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Só de pensar nela (Conto)
Por Manuela Gonzaga Publicado em Contos, Literatura, Portugal a 18 de Janeiro, 2022 652 palavras
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Só de pensar nela

— Volta-te para mim — pediu ela.

Ele girou na cama, tomando consciência do colchão duro, dos lençóis leves, do corpo pesado, o seu, subitamente desperto e consciente do outro corpo ao seu lado.

— Abraça-me — pediu ela.

Tinha uma voz rouca e falava muito baixo. Cheirava a animal marinho. Tinha uma pele suave e um corpo denso. Era grande. Era quase tão grande como ele.

— Quero a tua boca — pediu ela.

Ele respirou fundo, extasiado pela onda de um desejo avassalador, tão inesperado que teve vontade de gritar. Estavam deitados numa cama larga, num quarto escuríssimo a espaços fatiado pela claridade incerta de uma luz leitosa. De onde vinha? Aparentemente do exterior, por uma janela que não se deixava ver. O silêncio que os rodeava era quase total. Não se ouviam ruídos de tráfego, barulho de gente, zumbidos de máquinas. Nada. Só um profundo silêncio habitado pela respiração dos dois e pelo triunfante rufar de tambores do seu próprio coração. E por um cheiro amoniacal e doce onde ele encontrou a memória muito antiga de algas meio secas na preia-mar, à mistura com peixes esventrados por bicos de gaivotas famintas, e bagas de iodo a rebentar sob os seus dedos infantis. Há quanto tempo não sorvia aquele perfume?

A boca dela colou-se à sua e a sensação de felicidade tornou-se tão grande que ele sentiu medo. Medo do próprio desejo acordado? Ou da silenciosa e estranha sugestão de ameaça que pairava sobre ambos, como se perigo se ocultasse nas sombras? Respirou fundo. Perigo algum conseguiria diminuir um átimo que fosse da intensidade do desejo acordado pela presença do corpo quente, macio e duro, deliciosamente nu, colado ao seu.

— Volta-te mais para mim — ordenou ela.

E ele voltou-se a tempo de ver, nas tréguas breves da luz que cortava a mortalha da escuridão que os envolvia, os olhos cor de avelã que brilhavam como sóis no rosto que lhe parecia moreno, de uma beleza sem idade. Ela cheirava, também, a canela.

— Cobre-me — exigiu, numa urgência agónica. E ele pensou que a voz dela lhe fazia lembrar o último sopro de um animal degolado.

E foi então, ao cobri-la, que reconheceu a natureza da ameaça que se erguia contra os dois. Num desespero, ainda sentiu o calor molhado do beijo que trocaram e que o orvalhou de um prazer tão intenso que aquele sabor permaneceria nele para o resto dos seus dias. Mas mal conseguiu penetrá-la e muito menos permanecer no corpo que se lhe oferecia. Nesse exacto momento sentiu, num desgosto infinito, que a respiração da mulher, os seios duros, as pernas fortes a enrolarem-se à volta de si, a escura, a escaldante boca, a flor de carne que se abria a acolher por brevíssimos momentos a sua serpente triunfantemente intumescida, tudo se desfazia como uma miragem.

Acordou com uma vontade tremenda de chorar e de rir.

Um homem muito velho, com uma gloriosa ereção de quarenta anos, deitado junto de uma mulher idosa que ressonava baixinho. Ergueu-se em silêncio para não a acordar. Não estava a sonhar com ela. Nunca sonhava com ela. Viviam juntos, eis tudo, numa cumplicidade feita mais de silêncios do que de palavras, há tantos anos talhados em dias tão iguais, que tocar-lhe ou imaginar-se sequer a tocar-lhe por prazer e com desejo, mesmo em sonhos, lhe teria parecido obsceno.

Lentamente, dirigiu-se à janela e espreitou o dia que começava a nascer. «Obrigada», murmurou, a boca quase encostada à vidraça que de imediato ficou embaciada. Depois aclarou a garganta que doía e limpou os olhos húmidos. Quem sabe se e quando voltaria a encontrá-la?

Só de pensar nela, só de pensar nela.


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