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Notas sobre Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Szymborska (Ensaio)
Por Nuno Brito Publicado em Contos, Ensaio, Literatura a 16 de Janeiro, 2022 4565 palavras
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PERGUNTA, LENTIDÃO E DIFERENÇA:

Algumas notas sobre Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Wislawa Szymborska

Uma poética que vai tão radicalmente ao fundo como a de Carlos Drummond de Andrade, é invariavelmente uma poética do risco, na dupla aceção da palavra, que enfrenta um perigo, mas que também o é a de um traço rápido, do risco, das linhas que escrevem o mundo: esse traço-escrita é também um risco que se corre, um enfrentamento e um aprofundamento radical, que nos avisa de antemão que nada nos será dado de acabado, ou estável, que vai correndo riscos, desníveis, mergulhos no escuro; se há um risco da escrita há também um risco da leitura, da interpretação. Como nos afirma Iumna Maria Simon:
           

E ao final deste trajeto de leitura, fica a certeza do débito para com o poeta. As ‘mil  faces secretas’ de uma vasta e diferenciada experiência poética oferecem-se e recusam-se ‘à maneira dos enigmas que zombam da tentativa de interpretação’ – a outras e melhores operações de leitura[…] Se para o poeta seu verso é ‘apenas um arabesco /em torno do elemento essencial – inatingível’, o que dizer desta tentativa de desvendamento do arabesco que, todavia, permanece indecifrável na sua essência? Ao analista pretensioso e frustrado resta o consolo de poder repetir com Ossip Brik: ‘É impossível ler um arabesco (…). Então deixemos a arte traçar seus arabescos (…).’ Ou com o próprio poeta analisado: ‘não cabe explicação para um poema, além da que ele mesmo traz consigo’. […] Esse bruxo que embrulha o leitor em seus enigmas – é a ‘pedra no meio do caminho’, o ‘embrulho’, o ‘segredo’, o ‘fardo’, a ‘carga’, a ‘coisa’– e esconde a chave, dizendo também não possui-la. (SIMON, 1978, p. 203)

              Arte do risco e arte do excesso, que abre portas, mas que ao abri-las nos afirma também que que a própria chave (a decifração) é, em sim, um não-sentido. Que o sentido só existe dentro da procura (a procura da poesia), como nos recorda o poema “Lembrete”: “Se procurar bem você acaba encontrando. / Não a explicação duvidosa da vida, / mas a poesia inexplicável da vida” (ANDRADE, 2004, p. 1256). Procura que é em si um risco, absolutamente essencial, e talvez o mais necessário, inseparável do próprio ato de viver. Para Drummond qualquer explicação da vida será sempre duvidosa; qualquer afirmação será artificial e escassa. À poesia é exigido muito mais. Ela está por isso (transversalmente na sua criação), livre da pretensão de decifrar, de nos conferir um código utilitário, estéril e vazio: o caminho mais fácil é então contornado em busca de um desvio e de um aprofundamento. Inseparável do risco, a sua poesia, impõe desde o início a dúvida e a perplexidade: um caminhar mais longo.

            A um tempo de ruído e de desinformação temos forçosamente de repensar aquilo que é urgente dizer, reaprender o espanto, o silêncio, o atrito e a lentidão; colocar perguntas novas, reformular perguntas antigas, vê-las em todos os seus ângulos, retardar voluntariamente o tempo da resposta, aprender com uma fotografia, com uma pintura, da mesma forma que aprendemos com um olhar triste e cansado, com aquilo que invariavelmente está à nossa frente ou no fundo de nós. A procura e o questionamento são gestos que nos humanizam, que fundam uma comunidade partilhável: a pergunta instaura um silêncio, ela é um motor criador que nos reposiciona num centro que vibra, ela é (tal como o gesto poético), a “distância mais curta entre duas pessoas” (FERLINGHETTI, 2016, p.55). É aqui importante lembrar o que diz Jorge Luis Borges no seu ensaio “O enigma da poesia”:

“Na verdade, sempre que se me depara uma página em branco sinto que tenho de redescobrir a literatura por mim. Mas o passado não me vale de nada. Portanto, como disse, tenho apenas as minhas perplexidades para vos oferecer. Aproximo-me   dos setenta anos. Dediquei a maior parte da minha vida à literatura e só dúvidas posso oferecer-vos” (BORGES, 2017, p. 9)

            A dúvida é aqui vista como uma dádiva, como uma herança, que aprofunda um caminho e que gera uma procura. A pergunta une-nos, faz-nos mover, abre o diálogo e abre-nos ao outro: Ela é, por isso mesmo, fundamental para a criação.  Disso nos fala precisamente a poeta Wislawa Szymborska no discurso da atribuição do Prémio Nobel de 1996, “whatever inspiration is, it’s born from a continuous ‘I don’t know’, (SZYMBORSKA, 1996). Quem afirma saber tudo sobre uma coisa opta por um estado de fechamento, decide não querer ver mais, afirma que lhe é indiferente, que é incapaz de ver as diferenças. Sobre isso mesmo acrescentaria Wislawa Szymborska:

“Poets, if they are genuine, must also keep repeating ‘I don’t know.’, Each poem marks na efort to answer this statement but as soon as the final period hits the page, the poet begins to hesitate, starts to realize that this particular answer was pure makeshift, absolutely inadequate. So poets keep on trying, and sooner or later the consecutive results of their self-dissatisfaction are clipped together with a giant paperclip by literary historians and called their ‘oeuvres’” (SZYMBORSKA, 1998, p. 14-15).                                                     

            A um mundo em que aparentemente todas as respostas (factos, informação, dados), nos são oferecidos de antemão, num acesso fácil e imediato, aquilo que é fundamental é reinventar as perguntas, continuar a perguntar, dizer como Clarice Lispector: “Eu sou uma pergunta” ou então ir até ao fundo, até à raiz da existência e da linguagem, perguntar por aquilo que é urgente: “E agora José?”, a pergunta dita o caminho, inicia-o, põe as diferentes esferas da realidade em relação, cria uma ruptura no mecanismo, no já-feito, pronto a servir, mercantilizado; mais importante do que a pergunta ter uma resposta é a possibilidade de caminhos que nos abre, os começos que ela gera. Contra a esterilidade e o vazio ela impõe uma ruptura, contra o mecanismo ela impõe a vida. A um tempo de ruído e de respostas parciais e quantificadas torna-se necessário um olhar mais englobante sobre a realidade que nos forma, é preciso, como diz Plutarco habitar a pergunta: “habituar-se a fazer uma paragem, a criar um intervalo entre a pergunta e a resposta, durante o qual aquele que interroga pode ainda acrescentar os elementos que quiser e ao interrogado é concebida a oportunidade de pensar o que responderá, a fim de não se arremessar sobre a questão e eclipsá-la”(MENDONÇA, 2017, p. 16)  Habitar a pergunta, retardar a tentação de encontrar uma saída fácil, mantê-la viva, quanto mais importante for a pergunta mais tempo é preciso para a habitar. Atentemos ao poema “some people like poetry” de Wislawa Szymborska:

Some people—
that means not everyone.
Not even most of them, only a few.
Not counting school, where you have to,
and poets themselves,
you might end up with something like two per thousand.

Like—
but then, you can like chicken noodle soup,
or compliments, or the color blue,
your old scarf,
your own way,
petting the dog.

Poetry—
but what is poetry anyway?
More than one rickety answer
has tumbled since that question first was raised.
But I just keep on not knowing, and I cling to that
like a redemptive handrail.

(SZYMBORSKA, 1998, p. 227)

                Afirmar não saber o que é a poesia e agarrar-se a essa dúvida como a uma certeza é abrir-se à possibilidade de que nos fala Emily Dickinson: “I dwell in possibility / a fairer house than prose / More numerous of Windows – / Superior – for Doors – “(DICKINSON, 2014 p. 130), à pergunta como totalidade do ser, ao nascimento de um mundo novo a cada observação, à realização físico-mágica da palavra. A pergunta gera novas perguntas e um contínuo ascendente, uma nova modelação. Talvez não baste dizer uma coisa é (x), talvez a pergunta tenha que ser mais exigente, o que é que ela provoca? o que é que ela faz? em que é que ela se torna? Talvez a natureza da pergunta seja infinita, as suas variações inumeráveis, e talvez todas elas, em toda a sua constelação de possibilidades sejam ainda mais interessantes do que as suas respostas. Ou doutra forma, todas as respostas podem ser enfrentadas como perguntas disfarçadas, coloquemos a todas elas um ponto de interrogação, o olhar de uma criança. Tomemos como exemplo Manuel Bandeira, em que o poema inicia com uma pergunta:

Eu quero a estrela da manhã

Onde está a estrela da manhã?

(BANDEIRA, 1993, p.  249)

Em que ele inaugura uma procura: “meus amigos meus inimigos procurem a estrela da manhã”, em como um poema acaba também com uma pergunta:

Cabedelo

Viagem à roda do mundo

Numa casquinha de noz:

Estive em Cabedelo.

O macaco me ofereceu cocos.

Ó maninha ó maninha,

Tu não estavas comigo!…

– Estavas?…

(BANDEIRA, 1993, p. 235)

            A latência de todas as possíveis respostas constitui a essência do próprio estado de abertura do poema, a sua continuidade, o seu início a partir de um verso final. Em Carlos Drummond de Andrade a pergunta pode ser vista como a salvação, a pergunta como a sua própria solução:

Ainda que mal pergunte, 
ainda que mal respondas; 
ainda que mal te entenda, 
ainda que mal repitas; 
ainda que mal insista, 
ainda que mal desculpes; 
ainda que mal me exprima, 
ainda que mal me julgues; 
ainda que mal me mostre, 
ainda que mal me vejas; 
ainda que mal te encare, 
ainda que mal te furtes; 
ainda que mal te siga, 
ainda que mal te voltes; 
ainda que mal te ame, 
ainda que mal o saibas; 
ainda que mal te agarre, 
ainda que mal te mates; 
ainda assim te pergunto 
e me queimando em teu seio, 
me salvo e me dano: amor. 
(ANDRADE, 2004, p. 729)

            A pergunta gera uma pausa, uma desaceleração da realidade, quem pergunta exige tempo, exige atenção. O ato de perguntar exige uma nova experiência da temporalidade. Esse é o tempo em que se manifesta o poema: pegar num lápis, baixar os olhos em direção ao papel, sentir o som da mina na folha, recomeço que faz parte desse início que falava Jorge Luis Borges:

El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río, es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. (BORGES, 1952, p. 121)

            O tempo do poema é de um estremecimento, em que o movimento é fixado através de todos os ângulos, em que há uma quebra na sucessão: “Façam completo silêncio paralisem os negócios garanto que uma flor nasceu” (ANDRADE, 2004, p. 119). Instante de pausa em que algo mais urgente se anuncia, tornando-se necessário exprimir, questionar e intensificar. Algo que exige a nossa atenção absoluta, que pede uma concentração total, ainda que não tenha nome, ela é uma forma de vida, algo que, como qualquer afirmação de vida rompe com qualquer estrutura, “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (ANDRADE, 2004, p. 119).  Reparemos no poema completo “A Flor e a náusea”:

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(ANDRADE, 2004, p. 118-119)

            Diante de um sentimento disfórico pautado por um exterior adverso, o sujeito reclina-se, agacha-se, compenetra-se: o próprio gesto de se sentar gera uma desaceleração: “Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde / e lentamente passo a mão nessa forma insegura.”; o advérbio de modo “lentamente” sugere a continuidade desse movimento; estamos imersos nestas forças que repensam a vida e o mundo, que o revitalizam com um novo olhar, contemplativo, direto, propulsor de um estranhamento. Há neste gesto um mergulhar no mundo que é também o mergulho numa condição de interioridade, num centro (a flor e o poeta estão no centro do mundo), rodeados pela velocidade frenética da cidade, pelos “rios de aço do tráfego”. A lentidão é agora uma força imposta por um olhar poético, por uma condição de interioridade, por um gesto de cristalização, de fixação do tempo, outra vez Borges. “No man in a hurry is quite civilized” (BERTMAN, 1998, p. 17). A criação exige tempo, silêncio, atrito e lentidão: a concentração e a perceção intensificada que Clarice Lispector expressava em A cidade sitiada: “Como era lenta, as coisas à força de serem fixadas ganhavam a própria forma com nitidez – era o que ás vezes conseguia: atingir o próprio objeto e fascinar-se: porque eis a mesa no escuro. Elevada acima de si mesma” (LISPECTOR, 1975, p. 67). Doutra forma nos diz Milan Kundera: “o grau da lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.». (KUNDERA, 1996, p. 39). Se a velocidade se alia a uma experiência de superficialidade, a um viver sem tocar, a lentidão estabelece conexões profundas, agarra verdadeiramente: permite ouvir o silêncio do outro, a história do outro, sentir uma repercussão, estabelecer um diálogo: “conversation is not a pastime; on the contrary, conversation is what organizes time, governs its and imposes it own laws, which must be respected” (KUNDERA 1996, p. 32). É aqui importante lembrar um pequeno texto de Walter Benjamin, “porcelanas da China” de Rua de mão única, em que este nos fala da arte chinesa de copiar (transcrever) livros, considerando-a como uma incomparável garantia de cultura literária. Neste texto Benjamin contrasta dois tempos, duas velocidades, a da leitura e a da transcrição através da seguinte metáfora:

A força da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve. Quem voa vê apenas como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio e de como, daquela mesma região que, para o que voa, é apenas a planície desenrolada, ela faz sair, a seu comando, a cada uma das suas voltas, distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz sair soldados de uma fila”  (BENJAMIN, 1987, p. 16)

            A força do texto depende da intensidade com que é percorrido, nisto ele é como uma paisagem, um caminho, e nisto cada leitor é alguém que se desloca no espaço, a sua vivência da paisagem ou do texto será diferente de pessoa para pessoa, ou em contacto com um poema de Luis Miguel Nava: “São outras as paisagens quando alguém / as vê pelas janelas do seu próprio coração” (NAVA, 2002, P. 127), ou de Fernando Pessoa, “É dentro de nós que a paisagem é paisagem” (PESSOA, 1982, P. 124), a força será outra também de acordo com o tempo que a levamos a percorrer, e nisso há um tempo individual, inerente a cada um de nós, mas também um tempo que percorre velozmente, que vê de cima, que não toca, (o do aeroplano) e dos que experimentam o seu domínio, os que caminham sobre ela; as perspetivas são radicalmente diferentes, caminhar sobre a terra exige lentidão, contacto com ela, visão do solo, dos caminhos, de uma paisagem com a qual o caminhante se nivela, se confunde; a velocidade de uma aeroplano nunca poderá captar as nuances do caminho, as clareiras, os carreiros, os contornos, as elevações, os pormenores. O tempo de voo é descrito assim como o tempo de uma leitura rápida que não aprofunda, enquanto que o tempo da terra se aproxima da do caminhante que a pisa, que com ela cria uma relação, um percurso, uma leitura. A procura faz então todo o sentido, ela gera-se no interior da própria linguagem. A experiência de desaceleração permite vivenciar a língua em toda a sua possibilidade: expressiva, sugestiva, em toda a sua fluidez e plasticidade. A lentidão questiona a homogeneização, a normalidade, ela permite vislumbrar a diferença, a singularidade, a vivência do único. Reparemos no que nos diz o filósofo norueguês Guttorm Floistad:

The only thing for certain is that everything changes. The rate of change increases. If you want to hang on, you better speed up. That is the message of today. It could however be useful to remind everyone that our basic needs never change. The need to be seen and appreciated! It is the need to belong. The need for nearness and care, and for a little love! This is given only through slowness in human relations. In order to master changes, we have to recover slowness, reflection and togetherness. There we will find real renewal. (FLOISTAD, 2018)                                                                        

            A mensagem de hoje, de que nos fala Guttorm Floistad, é a de que é urgente acelerar para não ficar para trás, não se atrasar, não perder tempo em relação a um mundo que se renova continuamente; essa sensação de urgência está impregnada daquilo que Stephen Bertman chama em Hyperculture: the human cost of speed (1998) de “o poder do agora”: o senso de urgência, de imediatez, que paradoxalmente nos afasta de uma vivência plena do presente. Sobre esta sensação que invade o nosso tempo e as diferentes esferas quotidianas, do público ao privado, Zygmunt Bauman usa a seguinte imagem: “Quando se patina sobre gelo fino, a velocidade é a única salvação” (BAUMAN, 2006, p. 43), é essa figura que precisamente Guttorm Floistad repensa, para ele, a adaptação à mudança só pode ser feita a partir desse gesto de desaceleração e reflexão, nele consiste a vivência de uma verdadeira renovação. É a desaceleração que o poema imprime que permite recuperar esse ritmo, que dita o seu sentido, outra vez nos diria Milan Kundera, a velocidade afasta-nos de nós, de sentir a própria pulsação da vida, individual e universal, particular e coletiva: ritmo indissociável do sentido – ritmo-sentido – pulsante na força físico mágica da linguagem, renascido a cada nomeação: “Quanto mais poético mais verdadeiro” (NOVALIS, 1988, p. 43) diria Novalis. Podíamos acrescentar, quanto mais musical, mais próximo da verdade, de um ritmo universal, impessoal e coletivo. Como lembra Octavio Paz: “El ritmo no es medida, sino tiempo original” (PAZ, 2003, p.  57).

            O poema nasce de um olhar para o outro, ele aproxima-se sempre do ato (extremamente humano) de perguntar, de um gesto de desaceleração, de um ato rítmico, ele necessita invariavelmente um olhar que retenha uma unidade, ainda que na fragmentação, ele é um gesto de recolha, nasce de uma cosmovisão, de um perguntar que inaugura um conjunto de relações, que cria um espaço intensificado.

            Em Drummond a pergunta gera ressonâncias profundas, uma vibração e modelação musical que a resposta (pela sua densidade) não possui. A solução está no continuar a perguntar, incessantemente; no abrandamento, num caminho que se percorre traçando um risco, correndo um risco, mudando de direções, absorvendo e aprofundando as aporias do mundo. Atentemos com mais detalhe no poema “José”:


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

(ANDRADE, 2004, p. 106-107)

            A pergunta reiterada adquire um peso e um adensamento profundo. A voz que a gera não pede resposta: ela dita, em si, um sentido: o início de uma marcha. Mais importante de saber a direção desse sentido é continuar a perguntar, manter o questionamento vivo, romper com um estado de automatismo, de obviedade. Nenhuma resposta é pedida, apenas uma abertura, a possibilidade da própria incerteza, a fuga ao previsível e linear. A pergunta imprime em Drummond um rompimento que instaura uma tensão reflexiva profunda. Mas é de notar que essa densidade rítmica que a repetição instaura é balanceada com uma sensação de leveza que provém desse mesmo despojamento da certeza e do saber. A pergunta é neste ponto uma afirmação de vida que intensifica a relação com a realidade, que expande um estado de consciência e de abertura, que cria uma assonância entre o eu e o mundo; A sensação que prevalece ao final é por isso a do despojamento, da transparência e da leveza. A voz deste sujeito poético fala ao interior de cada um dos seres, dizendo-nos não o absurdo da vida (de José, de todos nós), mas o absurdo de não questionar, de se entregar, de desistir, de aceitar qualquer conhecimento ou estrutura como definidos e acabados. A pergunta só pode nascer, por isso, do contacto profundo com o interior. Para que a marcha prossiga e a busca do sentido se afirme, a questão precisa ser habitada, mantida viva, reinventada e nenhuma resposta – por mais englobante que possa parecer – a pode suprimir.

            José é o homem que caminha à nossa frente, nós próprios, quem fomos e quem seremos, concretizando numa só pessoa a possibilidade da diferença. O poema mostra-nos não só a humildade de perguntar, mas também a dignidade e a querência, mostrando-nos verticalmente um fundo (humano) que nenhuma resposta ou afirmação pode conter ou resumir. Diante da tendência anti-expressiva da resposta rápida, Drummond propõe um caminho plural, que nos diz como Terêncio: “eu sou um homem e nada do que é humano me é desconhecido”, mas que não para nunca de afirmar que essa humanidade e esse saber só podem ser tecidos a partir do questionamento e da desconstrução, do aprofundamento e do desvio, traçando um risco – correndo, definitivamente, um risco – inevitável, digno, humano: um mergulho no escuro.


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