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Viagem a Roma (Conto)
Por Paula De Sousa Lima Publicado em Portugal a 16 de Janeiro, 2022 1900 palavras
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Viagem a Roma

O Senhor é justo
em todos os seus caminhos
e bondoso em tudo o que faz.

Salmos

Tanto se desacertavam da cidade, da sua sumptuosa majestade, da sua íntegra beleza, da sua escorreita disposição. E também se desacertavam das gentes, saudáveis, felizes, endinheiradas, tal o são sempre os turistas. Estes olhavam-nos de cima para baixo, não necessariamente por sobranceria, mas porque, de facto, eles se encontravam num patamar inferior em altura.

Apareceram, quase subitamente, numa das três vias que vão dar à Fontana de Trevi, assim chamada justamente por se encontrar na confluência de três vias, e, não se percebendo como, moveram-se rapidamente, passando de uma via para outra. Onde quer que a massa de gente, ávida de fotografias da Fontana de Trevi, se encontrasse, mais para a direita ou mais para a esquerda, lá estavam eles. Um homem e uma mulher, os dois sentados sobre carrinhos baixos, carrinhos é forma de dizer, uma tábua assente em quatro rodinhas, lembraram-me os carrinhos de rolamentos da minha infância. Homem e mulher, similares, de tez escurecida, cabelos curtos, mas eriçados, tronco razoavelmente erecto, pernas tolhidas, ausente a forma de músculos, joelhos ou tornozelos, estranhamente flácidas, a extravasar da tábua, desnudadas, para que as pudessem testemunhar as gentes e condoer-se, pés nus, informes, sem vida e sem forma reconhecível, uma mão solta, para apanhar os euros, os dólares, as libras, outra, enfiada num ténis velho, improvável e estranha vestimenta de mão, a apoiar-se na via, essa mão a impelir o movimento do carrinho de rolamentos.

Parei, senti o que as pernas entrevadas, disformes e desnudas impeliam a sentir, busquei um euro ou dois, elevei uma oração laudatória:

Senhor, agradeço-Vos pela sorte que me calhou, por não ser assim defeituosa, nem eu nem nenhum dos meus.

Foi com a minha mãe que aprendi estas orações laudatórias, repito-as mais por costume herdado do que por razão de louvar efectivamente o Senhor, caí nalguma descrença, não o saiba a minha mãe, ao testemunhar os tantos infortúnios que recaem sobre a tanta gente. Diz a minha mãe que sempre devemos ser gratos ao Senhor pela Sua clemência, que sempre O devemos louvor pelas incomensuráveis graças que d’Ele recebemos, e isto o diz ou porque crê, sem quaisquer restrições, no poder das orações suplicantes, logo tudo o que implora ao Senhor Ele lho outorga, ou porque lhe tem sempre calhado sorte benfazeja, a ela e aos seus. De facto, na minha família são todos escorreitos, não há aleijões, ninguém tem defeito algum, não há bossas nas costas nem falta de membros nem estes infuncionais nem sequer dentes podres ou olhos estrábicos, não há mongoloides nem portadores de doenças raras ou desformoseantes ou incapacitantes, o que de mais anómalo se encontra é uma prima que enveredou pela transsexualidade, está em fase de mudança para homem, o que, obviamente, muito constrange a família – que coisa, tão lindinha –, mas isto sempre é, convenhamos, bastante menos agressivo do que ser ter as pernas tolhidas, informes, inúteis.

Depositei uma moeda de dois euros na mão do homem, outra igual na mão da mulher, senti-me minimamente em paz comigo e com Deus, murmurei de novo:

Senhor, agradeço-vos por ser escorreita, eu e todos os meus.

O meu marido olhou para baixo, viu as moedas tombarem nas mãos dos desventurosos, disse:

És muito tola, não sabes que isto é coisa dos romenos?

Dos romenos? – interroguei.

Sim, dos romenos, é uma máfia, os romenos angariam essa gente defeituosa, estropiada, seja lá do que for, dos pés, das mãos, da coluna, e também cegos, queimados na cara, sei lá mais o quê, olha, aleijados das pernas, como estes, e põem-nos a render na rua, olha, é uma mina. – explicou ele. – Vamos, tu, francamente.

Avançámos uns metros, por entre a espessura da multidão. Como os outros turistas, extasiámo-nos ante a Fontana de Trevi, cuja beleza tanto se opõe à fealdade de pernas tolhidas, informes, imprestáveis.

***

O Coliseu é imponente, grandioso, extraordinário – palavra esta última que a poucas coisas bem se aplica, pois quase nada é extraordinário, senão muito comum, muito semelhante a outras coisas já vistas, já banalizadas.

O céu abria-se à luz do Sol, este encandeava. Milhares de pessoas, estimei, aguardavam, entrar no Coliseu é tarefa árdua. Enquanto esperavam, as gentes passeavam cá fora, os olhos na fachada do Coliseu ou nas antigas colunas romanas; talvez, como eu, imaginassem augustos e césares, patrícios e matronas, plebe e mais plebe, túnicas e togas, conversas em Latim, pouca gente sabe a língua, mas enfim, gladiadores e feras já prestes a entrar na arena, combates até à morte, sangue. Alguns buscavam sombra, pouca a havia, o dardejamento do Sol incomodava. E apareceram eles, vá-se lá saber de onde, tão depressa havia só turistas, uns guias que falavam várias línguas em amálgama – good mornig, for ici, quieres subir arriba? oui? yes? si? follow me –, as mais das vezes bastante inoportunos, e, subitamente, surgiram eles. Eram escuros e baixos, tinham o cabelo preto e ensebado, seguravam sacos de plástico ou caixas, também de plástico, numa das mãos, com a outra estendiam garrafas de água – two euros, dos euros, deux euros, cheap, mucho calor –, que os turistas compravam, contrariados, uma garrafinha só com água, pequena, a dois euros, isto, bem, está calor. Os dois euros no lugar da garrafa de água, ok.

Comprei uma garrafa de água, dei dois euros, paciência, o calor. E elevei uma oração laudatória:

Senhor, agradeço-Vos a Vossa complacência para comigo e para com os meus, que assim não precisamos de ganhar a vida de forma tão desafortunada.

Nas suas orações laudatórias, a minha mãe nunca se esquece de agradecer ao Senhor o pão nosso de cada dia, no caso um pouco mais do que o simples pão, o Senhor tem sido generoso para com a minha mãe e para com os seus. De facto, na minha família não há pobres. Decaiu de bens o meu avô paterno, proprietário de profissão, mas nunca ninguém passou fome nem precisou de se rebaixar a trabalhos tão infaustos como o de vender garrafas de água à beira de monumentos, o que de mais triste aconteceu foi terem emigrado alguns parentes da minha mãe, trabalharam nas obras no Canadá, menos humilhante, convenhamos, do que vender garrafas de água por entre a multidão; e penso que, se a minha mãe tivesse suplicado ao Senhor mais adequados trabalhos para esses parentes, o Senhor ter-lhe-ia satisfeito o pedido, mas ela afirma que não devemos ser exigentes para com o Senhor, senão sempre gratos e submissos.

O meu marido disse:

Dois euros, esta gente!

Ripostei:

Também são romenos?

Outra máfia. – disse ele. – Isto está tudo organizado, pensas o quê? Tudo máfias, tu és muito ingénua, tudo máfias!

Entrámos no Coliseu, cuja grandeza tanto se opõe à abaixante condição de quem vende garrafas de água. Saímos do Coliseu, deslumbrados, como todos os turistas. Eles tinham desaparecido com a nuvem que escondera o Sol.

***

Ir a Roma e não ver o Papa é coisa tal que não deve acontecer, mas não o vimos. Não é sempre que o Sumo Pontífice aparece à varanda sobranceira à Praça de S. Pedro, naquele dia não estava previsto, foi pena. Os museus do Vaticano, todavia, compensaram, tanta riqueza, tanto esplendor, tanto turista atento à arte sacra, tantas interjeições de espanto e de contentamento, todas parecidas, estas interjeições são similares na maioria das línguas. Na Capela Sistina, as gentes dobravam o pescoço pela cervical, e eram uma infinidade de pescoços nesta posição bastante incómoda, tiravam fotografias com o telemóvel, conquanto não fosse permitido, quem nunca desrespeitou uma regra que se acuse, isto ir à Capela Sistina e não registar o momento em que a mão do Criador se aproxima da da sua criatura é quase pecado.

Saímos reconfortados, assim deve ser, assim a quantidade imensa de turistas. Chovia. E eles reapareceram, digo reapareceram porque eram em tudo iguais àqueles que vendiam as garrafas de água, eventualmente não eram os mesmos, talvez fossem, não tenho maneira de deslindar a questão. Numa das mãos, a outra solta para receber o dinheiro, three euros, trois euros, very cheap, os guarda-chuvas, providenciais, mais apetecíveis do que qualquer outra coisa, naquele momento de chuva.

Estendi uma nota de cinco euros, peguei num guarda-chuva, era roxo, abri-o, não esperei pelo troco, foi a minha gentileza perante o infortúnio que é ter tão mísera forma de ganhar o pão, no caso pouco mais será. Tornei a elevar a oração laudatória ao Senhor:

Agradeço-vos, Senhor, pela sorte que me calhou, a mim e aos meus.

A minha mãe diz que o Senhor jamais se esquece dos seus filhos, que a sua bondade é incomensurável e que venturosos são os que nele esperam e crêem. Diz também que dá Ele a roupa consoante o frio, apetecia-me agora ripostar, dizendo que dá Ele o guarda-chuva consoante a chuva e que grande ventura têm aqueles que compram os guarda-chuvas em Roma, à saída do Vaticano, igual ventura não têm aqueles que os vendem, a minha mãe, certamente, não acharia graça nenhuma ao trocadilho, com o nome do Senhor não se brinca, é o Senhor perfeito e n’Ele todos os dons habitam, mas sentido de humor nem por isso, concluo.

O meu marido disse:

Estás a ver? Estão por todos os lados. Uma máfia, uma máfia, deixam entrar tudo, depois queixam-se, uma máfia, essa gente.

***

Alguma turbulência sobre o Mediterrânio, as pessoas a dormitar, pois eram seis da manhã. Se não me importasse de repetir o que diz o vulgo, certamente diria que voltei mais rica da viagem. Procurando palavras menos estafadas pelo uso, restam-me poucas, nenhuma, é a verdade: beleza, imponência, magnificência, excepcionalidade, esplendor, todas estas palavras bem se adequam a Roma, a cidade eterna, dizem, pelo menos a cidade eternamente bela, de imponente esplendor, onde o passado de tão perto nos acena: augustos e césares, patrícios e matronas, plebe e mais plebe, homens e mulheres escorreitos e felizes, outros nem tanto. Gente de pernas tolhidas, lassas como se mortas; gente que vive de vender garrafas de água quando o Sol é grande e inclementemente vigoroso ou guarda-chuvas quando ao Sol se sucede a chuva, gente cuja alimentação é, decerto, escassa e imprópria, gente cujas habitações são, decerto, de desamparo e descontentamento, gente cujas vestes são andrajosas e conspurcadas de desabrigo, gente miserável– como em toda a parte.
A minha mãe diz que nunca nos desampara o Senhor.
Voltei de Roma tal como fui.


© A foto da publicação é da autoria de Francesco Ottonello


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