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Contundentes epifanias de "Todo poema é de amor", de Cristiane Rodrigues de Souza (Recensão)
Por Alexandre Bonafim Publicado em Brasil, Literatura, Recensões a 19 de Setembro, 2021 1143 palavras
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A mais recente coletânea de poemas de Cristiane Rodrigues de Souza, intitulada Todo poema é de amor, pela editora Laranja Original, desvela-nos uma poeta já senhora de seus dons, escritora madura capaz de equilibrar os recursos linguísticos e os temas explorados em perfeita harmonia entre a expressão e o conteúdo. Escritura incisiva, com corte de estilete, em que a palavra reluz no branco da página com todo o seu ímpeto carnal, pletora de cores, luzes e formas extasiadas.

Já na abertura do livro chama-nos a atenção o diálogo que a autora empreende com uma poeta fundamental em nossa mais recente tradição poética: Hilda Hilst. Ao evocar os famosos poemas a Dioniso, do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, todo o êxtase do deus aflora à página, pela delicadeza de um olhar amoroso, tão fundamental para a escritura de Cristiane:

 

se sou lira,
o canto
não é vento
nas cordas
movediças

se sou lira,
o canto
é sua falta,
Dioniso,
lua inteira prata
grávida,
dez mil sóis
no corpo
(p. 24)

 

No poema aqui citado, a bela hipérbole hilstiana dos dez mil sóis resvala para a intimidade do próprio corpo, como bela imagem metafórica não somente do cerne do feminino, mas do próprio desejo solar, a despeito da noite e da solidão. Apesar da autora verdadeiramente encarnar em sua escritura aquela mística do gozo, do sofrimento e do erótico tão fortemente hilstianos, Cristiane, por outro lado, esculpe esses excessos dionisíacos por meio de uma palavra concisa, burilada, tributária de uma estética da precisão minimalista tão tipicamente mallarmaicos, em que a palavra parece despencar no abismo em branco da página, no silêncio primordial. Dessa maneira, inegavelmente ecoa na escritura da autora os ensinamentos de outra poeta também fundamental em nosso mais recente cânone poético do Brasil: Orides Fontela. A sagacidade de Cristiane está em dialogar com linhas de força distintas, aparentemente quase opostas, por meio de uma criatividade singular e original. Os arroubos hilstianos, pela própria natureza de sua natureza febril, tende a um texto quase sempre mais discursivo, mais corrente (1) , espraiado, ao passo que a concisão de Orides esgrime com o silêncio reduzindo o poema ao seu esqueleto primordial. Cristiane, assim, amarrando as duas pontas desse novelo, sabe explodir o gozo dionisíaco pela força apolínea da palavra burilada. 

O burilamento alcança, no livro de Cristiane, vários momentos de plenitude poética, em que poemas de perfeito acabamento formal coligam aquela dupla virtude preciosa da verdadeira escrita minimalista, ou seja, a de dizer muito com muito pouco, ou de coligar concisão do signo com a contundência semântica. Cristiane, assim, em um verso magnífico, quer “Conhecer do silêncio o toque dos dedos” (p.54). Sinestesicamente, nesse verso admirável, lapidar, a poeta exprime sua força: o poema ganha ímpeto pelos seus interditos, pelo que não está aberto, pelo que é ocultado ou silenciado. O excelente “Estudos para um corpo masculino” é exemplo típico dessa estética. Em um ciclo de sete poemas, a autora sabe explorar, em textos curtos, alguns moldados em único dístico ou único verso, o corpo masculino pela sede um olhar escultor. A referência às artes plásticas não é casual. O eu lírico torna-se verdadeiramente um escultor, ao delinear, pela sede do olhar desejante, as minúcias explosivas do corpo masculino erotizado. Um verso, dessa maneira, contém o mundo: “sempre agradeço aos seus joelhos” (p. 26). O não dito ganha tanta força, o não visto molda com tanto impacto a imaginação do leitor, que não podemos resistir ao assombro de imaginar a máquina corporal dos joelhos desse homem, em posições as mais sublimes no ato de amar. No poema de número sete, também vislumbramos o mesmo procedimento: “não existe nada mais malicioso/ do que suas costas” (p. 27). Esse dorso monumental lembra-nos o Hércules Farnésio de Glicão, em que o homem aflora com toda sua frondosa majestade, como uma espécie de árvore capaz de envolver o mundo. Aqui, é importante notar a força do adjetivo “malicioso”. A linguagem desse dorso está repleta de sugestões eróticas, guardadas pelo silêncio da concisão. Cabe mais uma vez à imaginação do leitor perscrutar os meandros desse dorso e dele destilar os sentidos dessa malícia.

Os poemas, assim, são gestados com todo o cuidado formal de um artista zeloso, em que os detalhes são ressaltados com força pictórica e contundência hiperbólica. Isso se dá porque a poeta tem seus dons: “Não tenho pressa, porque em mim moram pássaros amarelos” (p. 53). Pacientemente Cristiane perscruta a palavra, para dela extrair o “mel do melhor” e fazer evolar de si os seus deslumbrantes “pássaros amarelos”, os poemas. Em outro excelente texto, “Poesia contemporânea”, a autora dá a ver, em chave metapoética, a diretriz de sua escrita, mais uma vez com a precisa concisão que lhe é tão familiar:

 

o lirismo
agora
é calafrio na espinha
frio sol pontiagudo no sexo
(p. 93)

 

A verdadeira poesia, como disse Hilda Hilst, é um “soco na boca do estômago”, é nocaute fatal. Quando somos atravessados pela sua fúria, avassalados pela sua violência epifânica, atravessa-nos um calafrio. Aqui, a imagem fálica do sol pontiagudo delineia com perfeição a escritura de Cristiane: a poesia é um atravessamento de espada que, como no sexo, ao nos trespasar, leva-nos ao arroubo incontido da felicidade suprema.

 


(1) – Se, em muitos momentos, o poema de Hilda é um Fluxo-floema, uma poesie-fleuve, precisamos relembrar que a obra da autora é vasta e, portanto, pode soar como gesto redutor querer enquadrá-la em um veio único de escrita. Também Hilda sabe ser enxuta e precisa em poesia e, para tanto, basta lembrar o exímio Da morte, odes mínimas, em que a concretude, a concisão, a precisão, quase chegam a ser, para nosso assombro, cabralinos. Evidentemente que o processo discursivo, fluente e corrente da linguagem, dá-se de maneira mais aberta em Júbilo, Memória… , o que também não corresponde a nenhum desleixo formal, visto Hilda saber explorar as forças da prosa discursiva com a delicadeza de seu ritmo sempre poético.

 


Nota biográfica – Alexandre Bonafim é poeta, ficcionista e crítico literário; nasceu em Belo Horizonte e viveu a maior parte de sua vida pelo interior e capital de São Paulo. Atualmente reside em Goiânia. É doutor em literatura portuguesa pela USP e professor da Universidade Estadual de Goiás.

 

 

 


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