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Quatro textos inéditos de prosa poética
Por Isabel Mendes Ferreira Publicado em Literatura, Portugal, Prosa Poética a 16 de Janeiro, 2022 705 palavras
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INSTANTES DO OLHAR

I

nunca nada na sempre ondulação do tempo esse carrasco desossado e
desassossegado que a ninguém falta nem bem nem mal. antes a diferença
entre chegadas e idas frias umas bondosas outras na moldura criteriosa da
falta de um deus eléctrico consciente e minucioso de que nunca abdico.
ressalvo a infância sem guilhotinas nem falsa mestria. _ o
que salvo é cansaço. e o que trago não ressalva a idade e não vem no livro
o rodapé da eternidade.
em nome da luz porque a cada um de nós um coração não basta. salve-se
o rosto do tempo a tempo de olhar a dignidade.
.
II
.
tudo o que tenho para dar é este fio melancólico sem apelo de pele
pastoril . recato de flauta enquanto guardo a montanha e o deslize das
águas. veloz natureza a ser canto e chão aberto. e nunca de estrelas.
tecido propício ao vento.
face a face na espessura do silêncio.___

plantar águas para colher o inverno de quem nada pretende. ir de novo
sem nada nas mãos à frente de cada dia. ser a leitura apenas do fogo
ardido e dos caminheiros que persistem em ser muro da esperança. mar
de mortos . e novembro a chegar como se a chegada fosse um punhado
de esperas. a injustiça é uma náusea cintilante de quedas .e lá fora agita-
se o inverso do visível.
.
III
.
enquanto tanto fica-se pouco.
ambições traições mentiras disfarces jogadas de carácter jogadas de vida e
morte morte à solta nos caminhos . homens e mulheres a sub.viverem no
jogo farpado de muros e murros.
estátuas de cuspo cospem tiros sobre estátuas de fome e tudo continua. o
jogo do relógio parado joga ao pastoreio dos túmulos. mas há quem
escreva cartas de amor quem as rasgue e as reescreva com sílabas
amargas de perda de ódio de mistérios e tempestades de nervos em flor.
quem se dispa das névoas e ao chão se faça com os erros em testamento.
há porém na bainha das pedras um golpe de coragem e de novo há quem
se regresse ao incompreensível destino da luz dividida.
há quem se honre em presença espinhosa e quem apenas dispa um
vestido de chumbo nas cartas enviadas à revelia do olhar. brando. assim o
tempo em cartas de amor que de cálice poderoso te ergues a cada dia de
saudar outra vez a vez última de uma carta recíproca.
há quem atinja a raridade aos pontapés e quem da terra dispa os cardos
para matar a fome de rosas em levitação. são os filhos de Rimbaud na dupla
consciência dos punhais.
.
IV
.
matar sobreviver mentir escapar iludir tudo como se esqueletos vivos ou
sonâmbulos em fogo lentíssimo na boca do tempo que mostra as garras as
cartas as bombas as cáries os cínicos os falsos tímidos os falsos generosos
os cães sem dono soltos no palco decadente onde à cena sobe um coro
amestrado de fantasmas vistosos e sempre vistos como se vivos ainda .
triste anoitecer debaixo de todas as pontes onde poucos comem e muitos
apodrecem e o cuspo da indiferença é beato e viscoso lixo e discurso
flácido enquanto uns compram livros e deles falam como se mapas de
tesouros só para inteligentes e os outros ah! os outros são espinhos e
estão nus despidos de vida e sujos brutos de sangue poluído e sem mães e
de pais abusivos e com olhos cegos de tanta miséria e traições. vamos lá
todos em fila sigam-me queridos amigos seguidores do ódio e do desprezo
vamos assim juntos e sem vergonha matar sangrar desprezar quem não
faz parte da ilustre matilha quem não é do nosso rebanho e muito menos
do nosso jardim delicadamente desenhado pelo tempo dócil e adocicado
de adornos dourados. enquanto isso vistam as saias da ironia que é tão
rasca quanto filha da prepotência. caminhemos firmes firmes e certos de
que a verdade veste lama e calça cascos de cabras selvagens. é isto. o
resto mora ao lado do esquecimento e tem um muro e um mar e um
campo sem flores e uma secura que mata.e uma memória que de pouco
serve para desenganar o engano.


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