A escassa argúcia dos antepassados não se revelava nas atitudes, pensamentos e vontades de Domitila. Por oposição ao pai, ateu sem qualquer temor a Deus, Domitila desde pequena encontrara na religião o melhor formato onde deter medos e inseguranças surgidas na escuridão da infância. Estabelecera entre a alma e o Céu um caminho eterno a ser percorrido com orações e horas ajoelhadas perante a imagem de Cristo Crucificado. Quando rezava, sentia pairar sobre a cabeça uma luz capaz de lhe sossegar a alma martirizada pela perda da mãe. Tudo o que era mortal atormentava-lhe o futuro. Sem conseguir constatar a dádiva da riqueza do passado, Domitila antevia doença e morte em quem com ela se cruzava. Crianças, jovens, adultos e velhos eram sempre imaginados deitados de costas em caixas de madeira, cobertos com lençóis brancos e adornados de flores ainda por despontar. Só em demoradas novenas na igreja, ou no recitar de rosários, em sua casa, frente ao oratório aberto, conseguia encontrar-se com a vida revelada nas árvores, nos rios a correr velozes, nas aves a traçar diversos cânticos no ar, nas ovelhas avistadas no caminho para o Lyceu, nas crianças sujas e rotas a brincar junto às valas de esgoto que serpenteavam a cidade. Para além dos diálogos com o seu confessor, escutava mais do que falava. Era a única mulher entre os rapazes da sua turma. Nas aulas, sentava-se de costas voltada para o quadro, numa mesa encostada à parede num canto da sala. Ouvia as lições, mas estava-lhe vedado fixar a figura do professor. Nos intervalos das matérias, enquanto toda a rapaziada saía para o pátio em alegre algazarra, Domitila aguardava a chegada de um novo professor sentada, olhando a parede branca a esfarelar humidades. Os mestres ignoravam-na. Nunca a questionavam ou pediam para fazer exercícios na ardósia pendurada na parede, por baixo de um crucifixo de madeira e bronze. Uma mulher num Lyceu é uma afronta à sabedoria e um despautério a levar má fama a esta instituição pública – revelara o professor de Álgebra num aceso acesso de indignação. O pai de Domitila também se opusera que a filha aprendesse para além dos rudimentos da leitura e da escrita. Fora o padre Jeremias quem, junto do reitor, usara de todos os argumentos possíveis para o convencer a admitir, sob certas condições, a presença de uma mulher na turma dos alunos mais aplicados. Domitila estava obrigada a entrar na sala de aula e ocupar o seu lugar, meia hora antes do inicio das aulas. Só regressava a casa quando todos os estudantes haviam abandonado o Lyceu. Os rapazes não reparavam na beleza daquela sombra vestida com um casaco preto sempre abotoado, a tocar os tornozelos. Os cabelos, ocultos por um chapéu, prendiam-se num carrapito, emprestando um aspeto ridículo, quase sinistro, ao tamanho desmesurado da cabeça. Os olhos amendoados cor de âmbar escondiam-se por trás de uma fina rede preta presa no chapéu por um alfinete de ónix. A aluna só tinha permissão de descalçar as luvas para fazer exercícios no caderno, ou tirar apontamentos das lições dos professores. Nas aulas de álgebra e geometria, era-lhe concedido olhar o quadro. Nas restantes disciplinas, escutava e tirava notas do que ouvia. Estava interdita de ler em voz alta, ou responder a questões para as quais os colegas não conheciam refutações. Apontava a lápis na margem dos livros as respostas que os docentes consideravam acertadas. Aquela solidão aguçara-lhe o interesse pela Filosofia e dava-lhe tempo para matutar na resolução de equações, operações mathematicas, polinómios e estruturas algébricas. A certeza de querer cursar Medicina emergira durante as aulas de Ciências Naturais e Chymica Geral ministradas pelo médico Abel Botelho. Domitila fora confrontada com a importância destas disciplinas, muito antes de lhe ser permitido frequentar o Lyceu. Escondida por trás das cortinas, amparada pelo parapeito espreitava a rua, numa manhã de domingo, quando a criada lhe pediu licença para ir visitar um sobrinho internado no hospital, sofrendo de febres, convulsões e espasmos incontroláveis. Vamos as duas. Acompanho-te! – propôs. Está na hora da missa – lembrou Salvéria. Para surpresa da rapariga, Domitila retorquiu. Cristo descobre-se onde está o sofrimento, a dor, a desolação, o abandono. A tarde passada na enfermaria onde dezenas de crianças padeciam de várias enfermidades permaneceu laboriosa na mente de Domitila, construindo pensamentos tendo em vista a transformação da sociedade, da assistência aos pobres, aos doentes e à infância desvalida pelas leis do reino.
No final do curso liceal, Abel Botelho escolheu três alunos para sob seu patrono cursarem Medicina na Universidade de Coimbra. Assim, iniciou Domitila mais um combate. O Magnífico Reitor não permitia a presença de mulheres na Universidade. Depois de muitos rogos de Abel Botelho, enfatizando as capacidades intelectuais de Domitila, o Magnífico Reitor não se querendo opor ao pedido de um dos seus mais conceituados mestres, autorizou, abrindo uma honrosa excepção, que uma mulher frequentasse o Curso de Filosofia, desde que não se evidenciasse dos rapazes de capa e batina. Durante três silenciosos anos, Domitila não trocou sebentas com os companheiros, não discutiu a opinião de filósofos nas salas de aula. Estava-lhe vedado conversar com os colegas. Passava a maior parte dos dias na biblioteca da Universidade. Demonstrou aptidão para a investigação refletida, que as recensões críticas por ela assinadas obtinham sempre as melhores classificações.
Finalmente, aceitaram a minha matrícula no Curso de Medicina. Na primeira aula de Anatomia Descritiva, os colegas, mal o professor se afastou, apontaram para os genitais masculinos do corpo dissecado e gracejaram. – Vamos ensinar à senhora doutora como funciona o aparelho reprodutor. Certo dia, ao chegar a casa, encontrei um pénis humano no bolso da bata. Escrevera Domitila no seu Diário.
Em 1893, a rainha Dona Amélia convidou Domitila para dirigir o Dispensário Popular de Alcântara. A primeira mulher portuguesa licenciada em Medicina entregou-se a devolver saúde a pobres e desvalidos. As jovens mães eram quem lhe exigia mais cuidados e preocupações. Para além de tentar mitigar a tuberculose a devorar os pulmões das mulheres. A médica dava-lhes lições de puericultura e higiene alimentar. Com o consentimento da rainha, contratou professoras e dedicou-se, também, à instrução das enfermas internadas no Dispensário. Entre Domitila e Dona Amélia emergiu uma amizade baseada na admiração recíproca e mantida até à morte da rainha em França, onde se exilara após a implantação da República. Numa carta enviada a Domitila, a soberana afirmava – Da mesma forma que as pessoas, que lêem um bom poema, não são as mesmas de antes de o ter lido, também eu não mais poderei ser a mesma, depois de a ter conhecido. Apesar de ouvir, repetidamente, no Paço, que os monarcas não têm amigos, mas súbditos. Nutro por si, por diferentes razões, uma afeição fraternal e a mesma admiração que tenho por bons poetas. A senhora é o meu anjo bom. A sua generosidade e talento são adoráveis. Para si se inclina a solene admiração de uma mulher, não de uma rainha. Trouxe-a para o centro da minha vida. Envolvo a minha existência na sua dedicação ao povo, essa chama pura e poderosa ávida de progresso e de um Governo justo!
Fiel à monarquia deposta pela revolução republicana, Domitila foi exonerada da direcção dos Dispensários de Lisboa e colocada como professora no único Lyceu feminino da capital. Pouco tempo depois chegou a Reitora. Aproveitando o desassossego das adolescentes burguesas, a professora indicou leituras a iluminar sombras que o advento da República não apagara da vida feminina. Contestou a Guerra – Esse disparo monstruoso que ceifa a vida a milhares de portugueses e deixa famílias devastadas e campos por lavrar – Após a implantação da República, não se entregou ao silêncio da penumbra arrastada pelos sucessivos governos. Não tomou partido nas escaramuças que por pouco não envolveram Portugal numa guerra civil. Mas, quando ao querer estabelecer a ordem, se instalou a Ditadura, Domitila apoiou Salazar. Depositou no Estado Novo a esperança de Portugal se apaziguar, podendo reconstruir-se como um país rural, valorizando a instituição familiar, Deus e a Pátria. Domitila foi a primeira mulher a sentar-se na Assembleia Nacional. Fora eleita pelo único partido que o regime apresentara a fictícias eleições. Homologou a Constituição de 1933, onde, por sua sugestão, o artigo 5.º começava por afirmar – Os cidadãos são iguais perante a lei, recusando qualquer tipo de privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social. Mas logo, o poder patriarcal, fortemente representado na sociedade e no Parlamento, declarava a exceção que os tempos impunham – «salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família. Esta suposta natureza especial, ideia inspirada pela doutrina do catolicismo social, expressa em diversas encíclicas da Igreja e que concebia as mulheres como seres vocacionados quase em exclusivo à grande missão da maternidade, constituiu o pretexto para remeter as mulheres, quase em exclusivo, ao recato do lar, dedicando-se às tarefas domésticas, à educação dos filhos, e ao zelo pelo bem-estar geral destes e do marido, que para lá de ter a seu cargo a autoridade e a proteção da família, devia ser, de igual modo, o responsável pela sua subsistência e o seu provedor. Assim, a possibilidade das mulheres trabalharem fora de casa estava muito limitada e, quando acontecia, a desigualdade salarial em relação aos homens era considerável. Toda esta construção assentava numa ideia de família como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social a qual, por isso mesmo, era necessário proteger e manter unida a todo o custo, pois daí dependia a sustentabilidade da própria Nação.»
Em silêncio, Domitila opôs-se ao ideário corporativo e à estrutura económico-social do autoritarismo português que desprezava as mulheres. Em vão, tentou fazer constar na Constituição artigos que julgava necessários à proteção dos direitos femininos. Sustentou a sua oposição ao divórcio, com crónicas em jornais, defendendo que o divórcio atiraria para a rua muitas mulheres impedidas de trabalhar, incapazes de se sustentar sem a dependência económica dos maridos. Para além disso, o divórcio seria a machadada final na instituição familiar que urgia defender.
Salazar nomeou Domitila mediadora entre o Estado, dito republicano, e a rainha Dona Amélia a viver em Versalhes. Durante a Segunda Guerra Mundial, o ditador propôs asilo à rainha exilada. A monarca declinou o convite, afirmando – Na minha desgraça, a França acolheu-me, não a abandonarei na desgraça dela.
Era esta a grandeza que aproximava Domitila da sua soberana.