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Vale das Corujas (Conto)
Por Eltânia André Publicado em Brasil, Contos, Literatura a 19 de Setembro, 2021 2099 palavras
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Não importa se Deus existe ou não, mas como ele goza.

Jacques Lacan                          

                                                                     

 

A manhã de primavera inundada de sol era um convite à quietude. Adônis faz questão da boa convivência, acena para um e outro com o melhor semblante. Embora tenha uma certeza: se uma casa é considerada mal-assombrada, os moradores se transformam em fantasmas aos olhos de quem a olha. Não, nunca quis assombrar ou ser assombrado. Bastava ter que suportar as corujas-mecânicas de dentes afiados e ameaçadores que vagam pelos telhados. Malabaristas da casa ancestral. Vigias impiedosas e rotineiras. 

Da varanda do quarto andar, Adônis observa as crianças brincando ao redor da piscina, na área de recreação do prédio, enquanto se serve de uma xícara de chá. Vê quando o filho do vizinho chuta a bola em direção ao telhado da garagem, vê quando Beatriz, sua irmãzinha, escala com agilidade o muro sem se importar em exibir a calcinha do biquini enfiada no bumbum. Ele sente uma espécie de corrente energética relampejar a partir do abdômen. Tenta se recompor, tenta pensar em outra coisa, mira os barquinhos brancos no tecido felpudo do roupão. Precisa de uma imagem banal para voltar a acomodar o mal-estar. Teme, entretanto, não ser possível recuar tantas vezes. Nunca quis ter filhos, sempre se sentiu inabilitado para a tarefa de pai. A algazarra das crianças ecoou em seu espírito como a sirene de uma ambulância. A pequena Beatriz o ameaça sem intenção. 

Entre um gole e outro do chá, repete o lamento antiguíssimo: antes eu não tivesse nascido.

Compelido, regressa ao passado: quando pequenino foi escalado como gandula na partida das equipes júnior, o que não durou muito, pois distraía-se e era lento para recolher a bola. Naquele lugar aconteceu o seu primeiro beijo. Ana era dois anos mais nova do que ele, mas soube invocar o deleite enfiando a língua dentro boca de Adônis. Ela queria a caixinha de cigarrinho de chocolate Pan que ele trazia nas mãos. Um beijo por um chocolate. 

Uma camiseta por uma chupadinha. Igor, colega da escolinha, queria muito ter uma camisa oficial do time pelo qual torcia, igual àquela que Adônis ganhou num Natal. Adônis perguntou-lhe: você faria qualquer coisa para ir ao próximo campeonato com esta camisa? Eu mataria um búfalo por ela, respondeu-lhe de sopro com os olhos reluzentes. A negociação foi legitimada. Horas mais tarde, Igor vomitava e Adônis fechava a braguilha da bermuda, depois de tirar camisa e jogá-la no chão. Adônis foi para casa como se carregasse nas costas os pecados do mundo e no peito uma legião de fantasmas. Sua mãe, ocupada com a nova gravidez, não compreendeu como a peça de roupa preferida do filho sumiu e não percebeu a sua aflição quando ela lhe questionava quando foi a última vez em que usou a camisa. Compreendeu que a angústia exigia dele silêncio e sigilo.

Noutro tempo, tentou usar a estratégia de troca aprendida e ouviu um não rotundo na voz débil da irmãzinha, seguido da ameaça de dedurá-lo para o pai. Ela queria o pote de biscoito que a mãe havia escondido na última prateleira do armário, ele queria explorar a xoxotinha da pequena. O perigo do aniquilamento aliado ao conceito de pecado aprendido nas aulas catecismo e nos conselhos da madrinha que pertencia a Congregação das Carmelitas, frearam as ações voluptuosas do garoto, mas não definitivamente. Nada pode se calar para sempre. Aprendeu a temer a violência punitiva de Deus, embora se amedrontasse ainda mais com o código penal e moral dos homens. Havia proibições tuteladas pelos deuses da antiguidade, por isso não teve coragem de levar ao confessionário seus pecados e encheu os ouvidos do Padre de historiazinhas previamente arquitetadas e de poucos Pai-nosso. 

O sentimento inominável amalgamou-se à obediência ao pai, que o levou à casa de prostituição. Inconformado com a virgindade do garoto aos 16 anos, apressara o tempo. A mulher que escolhera para o filho tinha pelo menos o dobro de sua idade, o que tornou a experiência ainda mais árdua. Com o cerebelo encharcado da dose de cachaça com guaraná, o garoto cedeu à expectativa de todos. Na saída, quando o pai lhe abarcava a testa para que o jorro de sua garganta não sujasse a roupa, ele se lembrou do Igor – que já treinava num time profissional no Rio de Janeiro. Conservou da experiência o gosto do vômito e o júbilo, indissociáveis uniram-se à culpa (velha amiga), formando a indigesta trindade. Ana, Igor e seus mortos jamais envelheceram. Via as suas faces nas faces de outras crianças. Era impossível frear a esfera do desejo, embora nunca mais tenha tido experiências proibidas. Pensou ter as rédeas do afeto maldito que incorporara desde tempos primitivos. Semelhante ao rei abatido, sentia-se condenado na flor de seus pecados. 

Ele seguiu a carreira de cirurgião plástico, e quando incidiu pela primeira vez na carne viva a lâmina do bisturi, a cor vermelha lhe deu ainda mais certeza de que há coisas que devem corre sub-repticiamente, como o sangue quente que navega nas artérias e veias. Passou a vida adestrando corpos. Distraía-se medindo a largura das sobrancelhas e o eixo dos olhos, redirecionando a espacialidade de um nariz, apagando os mapas dos rostos, empinando seios, reconstituindo órgãos, preenchendo bocas. Seu trabalho era uma fonte de distração, e até de salvação, pois o despertar absoluto seria a sua sentença de morte. A ex-esposa queria ser oncopediatra, mas Adônis não toleraria acompanhar, sequer pelo discurso de terceiros, o sofrimento de crianças vitimadas pelo câncer. Tinha por elas um carinho paradoxal. Tentou com sucesso dissuadi-la da decisão. Ela trabalha no Hospital Central como anestesista na mesma equipe que ele. São bons colegas de trabalho, do que viveram não restou nenhuma faísca acesa. 

Adônis não andava bem, qualquer um poderia notar as olheiras fundas, os olhos assustados, o corpo prestes ao assalto. Há tempos a insônia intermitente desarrimava-lhe a rotina. Uma empreitada absurda o desassossegava, intencionava dominar a si mesmo com o cabresto curto em suas mãos. Entretanto o dique transbordou ao ver Ana e Beatriz num mesmo instante. 

Um corpo para esculpir, de menina, de menino, tanto faz, qualquer intenção serve à argila, moldar cada milímetros de pele, o torso, a cabeça, as pernas, os bracinhos, a gengiva expulsando os dentes de leite. Alojar o segredo dentro do umbigo para navegar sanguíneo pelo tubo de oxigênio. Servir-se da frescura da imagem e entregar-se ao gozo. A sensação primordial e obscura ganhava força e frenesi. Um balão vermelho para pintar e sobrevoar a cabeleira infante, o resto de cor a tingir os corações de cartolina. Qualquer analogia inflamaria à revelia o membro vivo e soberano. O pênis calcificado, virando um grande osso, quase pronto a se calar seria a remissão, a comunhão dos santos. 

Mesmo que Adônis nunca tenha tocado a pele tenra e macia de uma gruta ou tenha aliciado seres minúsculos com doces e histórias da carochinha, ele não venceu o páreo: os olhos esfaimados o tiraram da órbita quando viu a calcinha lilás mal cobrindo a pele aveludada da pequena Beatriz. Um banquete, um leitão assado depois de um longo jejum, a maçã na boca, o encantamento selvagem atiçando o peito em brasa, pondo a enguia a se mover com autonomia. Ele perdeu o domínio e um turbilhão de sensações cobria de rubor e de esgares o rosto de Adônis que se pôs num combate vão. De nada adiantou o ter pênis calcificado para servir de alimento aos cães, as chicotadas no lombo, os joelhos feridos de tantas promessas e orações, ele cobiçava apesar da proibição das leis. O paraíso nunca se insinuou para ele, eis a verdade. Perdeu-se no vale das corujas, ora vítima na boca da fera, ora a ver a fera comer os ovos do ninho. Feras-mecânicas a abocanhar homens lascivos, sujos e imorais; a trancá-los em porões insalubres; a mutilar seus corpos – máquinas desejantes.  

O que poderia ser uma mera fantasia, um faz-de-conta, mimetiza o horror. Adônis sempre a queixar-se: antes não tivesse nascido. Mas você nasceu, respondia a si mesmo. A quem interessa o que lhe passa pela cabeça? A quem interessa a sua luta diária, os murros em ponta de faca? Bastou ver a dobrinha da coxa da garotinha para derrubar todos os alicerces que aprendeu desde o beabá até o último culto. 

Arrancar os olhos sem qualquer metáfora, de nada lhe adiantaria. Não precisa da visão, do tato ou mesmo do olfato, o desejo é arte rupestre grafada em cada milímetro do seu organismo, nas cavernas, abrigos rochosos, no não-dito, no sim e no não. A prática clínica não lhe acudiu como esperançava nem as noites de amor com as mulheres nem sua biografia sem nódoas nem a ausência do ato, sempre abortado, natimorto. Há regras fundamentais que ele anotou na cartilha: não deseje isso-aquilo, meu caro. Olha a carteira de identidade, a data de nascimento. Adônis, não cumpra a profecia! Seja homem, não seja bestial!  Porém, a língua indelével de Ana ainda a cobrir o céu de sua boca, a roçar nos dentes, a ensinar-lhe navegar na saliva, a reativar o que deveria permanecer adormecido. Dome-se, meu caro – o coral de outras eras, ordenava.

A xícara de chá tremulou em suas mãos, ato contínuo; ele a jogou contra a parede. 

Os olhos oceânicos de Igor a repetir-se antes e depois do asco, as pupilas no espelho como duas meninas a chamá-lo para a ciranda de roda. És um homem, então? – foi o que o pai lhe disse quando deixou a mulher se limpando no quarto do bordel. O velho pai com o orgulho em pauta, abriu mais uma garrafa de cerveja para comemorar o futuro, a primeira de muitas! Nunca mais o garoto quis visitar a madrinha, cismava que a tia desnudava a sua alma, por ser pura, por ter feito os votos de castidade.

Adônis fechou todas as cortinas, algo havia cindido e se misturado aos cacos da porcelana. As corujas acrobáticas já habitavam o teto da casa. De um cômodo ao outro, Adônis via suas bocas arreganhadas com dentes afiadas em risos sardônicos. Tirou o robe, fez-se nu. Cederia à fome das feras? Antes não tivesse nascido, seu pulha, Adônis vociferava. As imagens da libido vindo à tona: o recreio do jardim da infância, a brincadeira de cabra-cega, o campo de futebol… a garotinha não saia de sua cabeça, Beatriz ocupou todos os seus poros. 

Enfrentando o vale obscuro, ousou pisar no inferno, pôs-se diante do grande espelho. Com o membro em plenitude, viu-o todo calcificado, era preciso extrair o tumor, cortar o mal pela raiz. A princípio, tentou inutilmente desenroscá-lo. Parafusar e desparafusar como uma prótese móvel seria a salvação. Sem outra alternativa, recorreu ao bisturi feito com a obsidiana, rocha negra que trouxe na mala quando retornou de uma viagem ao deserto do Atacama, fez o corte como havia aprendido na universidade. As corujas-abutres avançaram com voracidade sobre a carne morta que caía no chão frio, enquanto a pergunta do pai retumbava nos ouvidos de Adônis: És um homem, enfim?

 


 

Eltânia André nasceu em Cataguases (Minas Gerais/Brasil), atualmente mora em Portugal. Formada em Administração de empresas e Psicologia, com especialização em Psicopatologia e Saúde Pública. Autora de Meu nome agora é Jaque (contos, Rona Editora, BH, 2007),  Manhãs adiadas (contos, Dobra Editorial, SP, 2012),  Para fugir dos vivos (romance, Editora Patuá, SP, 2015), Diolindas (romance, Editora Penalux, SP, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano), Duelos (contos, Editora Patuá, SP, 2018) e Terra Dividida (romance, Editora Laranja original, SP, 2020).


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