Paradise Lost, ou a estetização política da tradição
o acto de conservar, de domar o tempo num espaço fechado, encontra-se umbilicalmente ligado à projecção utópica, interior, de um passado no tempo presente, ao reconhecimento do tempo futuro como uma constante emanação da origem a partir da qual se apreende a natureza humana.
Paradise Lost, de John Milton, foi publicado em 1667, nos resquícios da Guerra Civil Inglesa em 1643 e da Restauração da Monarquia em 1660. Tida como uma obra épica cristã, de cariz moral, foi recebida por muitos como uma fábula acerca da natureza trágica de Satanás e, por extensão, de toda a humanidade. Se Satanás foi expulso do Paraíso por revolta contra a autoridade divina, criadora do império que relegou o reino do Caos para fora das suas muralhas, Eva e Adão transgridem a fé na palavra de Deus e desobedecem à ordem de não comer o fruto proibido, seduzidos pelo valor argumentativo do estrangeiro, simultaneamente exemplo moral do castigo e efectivador da queda.
Descrita como monarca, a figura divina é peremptoriamente unitária, exerce a sua alta supremacia por força, acaso ou destino1. É na ameaça da quebra dos laços de causalidade que Deus castiga Satanás e o remete ao Inferno, espaço soliloquista da mente. A proximidade com a queda de Adão e Eva é paradigmática: a perda da inocência, isto é, dos limites pré-estabelecidos de uma simples existência sem interrogação, dá-se a partir do momento em que a certeza é abalada, a dúvida se instala. De dentro da Árvore da Vida cresce a Árvore do Conhecimento, cujo fruto é proibido; é precisamente com a transgressão, que irá resultar na queda da primeira mulher e homem do Jardim de Éden, que recebem a consciência dos seus próprios limites, da morte, formalizada dentro da vida enquanto medo em latência. É incerto que o conhecimento humano, enraizado na dúvida, tenha nascido das propriedades sobrenaturais do fruto ou do próprio acto de transgressão.
As relações entre a unidade e o movimento, antagonizadas por Deus e Satanás, antecipam as tensões na moralidade do Homem pós-queda. É a agência repressiva do primeiro no segundo que o remete para dentro mas fora de si, privado da sua identidade, que instiga a procura de uma origem que reside no alto, fechada entre os braços de Deus. Só com a posse total desse reino pode Satanás, entre as profundezas de Deus, cumprir-se. E só fechando as portadas a quem vem além do Caos, do desconhecido, pode Deus cumprir a omnipotência da sua autoridade. A eterna guerra entre ambos é, pois, uma interna. O movimento exacerbado da individualidade na estrutura estática da repressão como necessidade reactiva de posse, na forma de domar a Natureza que o excluiu.
De igual modo, a moralidade recebe o papel divino de castigo dos dissidentes, relega o seu movimento para o subterrâneo, onde exercem a sua força negativamente. Após a queda para a incerteza fragmentária da experiência, é através da privação e da obediência ao que se encontra pré-estabelecido, ao conjunto de regras exteriorizadas como sagradas e interiorizadas em oração2, que a unidade com o amor divino é possível. Satanás, por outro lado, surge em Paradise Lost como a representação da falta de prudência face a essa ordem estabelecida, auto-justificada pela interiorização dos limites formais de uma estrutura de revelação: o acto de conservar, de domar o tempo num espaço fechado, encontra-se umbilicalmente ligado à projecção utópica, interior, de um passado no tempo presente, ao reconhecimento do tempo futuro como uma constante emanação da origem a partir da qual se apreende a natureza humana.
A origem é, neste sentido, um ponto estático alvo de contemplação. Se Deus, como Primeira Causa, omnipotente e omnisciente, sabia com antecedência da revolta de atanás e do futuro da humanidade, não é ele também a primeira causa do pecado? Porém, o ponto é precisamente este: a queda foi sempre certa, a abertura da humanidade à morte após a ingestão do fruto foi também a sua abertura ao Paraíso, à possibilidade da redempção através da obediência moral.
Milton captou esteticamente a dialéctica da autoridade, a sua necessidade de um inimigo para se suster3. Ao mesmo tempo, mantém a tensão entre as duas entidades sem tomar uma posição clara ̶ o texto dirige-se no sentido da condenação bíblica de Satanás, enquanto retrata Deus como entidade opressora e se vai aproximando de uma posição Luterana sobre a fé, até à equiparação do caminho solitário da moralidade humana pós queda ao espaço soliloquista de uma “Self-Reliance”, isto é, empenhando o termo do ensaio de Ralph Waldo Emerson, a necessidade de possuir a sombra das instituições, de modificar a natureza humana e difundi-la à sua imagem, auto-justificando a sua própria fé e concentrando em si o espaço de liberdade a partir do qual todos os homens são medida, parte orgânica4. Aproxima-se pois, curiosamente, tanto da figura de Satanás como da de Deus.
É justamente em termos linguísticos que o fim estético se cumpre, unindo e suprimindo o seu próprio tema: um corpo saudável só se efectiva, nos termos descritos por Aristóteles na Retórica, com a nomeação da doença5. Os dois elementos opostos existem em simultâneo. Do interior para o exterior, o texto assume a forma de dois argumentos que se debatem um contra o outro enquanto entidades antagonistas, ao mesmo tempo que, num movimento contrário, do exterior para o interior, os dois argumentos convivem indissociáveis enquanto acontecimento, tendo nós, leitores, provado já do fruto.
O corpo saudável de Deus só se efectiva com a revolta de Satanás por dentro de si, tal como um argumento só se efectiva do ponto de vista da paradoxalidade do texto. Trata-se de um espaço aberto de diálogo, oposto ao das escrituras da tradição, que fenomenalizam o que lhes sucede como emanação da sua posição original, e ao da continuidade subjectiva da tensão entre imitação e emulação, ou seja, da necessidade de reportar a uma referência pré-estabelecida para a devolver a si mesma com o nome da sua própria redempção. Algo semelhante se sucede num total fechamento sobre si e na medição da virtude pelo inimigo, pelo medo dele. A repressão devolve-se a si mesma enquanto sistema. A interpretação, dessacralizando a matéria que necessariamente a constitui, dá ao texto o conhecimento de que está nu. “They hand in hand with wand’ing steps and slow / Through Eden took their solitary way”6.
1 Milton, John. Paradise Lost. Ed. Jonh Leonard. Londres: Penguin Books, 2000. 9
2Idem, 57. Da distância de Deus aos Homens, também a distância entre quem estabelece os laços de causalidade e quem a eles obedece: «Some I have chosen of peculiar grace / Elect above the rest; so is my Will: / The rest shall hear me call, and oft be warned / Their sinful state, and to appease bedtimes / Th’ incensed Deity, while offered grace / Invites; for I will clear their senses dark, / What may suffice, and soften stony hearts / To pray, repent, and bring obedience due».
3 O próprio termo “Satanás”, em hebraico, designa “adversário”.
4 Emerson, Ralph Waldo. Essays. Redditch: Read Books Ltd., 2016. 74. «He cannot be happy and strong until he too lives with nature in the present, above time»; 70. «Every true man is a cause, a country, and an age».
5 Aristóteles. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, et al. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. 66. «É bom aquilo cujo contrário é mau».
6 Milton. Paradise Lost. 288.