ANJO
Vinha para me buscar
mas ainda cá ando: tive nojo ao anjo
Chegou-me acenando com as asas encardidas
as penas sebosas com sabugo
no cálamo
Nem se assemelhava sequer ao verdadeiro anjo negro da miserável história desta vida: só genuíno desleixo a sujidade sob a auréola fosca : cotão e pó em suma nenhum asseio ao arrotar gorgulhos
pelas asas murchas sobre as costas
Estive tentada a acompanhá-lo,
dar-lhe ao menos um banho argênteo em prata de lei qualquer coisa que na morte me concedesse
algum do brilho desvalido que não houvera em vida
Mas dá tanto trabalho arear um anjo pena a pena
Chegou-me acenando com as duas asas –mais mocho até que anjo não o segui lá aonde tombara imundo: ainda cá ando
faço horas ao dia
neste inferno sólido padecido
limpo, arejo: desinfecto-o
***
VOOS (a pedra e o pássaro)
Nunca caí em pleno voo
talvez porque nunca tenha conseguido voar
Mas conheci pedras que afeiçoadas à mão
e com o impulso certo
subiam mais alto (mais rápidas até) do que muitos pássaros Talvez se cansassem mais depressa: não tem jeito nenhum para uma pedra ficar tanto tempo
afastada do chão: uma pedra é uma pedra:
comporta-se sempre como uma pedra –não é bicho para se aninhar nos ramos da amoreira a parir um ninho
Tirando isso
sempre preferi pedras a pássaros
além do mais se um dia atirarmos um pássaro a uma pedra ela não nos vem cair aos pés feita um frangalho de bico e penas
a sangrar de um minúsculo coração