No fim de tudo procura-se a voz do início.
A Agonia da Rainha Ginga
Daqui a umas horas amanhece. Há muitas noites que sinto a morte a roçar-me as costas. Os feiticeiros já só discutem o tempo que me resta viver. As horas que existem são uma constante espera pelo próximo surto de dores. Penso na morte como num atordoamento, antes de regressar para junto dos meus antepassados. Apesar disso, não consigo deixar de me inquietar com a situação em que deixo ao meu povo. A relação de forças com os portugueses poderá ainda mudar ao longo dos séculos, mas não em relação ao tempo que corresponde a um futuro próximo. O que me atormenta verdadeiramente é saber que não consegui deixar uma herança de paz.
Nestes dias de agonia, escolhi Lueji, a escrava que trata de mim, por ela ser muda. Entende tudo o que lhe digo, cumpre bem as minhas ordens, é cuidadosa a erguer-me e a dar-me de comer. Às vezes, traz no rosto a expressão de uma angústia que, embora disfarçada, se mistura com o medo que me aconteça alguma coisa, porque sabe que quando eu morrer os meus guardas irão matá-la. Ela não ignora que fará parte do cortejo de jovens que terá de me acompanhar no meu túmulo, sendo sacrificada para honrar a minha morte.
Luegi é jovem, mas conhecendo o seu destino, reside como eu nos mundos invisíveis onde pululam os espíritos e os antepassados. Morrerá antes de poder ser amada ou ter filhos. É daquelas mulheres que mal se poderá dizer que existiu, não deixará de si nenhum rasto neste mundo. Um intenso silêncio existe entre nós, parecendo um cenário. Não é só por ela não poder falar, ambas vivemos estes dias sob o jugo da iminência da morte e isso carrega a atmosfera da cubata. Habitamos ambas num lapso de tempo em que estamos de passagem por um estranho corredor, dentro do qual não existe nem esperança nem desejo. Posso por isso contar-lhe as minhas memórias sem ficar à espera que ela faça qualquer comentário. Não é apenas por ser muda, mas, sobretudo, porque também para ela não há futuro. É a Luegi que explico como as pequenas coisas fazem as grandes diferenças e nem mesmo os feitiços podem contrariar a vontade de uma mulher em triunfar. Talvez o meu exemplo a inspire a fugir. Eu, ao contrário dela, tenho a certeza de que serei lembrada por muitos séculos.
Acontece-me falar de mim como se já estivesse morta, não tendo, portanto, poder. Quando ainda tinha forças tentei lutar contra esses costumes ferozes que fazem da cerimónia fúnebre de um rei um cortejo de cadáveres. Um rei pode mudar essas tradições sem ofender os antepassados. Defendi junto dos feiticeiros que os espíritos aceitam mudanças, se se lhes explicar o sentido dessas transformações. O que os antepassados nunca aceitam é a ofensa, o desprezo acerca do culto porque merecem todas as deferências. Insisti por isso, ainda há poucos dias, com os meus makotas para que me façam um funeral cristão. Não me interessam as ideias disparatadas dos católicos – em que eles são os primeiros a não cumprir. Já passei horas a argumentar com o frade capuchinho, António de Gaeta, contra o princípio que consiste em amar os outros como a si mesmo por ser demasiado contrário à natureza humana. Não acredito que os homens comuns lhe obedecem, tanto assim que mesmo os mais fervorosos católicos raramente praticam esses preceitos. Basta ver a forma como os brancos tratam os escravos que enviam para o Brasil. Batem-lhes tanto que os seus corpos ficam esvaziados de qualquer vontade. Os nossos ijiku, ou escravos, sempre fizeram parte da família, nunca serviram de bestas de carga e nem lhes retiramos a alma ou as ambições à força de chicote. Em muitos aspectos, aliás, o pensamento desses religiosos só serve para condenar quem não cumpre os mandamentos divinos. Falaram-me de torturas terríveis para quem cometia sacrilégios no reino dos portugueses e mesmo de condenações à fogueira por heresia. De qualquer modo, para que os portugueses aceitem a minha irmã Mokambo como minha sucessora, é necessário que nos ritos da vida e da morte sejam celebrados pelas leis cristãs e que não coloquem dúvidas sobre nossa devoção aos seus santos. Os tahi ou feiticieiros que, às vezes pouco têm de adivinhos, sempre preocupados com o justo culto a oferecer aos antepassados, irão talvez desobedecer e isso será motivo para um novo ataque dos brancos. Oiço os feiticeiros falar entre si. Dizem que o meu espírito não é o mesmo de uma mulher das lavras ou de um pescador que apenas decide sobre matérias familiares. A influência do meu espírito nas nossas gentes, por descender em linha directa dos fundadores de Ndongo, deverá perdurar por muitas gerações, para ajudar o povo a evitar secas, epidemias e guerras.
Aos poucos vai deixando-me de me interessar o que irá passar-se e já não tento convencer os feiticeiros sobre os ritos do meu próprio funeral. A seguir à minha morte virão mais guerras com os portugueses, às vezes tentaremos resistir, mas a ordem que eles venham a impor acabará por triunfar. Não há maneira de o impedir porque para os brancos o mar é uma estrada que cruzam como se estivessem no meio do capim. E podem sempre chegar mais nas suas caravelas. Muito diferente do que nós pensamos dos oceanos, para o nosso povo o mar confunde-se com uma espécie de bruma pálida que esconde a linha do horizonte, o mar é uma fronteira que só os espíritos dos nossos antepassados atravessam.
Quando os portugueses dominarem o meu reino, alguns homens e mulheres irão fugir para o meio do mato de modo a continuarem a viver como os seus antepassados. Muitos mais serão feitos escravos e enviados para o Brasil e outros tantos começarão a parecer-se aos brancos, glorificando as virtudes cristãs, defendendo que a sua moral é mais elevada e a sua raça superior. Não é preciso ser uma grande feiticeira para prever o futuro. É apenas necessário conhecer a tendência dos sobas para as querelas e rivalidades e a superioridade do armamento dos brancos.
De qualquer modo, não posso fazer nada. A doença tira-nos o coração de carne e dá-nos um coração de pedra. Esta terra é cada vez menos o lugar onde vivo. Aos poucos, a realidade, onde há ruídos, visões e cheiros, quase não preenche os meus sentidos. As minhas memórias vivem em plena exaltação e conseguem arrastar-me com elas para os locais onde durante a minha infância o meu povo dançava. Ao anoitecer, da cubata, onde devia ficar a dormir, via formas humanas a correrem indistintamente para o largo. Alguns guerreiros, apoiados em enormes lanças, tinham chegado da orla da floresta, certas vezes com presas de elefantes, outras vezes com escravos. O povo juntava-se para ir celebrar os seus feitos e Ngola Kiluangi, meu pai, descia com a multidão até ao largo. A minha mãe, Ganguela Cakonbe, seguia-o logo atrás, não sem antes espreitar se alguma concubina se atrevia a fazer-lhe sombra. Ela era a primeira mulher e assumia a majestade de uma rainha. Caminhava com ar seguro, pisava a terra com soberba, fazendo tilintar as pulseiras dos braços e dos pés. Ostentava um colar de pérolas que o meu pai comprara a um árabe. Trazia em cima dela o valor de várias presas de elefante.
Foi com a minha mãe que, realmente, aprendi a ser rei – é assim que exijo que me tratem. Cada uma das suas afirmações tinha algo de majestoso e autoritário que ninguém se atrevia a desafiar. Se ela me tivesse visto reinar e não tivesse morrido tão cedo, não teria ficado de modo nenhum deslumbrada com os meus êxitos. O orgulho na sua linhagem era tão forte que não reconheceria que eu pudesse vir acrescentar-lhe algum feito ou virtude. Morreu nova, mas persuadida até ao fim de que era uma das mulheres mais poderosas da tribo.
Mesmo quando eu era muito pequena, só fazia o que entendia. Depois de a minha mãe sair, nesses dias de festa no terreiro, contornava o guarda da minha cubata, escondia-me dos escravos e corria para o largo. Ficava atrás de um arbusto a observar as danças do povo. Não teria mais de quatro anos, quando aprendi o que era festejar à luz das fogueiras. Naquelas noites de batuque só contava o aproximar e o afastar dos corpos suados, o pulsar das veias no esforço de movimentar os músculos, o martelar do sangue, o esvaziamento total das lembranças. Apagadas as dúvidas do quotidiano, afastados os temores da doença ou os perigos das caçadas e da guerra, só contava o ritmo dos pés preenchendo os espaços vazios deixados por outros pés, freneticamente repetindo os mesmos passos e o sangue latejando cada vez mais depressa. O meu povo dançava, mas podia estar em guerra, porque os homens agigantavam-se para simular os golpes nas pernas e braços dos sobas traidores ou as cabeças cortadas dos invasores portugueses. Urros elevavam-se nos ares imitando o sofrimento dos adversários, gestos que simulavam a ferocidade da batalha. Aquela era a hora da dança, mas a hora da guerra devia estar a chegar.
Cresci no meio da guerra contra os portugueses. Todos os dias havia escaramuças, sobas aliados feitos prisioneiros, sobas vassalos que se passavam para o lado dos brancos, exércitos destroçados e multidões a serem levadas como escravos e embarcadas em navios. Os brancos tinham construído fortificações ao longo do rio Kwanza e daí enviavam expedições contra os chefes das nossas aldeias.
Lembro-me de passar muito tempo em criança na cubata do meu pai, enquanto ele dava audiências ou reunia com os seus capitães e makotas. Tanto os miúdos como os animais podiam andar por ali, tinham total liberdade, ninguém lhes ligava nenhuma como se fossem espíritos de uma árvore. Uma tarde, Kandala, o seu chefe dos guardas, fez o relatório de uma batalha da qual escapara por pouco. Os espíritos andavam revoltados, começou ele. Tinha ido buscar o tributo ao soba Muxima, levando reforços para o ajudar nas investidas contra os portugueses, quando foi surpreendido por uma expedição de brancos em que a guerra preta era feita pelos próprios soldados desse chefe.
Os seus guerreiros vinham a subir uma picada. De repente, assomaram vários rostos do outro lado da colina. E como se um véu se abrisse, Kandala distinguiu peitos, braços, pernas nuas e o luzir de muitos olhos no meio do arvoredo. Os ramos abanaram, sacudiram, estalaram e uma nuvem de flechas desceu até ao chão ao mesmo tempo que as azagaias espetavam os corpos. Os seus homens iniciaram o clamor de guerra, toda a selva parecia gritar. Para piorar, homens brancos disparam tiros de mosquete que mataram vários guerreiros. O que estava a acontecer era de tal modo catastrófico que a única ideia que dominou os sobreviventes foi a de fugir. Onde antes havia guerreiros orgulhosos passou a existir formas vagas no meio do mato. Depois de terminar o relato, Kandala calou-se. Ouvia-se os murmúrios de medo no interior do seu silêncio. O meu pai era capaz de extrair conclusões desse silêncio e retirou-as. O comportamento de Kandala fora o de um traidor. Sentenciou que o capitão da guarda fosse de imediato degolado e os fiéis soldados do comandante não hesitaram em cumprir a ordem. Continuou a falar com os makotas, enquanto Kandala era arrastado para o exterior. Corri para fora com as outras crianças para ver o que ia acontecer no terreiro. O bater frenético dos tambores enchia o ar de persistentes vibrações. Os soldados pareciam ter vários braços que se movimentavam em volta do seu antigo capitão. Rapazes prestes a cumprir o ritual da puberdade observavam escarninhos, orgulhando-se em voz alta de ter morto muitos traidores. Velhos fechados em sonhos de liamba e mulheres a chegar do trabalho da lavra, desfilavam no largo, indiferentes ao que se passava. Kandala fixava a multidão como se fosse fazer uma pergunta numa língua incompreensível, mas deixou-se levar para o local das execuções sem soltar um gemido ou esboçar a menor resistência. Houve um instante de murmúrio contido na assistência em que as pessoas entoavam baixinho orações mágicas. De seguida, degolaram-no. Uma explosão de gritos coroou o momento. Vários rapazes lutaram entre si para dar alguns pontapés no cadáver enquanto as pessoas do povo regressavam aos seus afazeres.
O meu pai deixou de ocupar-se das chuvas ou das suas mulheres. Já só pensava nos portugueses, nas investidas que faziam nos seus territórios, nos presentes que ofereciam aos sobas seus inimigos. Nem sempre havia sido assim. Quando os brancos chegaram e se ouviu falar do seu poder de fogo, Ngola falou com vários feiticeiros para saber se aqueles tiros eram indícios de um espírito antigo ou de um trovão. Os melhores tahi do reino vieram de longe para deliberar. Espreitaram vários fumos, tomaram muitas ervas, fumaram cânhamo de modo a irem além do limiar da realidade, tentando compreender os sinais que vinham dos mundos ancestrais. Apesar de poderosos e de serem de longe os melhores a conciliar o diálogo entre os homens e os espíritos, os feiticeiros não chegaram a nenhuma conclusão e o meu pai, cauteloso, mandou uma embaixada ir ter com os portugueses. Durante alguns anos, manteve relações amistosas com os brancos e, em certas alturas, foram mesmo aliados contra sobas revoltosos. Foi o seu maior erro. Deveria tê-los combatido quando ainda eram fracos e sem aliados entre os chefes de aldeia a quem foram oferecendo um sem número de quinquilharias preciosas. Os brancos trouxeram pensamentos, palavras e costumes que se apoderaram dos povos mais depressa do que se tivessem sido conquistados. Com eles chegaram também os padres que demonstraram ser feiticeiros poderosos e espalhavam as palavras do seu Deus.
O reino do Ndongo parecia-se com um homem na força de vida, mas que, de vez em quando, tinha convulsões que alteravam as suas fronteiras. Às vezes, eram os sobas que não queriam pagar o tributo, outras alturas os jagas que faziam incursões nas aldeias, massacrando as mulheres, roubando os homens para os vender como escravos aos portugueses e raptando os rapazes para os transformarem em seus guerreiros. O meu pai fazia e desfazia alianças com a mesma ferocidade com que outros reservavam a fúria para o campo de batalha. Ali, assistindo aos conselhos, percebi como se desenrolavam as disputas de palavras, como se desenvolviam as querelas de procedências, familiarizei-me com as intrigas e as calúnias e com os jogos da diplomacia, aprendizagens que muito me serviram quando mais tarde fui rainha.
As atitudes do meu pai, e os seus desígnios implacáveis, eram impossíveis de decifrar ou de antecipar. Os makotas, os capitães e os sobas, ou mesmo os feiticeiros, nunca conseguiam prever os seus desígnios. Em certos momentos, o sorriso mais encantador esboçava-se nos seus lábios, ficava a bailar-lhe por instantes, para depois a boca se abrir num esgar de raiva contra um dos seus servidores. Noutras alturas, a voz subia em fúria, ameaçando matar todos em volta e, de repente, o sorriso voltava a brilhar numa surpreendente benevolência e a voz esvaía-se na calma de um entardecer. Outras vezes perorava magnificamente sobre as deslealdades dos makotas, ninguém se atrevia a interromper a torrente das suas palavras até que numa única frase condenava vários escravos, e as suas palavras caiam como um raio num céu sem nuvens sobre esses homens. Nessa noite, apareciam várias cabeças espetadas em postos com os rostos voltados para as cubatas, para alimento dos abutres e reflexão de todos os súbditos sobre os desvarios do seu senhor.
A imprevisibilidade do meu pai, as reviravoltas no discurso, as estratégias e as manhas faziam dele um Ngola verdadeiramente notável e essa era a sua verdadeira força. Ninguém estava seguro da sua posição e qualquer um podia ser declarado a dado momento inimigo e decapitado. Os fidalgos mais ricos podiam ficar sem terras e escravos e um desgraçado qualquer ser elevado à condição de makota em seu lugar. Até os anciãos nas reuniões do conselho se deixavam intimidar e nunca se atreviam a contrariar o rei. Quando emitia uma sentença, o rosto do Ngola nada denunciava, nem compaixão nem fúria.
À medida que fui crescendo, ia compreendendo o significado das atitudes do meu pai, os seus efeitos para a submissão dos sobas e nobres. O rei nunca permitia que os interesses da linhagem se sobrepusessem aos do reino do Ndongo ou então favorecia as rivalidades para obter novas alianças ou tributos mais elevados. Observava com atenção o meu pai e aprendia tudo o que podia, mas considerava haver exageros nas suas atitudes. O rei matava muitos súbditos e depressa demais, sentenças de uma feroz mortandade sem que daí se tirasse grande proveito. Nunca tive aversão às execuções, mas muito cedo pensei que a persuasão podia gerar mais lealdades do que o medo. O meu cálculo visava menos poupar vidas do que o efeito produzido e as vantagens de haver menos sobas a prestar vassalagem aos portugueses.
A imagem que guardo de meu pai durante a minha infância é feita de muitas lembranças sobrepostas onde se misturam vários episódios de guerra. No entanto, recordo nitidamente a história da primeira grande batalha contra os portugueses. Francisco Barbudo de Aguiar vivia no nosso reino e era dos poucos brancos que sabia falar kibumdo. Conhecia o mundo complicado dos sobas, o que constituía uma grande fortuna para os seus negócios. Para a troca das suas mercadorias por escravos, escusando-se aos tributos devidos a Filipe II, era preciso que continuasse a existir comércio longe das vistas dos portugueses. Talvez por isso veio denunciar o rei de Portugal e o seu governador, Paulo Dias, em relação às suas intenções bélicas. Avisou o meu pai que o Governador entrara no Ndongo e subia o rio Kwanza, pretendendo tomar pela força a zona de Cambambe onde se acreditava haver minas de pratas. Trazia muitos soldados, muita pólvora e muita bala.
O meu pai previu o futuro e com bastante exactidão. Se não derrotasse os portugueses o seu prestígio junto dos sobas sairia enfraquecido, o que poderia ser seguido de muitas catástrofes para o reino. Não se tratava apenas de vencer os brancos, mas de exterminá-los. Uma vitória escassa seria inútil e não bastaria para cobrir o Ngola de glória. Os brancos procuravam aliados onde podiam, corrompiam os chefes de aldeia mais ambiciosos, sendo necessário, portanto, exterminá-los.
Depois de consultar os espíritos e os anciãos, o meu pai elaborou um plano. Predispôs-se a fazer um jogo de diplomacia simulada antes de lançar os seus batalhões. Pediu ao governador tropas para o ajudar a combater um suposto soba revoltoso. Paulo Dias aceitou ajudar o Ngola. Combinou-se o local e a data de encontro dos dois exércitos. Quando os portugueses já estavam instalados, o meu pai mandou um emissário dizer que chegaria um dia mais tarde, sendo sua intenção apanhá-los desprevenidos e sem armas.
Nesse mesmo dia, ao entardecer, no meio da paisagem solitária em volta do acampamento dos portugueses, escutou-se o grito agudo de um guerreiro e, depois desse sinal, uma chuva de setas riscou o ar para cair sobre o coração dos inimigos. De seguida, como por encanto, um batalhão de guerreiros do meu pai saiu detrás das árvores, empunhando azagaias e machadinhas. Com olhares ferozes e movimentos ágeis mataram os soldados brancos e negros que descansavam. Por instantes, o mato tremeu, o capim ondulou para receber os cadáveres e a terra ficou vermelha. Os sinais do massacre ficaram visíveis nos corpos espalhados pelo chão, os guerreiros afastaram-se e a paisagem permaneceu serena, fechando os olhos à morte.
Apesar desta vitória e dos festejos que lhe seguiram, os prognósticos dos feiticeiros em relação ao futuro do reino eram sombrios. A situação deteriorou-se muito rapidamente: muitos sobas eram hostis ao meu pai, os grandes nobres irritavam-se por ter de alimentar tropas sempre envolvidas em escaramuças com os brancos, as aldeias suportavam mal a imposição de novos tributos. Tornaram-se graves os ataques sucessivos de sobas inimigos a aldeias vassalas para raptar homens e mulheres de forma a pagarem em escravos os tributos aos portugueses.
A vingança dos brancos contra o meu pai chegou um ano mais tarde. O governador retaliou com um exército de sessenta mil congoleses. O choque das tropas foi favorável aos portugueses porque os nossos guerreiros foram apanhados em terreno aberto. Um ataque imprevisto com canhões fez debandar os nossos soldados. Aquele não era um som humano, mas o ruído de demónios violentos com um olhar vermelho que, num relance, fulminavam os homens. Só os espíritos mais malignos atacariam daquela maneira. Os homens fugiram por um desfiladeiro, mas à espera deles, na estreita passagem, estavam os congoleses. Os guerreiros do meu pai foram degolados aos milhares.
Ventos com espíritos maus sobrevoavam o nosso território: foi essa a sentença dos feiticeiros. Com medo que a nossa capital estivesse amaldiçoada e que os portugueses avançassem ainda mais, o rei determinou que partíssemos e fundássemos outra cidade. Na semana seguinte estávamos de partida. Seguimos ao longo do rio Kwanza, filas e filas de gente. Andámos durante dias, ao ponto de não distinguirmos uma colina da outra. Os troços ao longo do rio não eram mais do que um único troço sempre igual, ramagens pesadas pendiam sobre os passos dos carregadores. Algumas crianças pequenas morreram nos braços das mães de sede e exaustão. Elas abandonavam os corpos dos filhos aos abutres, para não ficarem para trás. Duas semanas mais tarde erguemos uma nova capital em Cabassa, construímos a cidade em dois dias, tendo o cuidado da disposição das cubatas ter a forma de um cágado de pernas esticadas.
Foi em Cabassa que me tornei mulher, sem que verdadeiramente alguma vez sentisse que possuía uma família. O meu pai não era muito dado aos prazeres familiares. Eu assistia aos conselhos de anciãos e às audiências, mas, por ser rapariga, não existia verdadeiramente para ele. O rei raramente falava comigo a não ser para proferir uma ou outra pergunta ocasional.
Às vezes, ia sozinha para as margens do rio Kwanza. Andar no mato era como voltar ao tempo em que não havia pessoas no mundo, onde as árvores reinavam e a vegetação transbordava. Caminhava no meio da floresta impenetrável, onde luz do sol não tinha ímpeto para penetrar as sombras. Longos troços de rio perdiam-se por lonjuras que não cabiam nos olhos. As águas largas corriam sobre uma confusão de ilhas arborizadas que podiam servir de refúgio em caso de invasão dos brancos. Era preciso ter cuidado, ao desembarcar de uma piroga, porque ali, nas margens de areia prateada, os crocodilos tomavam banhos de sol. Em campo aberto, apesar do rio, olhando a infinitude do céu, tive uma visão de mim em que me via a governar o meu povo.