um homem muito experiente”. E essa é a forma da lírica, tal como eu a valorizo e vivencio em Bandeira, em Drummond, em Gullar, e em poucos – pouquíssimos, eu diria – poetas contemporâneos.

Sobre um deles escrevi recentemente uma nota. E pretendo escrever algo mais elaborado. Trata-se de Thomaz Albornoz Neves, que publicou em edição de autor um livro estimulante (“À espera de um igual”), que recusa os esquemas usuais de interpretação, e desafia duramente o leitor acostumado a eles. Trata-se de uma reunião de livros ou conjuntos bastante diversos um do outro, mas cujo sentido é recolhido, interpretado e re-significado, pelo livro final, de 2018, intitulado “No Capuz do Olhar”. Começa este em primeira pessoa: “Deixei de ser poeta aos 33 anos, em 1996”. O poema seguinte ainda mantém o registro: “Nasci em Sant’Anna do Livramento”, mas termina com a proposição que dará a inquieta alternância de ponto de vista que virá: “Ao ler-me, ouço um estranho / que ao ser lembrado me oculta diante de quem o recorda”. O que vem a seguir é uma série de 34 poemas ou seções de um único poema (no total, são 36), em que o poeta fala de si mesmo em terceira pessoa, narra sua história, os acidentes e incidentes da vida e da obra, analisa-se, comenta-se, desdobra-se usando a primeira pessoa para falar de um ele, mas fazendo às vezes um giro rápido, projetando-se outra vez como um “eu” na matéria narrada. Como neste final do poema 19: “Amanhecendo, sai sem ser visto / Lembro também a claridade dura […]”. Temos aí um pouco de tudo: retrato do artista quando jovem, relato algo heroico algo despiciendo, flashes de vida que valem como símbolos, reflexão metapoética, autoanálise. Aqui não há cedência ao usual, glosa da preguiça, tributo aos patriarcas. É um discurso áspero, mas ao mesmo tempo próximo, como a voz de alguém que nos falasse com os dois pés fincados na terra do presente – aquela mesma que nos foge por entre as palavras e os hábitos herdados, aquela que temos tanta dificuldade de entrever, que dirá de conquistar. Aqui a pergunta de por que ele resolveu dizer isso em forma de poesia sequer se coloca. Impõe-se a voz poética como uma espécie de fatalidade.

Outro livro que muito me impressionou foi Etiópia, de Francesca Angiolillo. Por motivos diferentes. O livro de Francesca é uma espécie de prosa entrecortada. Vale-se do recurso mais comum na poesia contemporânea, que é dispor frases em linhas de corte variado: aqui se interrompe o sintagma, separando o adjetivo do substantivo, ali uma preposição do termo seguinte, deixando-a solta no ar, ali se obedece ao recorte natural da entonação. Entretanto, à medida que se vai lendo, impõe-se sobre o ritmo fragmentado do verso de recorte aparentemente aleatório o ritmo das frases, da elocução, pois são poemas que pedem a leitura em voz alta.

A vulgata do verso contemporâneo funciona aqui como empecilho e estímulo à reconstrução do ritmo da voz, e nos leva a ler vorazmente, não apenas pela narrativa implícita, mas pela busca justamente das cadências que se afirmam e negam, glosando as variações dos versos mais conhecidos. Por fim, a segunda parte se articula em diálogo, com notável combinação de versos longos na primeira voz e breves na segunda, que traz inclusive alguma espacialização significativa.

Mas durante a leitura e depois houve algo que me chamou a atenção: embora o livro me parecesse poderoso, não me lembrava de nenhuma passagem particular; quando pensei em recolher algumas partes para mostrar as qualidades que me parecem tão evidentes no conjunto, hesitei. Qualquer parte parecia incapaz de reproduzir sequer um pouco da densidade do conjunto. Um fragmento, isolado do fluxo, corria o perigo de parecer uma descrição banal; outro, com seu tom levemente bíblico, não parecia funcionar sozinho; um terceiro, de pendor autobiográfico, corria o risco de se reduzir a essa dimensão. E foi então que me dei conta da grande arte: é o sopro lírico, essa voz que imprime seu registro e seu tom logo nos primeiros poemas, que importa. Ela não é apreensível em pequenos segmentos, nem mesmo em trechos ou poema isolados. É um fluxo contínuo em que a memória e o ritmo da evocação vão fazendo fixar-se em imagens que, sem o sentido de sequência, perdem muito da força, e do brilho sem exagero, mas intenso, que caracteriza o conjunto.

Sei que escrevendo assim, levado pelas emoções da lembrança da leitura em mais uma noite insone, não construo um artigo, nem uma resenha. Mas me contento com o registro de uma experiência, desse fulgor de encontro, e com a celebração desses dois textos que me trazem de novo, na contemporaneidade, aquele susto que, para alguns temperamentos, conduz à busca de entendimento, ao gesto crítico.


Nota biobibliográfica:

Paulo Franchetti nasceu em Matão (SP) em 1954. Doutorou-se pela Universidade de São Paulo em 1992 e desde 1986 foi professor de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Campinas, onde se aposentou, em 2015, como Professor Titular. É pesquisador nível 1 do CNPq/Brasil. Publicou, no Brasil, entre outros livros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989 – 4ª Ed. 2012), Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha (2001), Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007), Crise em crise – notas sobre poesia e crítica no Brasil contemporâneo (2021) e organizou o volume Haikai – antologia e história (1990 – 4ª ed. 2012). Preparou, também no Brasil, para a Ateliê Editorial, edições precedidas de longo ensaio sobre a estrutura e características de cada obra, bem como de uma análise da tradição interpretativa, de O Primo Basílio (1998), Iracema (2007), A cidade e as serras (2007), Dom Casmurro (2008), Clepsidra (2009), O cortiço (2011) e Esaú e Jacó (2020). Em Portugal, publicou a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995) e uma edição corrente do mesmo livro (2018); a antologia As aves que aqui gorjeiam – a poesia do Romantismo ao Simbolismo (2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (2008). É também autor da novela O sangue dos dias transparentes (2003), do diário de viagem A mão do deserto, das coletâneas de haicais Oeste/Nishi (2008) e Toques (2020), do livro de sátiras Escarnho (2009) e dos livros de poemas Memória futura (2010) e Deste lugar (2012). De maio de 2002 a maio de 2013, dirigiu a Editora da Unicamp. O seu currículo completo pode ser consultado no seguinte endereço oficial: http://lattes.cnpq.br/3100951008080573 E alguns de seus textos críticos se encontram disponíveis em: http://paulofranchetti.blogspot.com.brom.br


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