A coletânea de poesia intitulada em português pedaços a preto e branco (ch. 黑白的拼圖, ing. bits of black and white), uma edição trilingue da Associação de Estórias de Macau, editada em março de 2021, da autoria de 夏簷 (pseudónimo), consiste numa compilação de trinta e quatro poemas originalmente escritos em chinês, vertidos para português pelo próprio autor e traduzidos para inglês por 月河. Poeta de Macau, 夏簷 é proficiente em português e interessado pela tradução literária, com trabalhos publicados no Macao Daily, na Voice & Verse Poetry Magazine de Hong Kong e na revista Oresteia de Portugal. Para além de se saudar esta iniciativa rara no panorama literário de Macau, no qual a compartimentação imposta pelo desconhecimento mútuo das línguas se reflete obviamente no parco conhecimento do que se vai produzindo na cena literária chinesa contemporânea da cidade, importa destacar a originalidade e qualidade deste conjunto.
Heidegger dizia que “A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa é, ‘allo agoreuei’. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa: ela é alegoria. À coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. Reunir-se diz-se em grego symballein. A obra é símbolo.”(1) Trata-se precisamente do que se testemunha na poesia de 夏簷: o aparente realismo dos poemas, justamente associados no título da coletânea a “pedaços” ou “fragmentos” – mais a mais a “preto e branco”, marcando com isso um certo distanciamento em relação à figuração neles apresentada – remete paradoxalmente para a necessidade de uma leitura assente sobre o conceito de alegoria (do grego “allegoría”, que significa “dizer o outro”) – literalmente, o ato de falar sobre outra coisa. Em poemas como “tapetes”, “labirinto”, “um pedaço de pão”, “origami”, apenas para destacar alguns, rapidamente a leitura deixa de lado o sentido tão-só denotativo para mobilizar uma outra leitura assente na exploração do sentido figurado das cenas e imagens representadas, ou seja, na duplicidade de sentidos, na sua plurissignificação. A concretude dos títulos e a crueza de certas imagens surgem como uma espécie de “máscara alegórica”, abrigando diversos significados que transcendem o seu sentido literal. Na poesia clássica chinesa, a imagem é considerada central e imagens poéticas contêm não só uma forma concreta, mas também sentimentos abstratos e intangíveis. Em 夏簷 a imagens sobrepõem-se em cenas que se transformam em símbolos que o autor utiliza para representar uma coisa ou uma ideia através da aparência de outras palavras, com a imagem de outra coisa. A supressão quase total de termos designativos das relações lógicas, opção de alguma forma enraizada na tradição literária chinesa, imprime assim mais vivamente na ideação do leitor as ideias concretas subjacentes aos símbolos poéticos.
Embora surjam em pano de fundo locais de Macau em alguns textos (‘Travessa da Paixão”, “Travessa do Pastor”, “céu de Maio”), a reflexão que deles emerge vai além desse espaço circunscrito. Em poemas simultaneamente simples e intensos, marcados pelo desapego emocional e pela dimensão visual (traços herdados da cultura e da língua de origem), pela linguagem vernacular, o verso curto, a pouca adjetivação, a ausência das tradicionais figuras de estilo, cabe a nós, leitores, a construção da metáfora, a descodificação do símbolo, o entendimento da comparação implícita. Trata-se de uma poesia visivelmente adulta, na qual o autor reflete o nonsense da vida humana, por vezes com ironia, como em “o gastrónomo”, “um homem de experiência”, “o meu carro” ou “cabeça de porco estufada”, com referência a um quotidiano profundamente atual e um olhar crítico em relação à sociedade de consumo; o sentido da existência e um questionamento de cariz filosófico perpassam todo o conjunto, mas citam-se a título ilustrativo “sobrevivendo”, “correr”, “minha vida”, “ao entardecer”, “peixe” ou “o apartamento”, com o ambiente surreal quase kafkiano de “labirinto”, “ brancura” ou “acordei ébrio” a expor uma atmosfera que revela o absurdo da vida e das suas normas, do homem escravo da necessidade. As referências intertextuais que remetem para mesmo tópico, a O Principezinho e Alice no País das Maravilhas (“A minha rosa” e “Sr. Coelho”), surgem coerentemente na mesma linha de alegorização. Para além do questionamento existencial, perpassa esta escrita um certo estoicismo (no sentido moderno do termo) decorrente da indiferença e da ausência de julgamento perante os paradoxos, ironias e ambivalências inerentes ao mundo atual. Dir-se-ia mesmo que existe no mundo dos poemas de 夏簷 um quase niilismo que, no entanto, não se escusa de indagar subtilmente as formas de vida presentes na contemporaneidade.
(1) – HEIDEGGER. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1992: 13.