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Inéditos de André Alves
Por André Alves Publicado em Literatura, Poesia, Portugal a 3 de Junho, 2021 2018 palavras
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Falta-nos a permissão para narrar.

Edward W. Said

 

O oposto do amor não é o ódio, é a indiferença.

Elie Wiesel

 

 

A Palestina segundo Heródoto

 

I

Jerusalém

 

Um autista é um homem livre,

livre num certo firmamento de jaula

Eyad al-Hallaq corria mas não era culpado

era na cozinha aluno da nobre arte da mesa,

não era inimigo, não era culpado, era Palestiniano.

Todos os inimigos sob os nossos pés enterrados.

“Não os podemos deixar levantar a cabeça”, Tzahal.

 

Todos os homens que correm são culpados.

Olho por olho, dente por dente,

olho a mira desta mag, estou pronto.

Fugir é ter culpa, não obedecer é ter culpa.

Todos os caminhos estão bloqueados.

Tão só o trauma, alivia o tormento de quebrar o silêncio

ou acidente na saliência da memória.

 

Este é muro que relembra um espelho

a cicatriz encoberta, que enquadra a paisagem,

circunscreve a água, invade e cerca a casa,

um labirinto, um gueto ou o apartheid.

 

 

II

Gaza

 

Quis dizer estrada

Mas só tinha olfacto,

Quis dizer parágrafo, mas não sabia ler,

Quis dizer Gaza, mas só disse, checkpoint.

 

Atravessaram-se como travessões num discurso interrompido, à mira

de soldados suspensos no ar, com a violência de Golias, prontos a esmagar

olhos ébrios, excitados, entre o poder e o medo, a eros da certeza da missão,

que plano face à juventude das labaredas ou ao halo das inconsciências,

para disparar não preciso de alvo, treino com os meus amigos, entramos em casas,

deixo-lhes doces para as crianças, vinte shequels na mesa, uma simples patrulha nos telhados, os inocentes são culpados, porque aqui todos são culpados,

Sem língua, falar o quê, que a sorte já não existe, que a sombra já comeu a razão?

Nas vésperas do ataque, um, dois, três, todos os números, num calendário de décadas, entre aldeias sem luz, os pesadelos da noite anterior,

todas as estrelas que contemplámos, as searas de ódio que semeámos sobre as terras

“uma terra sem pessoas, para nós, pessoas sem terra”, colonizadas as raízes, a natureza reduzida a rectângulos, kibutz, colonatos, a ocupação militar, manobras em escuta, manobras aleatórias, mais uma patrulha indistinguível, como as cabeças, que as comandam, executam ou perseguem.

 

Cem dedadas no cérebro tenro duma criança é apenas um símbolo,

Daud, e o sangue amiúde de estilhaços escorre sobre os olivais que choram depois de queimados.

 

Toda esta terra proibida, nem a areia é nossa,

passa-nos entre os dedos, roça-os num arrepio

esperamos os ossos na carne,

a carne sem osso, as crianças,

todos os ossos desejam o tendão dum país

e diante disto, desisto esmorecido,

pareço cego a lançar rockets, quatro mil rockets,

invenções mais anti-bloqueio que anti-semitas.

Todos somos semitas, todos precisamos duma casa, um quarto.

Eis-nos diante da esperança.

 

 

Derrubam um homem numa cadeira de rodas.

 

Ele sozinho

Quis dizer estrada, mas só possuía o ar em volta do nariz,

Quis ele dizer país, mas só lhe pertencia o nada.

 

Queria dizer medo, mas só tinha cegueira,

meda de balbucios e gritos, porque sim, e o que arrepia

é que eu que cresci com esta guerra em casa,

numa casa sem porta,

porta sem estrada,

estrada para o nada,

e o presente despedaçado.

 

 

Aquele orifício no muro é uma estrada,

um espelho, a chama dum rosto, uma farpa, uma lupa,

uma navalha afiada vista de perto na glote, que pende sufocada,

mesmo quando vejo um olho dum velho já morto do outro lado,

mesmo quando vejo jovens judeus bêbados em Hebron no Purim

mesmo quando vejo um árabe louco, de ambos os lados,

mesmo quando vejo, e já não vejo nada, e a confusão explode.

 

Corremos paralelos para a reunião do confronto, quem atacou quem?

Primeiro, segundo. Espiamo-nos de lados opostos do mesmo muro,

o muro que é um espelho de fantasmas, de esqueletos que habitam na ruína

nas vinhas da ira em que bebemos o ódio iracundo, rutilante,

que refulge com armas e berços, facas que afiamos na língua,

granadas e fisgas, actos que se pagam caro, quando à noite

acordamos com um laser na testa, inocentes, crianças, tanto faz

o horror funda-se no aleatório da banalidade, uma, duas, três vezes, as estrelas

o refutar da causalidade da guerra, mas que pergunta, mato-te porque és

não porque me atacas, e ao sê-lo, cegas-me numa cabala sem limites.

 

“Não existia terra sem pessoas – nós criámos este sonho que impõe um pesadelo aos outros.”

 

 

Só tínhamos olfacto,

e os outro tinham terra, ferramentas, água e minerais,

tralhas, memórias e traumas,

Vieram duma promessa, e nós somos por isso os sem terra, Nakba desde então.

Não esqueceremos, o dia, a pedra em todos os sapatos desde que os pés correm, e as cabeças fogem, na terra que tremeu, e treme.

Com a nossa fuga, abriu-se uma fossa na Palestina, um aterro fundado no maestro

calor que foi ordem naquele caos, destino Beirute, nas estrelas o massacre escrito,

as estrelas sempre esse confronto de cores, na noite sem cor, que ali engolfava os dias. A serpente de mil cabeças teleguiadas ou a surata do elefante.

 

 

III

Memória

 

Shalom izkor,

Não perdoamos,

não perdoámos, não termos sido perdoados.

Vítimas da vítima, topologicamente paralisados, num túnel escuro, onde jaz,

um corredor que visto de cima é na verdade, um toros de espectáculo, arena

acelerador de partículas, ratos da má sorte colonialista, parasita eu, porque nós,

todos espectadores. O mundo. O contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.

 

Somos olfacto sem caminho para chegar,

Somos escravos se queremos comer.

Checkpoint Gaza

Checkpoint Charile

Um moeda de ouro em Kazimierz Dolny depois no Gueto d’Opole

Oiço os disparos em Syrets. Conto as estrelas apagadas na História.

Babi Yar, Opus um

Zyklon B, Opus nas estrelas

Dá-me a mag…

 

 

 

 

 

 

IV

West Bank (Cisjordânia)

 

O que faz um homem numa cadeira de rodas ali?

 

Tínhamos pedras e queríamos que as pedras fossem nossas,

que as mortes fossem nossas ao caírem no chão,

nós os ratos desta peste lenta, pestilenta forma

de durar, existir é resistir,

luta após luta,

mas a fadiga esmói,

esboroa,

esmerila e abrevia todos

mesmos os diamantes,

as esperanças vãs,

as pedras que agora são cacos de vidro ao sol

brilham como as estrelas, alucinações.

 

Desde que lutamos que já só sabemos lutar,

pilharam as nossas casas,

pilharam os nossos livros,

pilharam as nossas fotografias,

pilharam as nossas memórias,

pilharam tudo que podiam pilhar.

Estropiaram-nos,

nós os eternos refugiados, nós as figuras na paisagem em êxodo,

refugiados em casa, onde é a casa, se ao mudarmos de lugar perdemos a identidade.

Ou não terá o lugar ficado mudo ao se chamar casa?

 

Mudas as mulheres,

lutam também, têm filhos no meio da discórdia,

filhos da ciência dentro das ondas do inimigo, filhos dos homens soldado

que ao anteverem a morte nas nuvens do dia anterior,

e só a morte os guia na noite,

congelam o seu esperma como estrelas dessas noites, promessas,

filhos do parto do nunca, da promessa também ela dum país adiado,

apagado – nessa noite sem lua.

 

As mulheres ululam, nasceu outra criança.

Filha do congelador do inimigo adentro o calor do deserto,

filha do amor, filha de quem resiste, vivo e morto,

existe,

e assim, promessas de mais homens soldado como doces tâmaras,

e de mulheres para lhes sobreviverem e darem ao sol,

as luzes que não vêem, aos tormentos que pressentem,

filhos de todas as sedes, mártires, mais de quarenta.

Nascidos sem água, mártires, entre as oliveiras queimadas

nascidos no crepúsculo do muro, entre lutas,

os nascidos do muro,

o locus, dos sem futuro.

 

V

Israel

 

Luto contra o inimigo porque me faz sentir vivo,

luto logo existo, ataco para me defender, não queria estar aqui

sei lá, as lágrimas que provoco, tento não pensar,

as fotografias provam o que faço, mesmo as que eu tiro,

são o que quero esquecer, os arquivos roubados,

epitáfios de vidas que se esfumaram como se secasse um rio.

 

Escravos da memória,

este é o nosso trauma, o nosso mapa horário,

temos séculos de raiva e nenhum enviado mensageiro para nos ensinar a paz,

ou a paz, que soubemos esquecer,

ninguém para nos ensinar “Quero viver, não quero morrer”, mensagem estranha

nesta cartografia de ruínas e vísceras, vésperas, vivos e mortos, faustos do ausente.

 

O judaísmo não pode ser definido pela vítima.

Não criámos o Holocausto, logo não nos pode definir como povo.

 

O que nos resta senão os restos do muro, o tempo a nascer do muro, o antes que já ninguém se lembra, o êxodo, o exílio, o enforcado, a fogueira, o eterno murro no deserto, decerto um mar de lamento.

Jerusalém, lá estarei no próximo ano,

L’Shana Haba’ah B’Yerushalayim.

 

Nascemos da esperança, da consciência, da órfã folha viva de erva, prata que brilha, aceitámos viver assim porque a memória colectiva nos banalizou o mal, nos ensinou o horror, nos perfurou a razão plena de não perguntar, de fechar os olhos,

mesmo quando todo mundo vê. A sobrevivência e a segurança são mais que isto.

“Eu quero viver, não quero matar, nem morrer.”

Tratamo-los como os ratos,

mataram-nos como ratos,

intentaram extermina-nos como uma praga de ratos.

 

Agora nós, eles ratos,

na duplicação infinita do espelho do mal, um espelho face a outro espelho colérico,

a violência bebe na sede da vingança que rejubila,

sem um físico opositor para além do vizinho,

a mim que muitas vezes mataram como ratazana,

eu que fugia dos muros, dos guetos que me cercavam,

trepava por fogueiras que me derretiam a carne já destilada,

que me faziam mentir a fé, cristãos-novos, Amesterdão, eis-nos protestantes

duma prisão sem nome que nos apagava da história,

guardada pelos guardiões das chaves, dos que não têm consciência,

e queiram queimar todos os livros,

dos que cospem tanto sobre o irmão,

como quem o confunde com o inimigo,

que a debalde repelimos,

entre os mortos, e os vivos e os dilacerados, emerge este presente

desenterrado das catacumbas, soterrando as mãos dos corpos, das cabeças

elas já, vendadas.

 

Palestine espera ao vento,

esquece-se e apodrece como uma nêspera à derivada no mediterrâneo,

é esquecida, resta-lhe o cheiro das noites, o desespero e a dor …

resta-nos o calor dum mapa passado,…cada vez mais raro…

 

Quis um homem que assim fosse

cada vez menos que assim não seja

Quiseram poucos que fosse diferente,

Quis a luta ser luta e a morte

a fome que ensina a comer.

 


Nasceu em 1987 em Lisboa. Mestre em Engenharia Física pelo IST. Trabalhou em investigação no CERN, Suíça e em Telecomunicações em Lisboa e Roma. Em 2017, deixou o seu trabalho e decidiu ser repórter. Viveu na Ucrânia, Inglaterra e Itália, e viajou pelo Senegal, Marrocos, Turquia e Irão. Publica poesia desde 2015, em várias revistas sobretudo na Apócrifa. Trabalha como fotojornalista freelance para o Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF.


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