ASTRID CABRAL: UMA AURA DE POESIA
O ano de 1963 foi marcado pela estreia em livro de uma das melhores e mais completas escritoras brasileiras da geração de trinta: Astrid Cabral publicava, pela GRD, do Rio de Janeiro, os contos de Alameda. Ao longo de seu trajeto, Astrid acumularia êxitos notáveis em quase todos os gêneros literários: narração (conto e crônica), literatura infantil, crítica, tradução e – último, porém mais importante, pela constância e pela sobre-excelência – poesia.
Nascida em Manaus, capital do Amazonas – cuja ambiência influi íntima e afetivamente em significativos aspectos de sua obra –, integrou o Clube da Madrugada, movimento cultural de seminal importância, atestada pela filiação de nomes como Jorge Tufic, Adrino Aragão, Luiz Bacellar, Élson Farias, Alcides Werk, Alencar e Silva, Márcio Souza, que dentre inúmeros a memória vai pinçando. No Rio de Janeiro diplomou-se em Letras Neolatinas. Colaborou nas generosas primícias da Universidade de Brasília, de que foi um dos mais jovens docentes, tendo-a deixado, em 1965, por força do arbítrio imperante (seria reintegrada em 1988, após a redemocratização). A serviço do Ministério das Relações Exteriores, ao lado de outro magnífico poeta, Afonso Félix de Sousa (seu marido, com quem teve cinco filhos), colheu novas vivências em diversas partes do mundo, tudo o quê, de um modo ou de outro, presente se vê em sua obra.
Voltemos a Alameda: reina aqui uma refinada exploração da sensibilidade vegetal, em termos do que cheguei a chamar de realismo poético, sendo de frisar que tal sensibilidade, na época, não era ainda reconhecida, senão, talvez, timidamente. Perpassa esses contos o sopro da Poesia, sem descaracterizar o gênero. Há neles um tratamento metagógico dos seres vegetais, uma personificação, uma atribuição de sentimentos antropomórficos (colho a expressão em Fausto Cunha, um de seus mais prestigiosos comentadores, nas dobras da segunda edição – Valer, Manaus, 1988): até a crítica aos políticos; até o erótico! – na peça intitulada “O Instante da Açucena”. Vale recordar que os contos de Alameda foram saudados e aplaudidos por outros respeitados escritores, como Octávio de Faria, Carlos Drummond de Andrade, Homero Sena, Santiago Naud, José Augusto Guerra.
Ao gênero narrativo tornaria a Autora em 2016 e 2017, com as crônicas-contos de Mínimas e Trasanteontem. Prosa anterior a essas é a de Sobre Escritos – Rastros de Leituras, ensaio e crítica, pela Editora da Universidade Federal do Amazonas (Manaus, 2015).
O gênero do livro que se seguiu a Alameda, todavia, foi o poético, ao fim de 16 anos de vazio editorial. Ponto de Cruz (Cátedra, Rio, 1979), em compensação a mais de um lustro sem sua voz límpida, trouxe-nos um dizer poético maduro e rico, despojado de excessos verbais, alheio a experimentalismos desumanizantes, mas, ao contrário, poderoso em termos de mente, alma e comunicabilidade. Uma já bem delineada poética, em que se nos oferece o lirismo amoroso em largo espectro: amor filial, amor materno, amor de amante e de amiga – amor e seus universos, em que se inclui um erotismo sem ambages, mas isento de qualquer sombra de vulgaridade; o cotidiano, especialmente o dia a dia do lar; a metapoesia; tempo-vida-morte, configurando um lirismo filosófico-metafísico de raros e delicados contornos. Astrid sabe fisgar em tudo, ou em um nada, o veio essencial de seu poema, e o garimpa, o minera, e o refina, e o submete a uma alquimia reveladora, se não sublimativa. Uma poesia altamente sensível, mas nunca ingênua. Amalgamada à carga emocional, correspondente carga pensamental. Ao fim do volume – apresentado por outra bela poetisa, Lélia Coelho Frota –, uma prefiguração de Visgo da Terra, que sairia em 1986, ampliado e reformulado, pela Puxirum, de Manaus. A partir desse Ponto de Cruz, preenchendo o fim de século, entrega ao público uma série igualmente admirável: Torna-Viagem (Edições Pirata, Recife, 1981; prefácio de Ivan Junqueira); Lição de Alice (Philobiblion, Rio, 1986); Rês Desgarrada, Thesaurus, Brasília, 1994; palavras iniciais de José Santiago Naud); Intramuros (Prêmio Helena Kolody, Curitiba, 1997). Em 1998 saiu De Déu em Déu – poemas reunidos (1979-1994), pela editora carioca Sette Letras.
O lirismo de Astrid pode fluir com a singeleza de uma cantiga, como neste excerto de “Palavras Abstratas” (PC, p. 28): “Quando eu dizia amor / um oceano se desatava / por trás dessa palavra. / Quando dizias amor / um cálice ofertavas. Ou pesar como uma salmodia pessimista, não obstante bela, em versos assim: Uma serpente se enrodilha / entre relíquias ao relento: / fustes cortados em tambor / folhas de acanto tangidas / de vento gravado na pedra. / (…) No ar tudo o que existe além / do vento é a mensagem triste / do nada rondando o homem (TV, 51); pessimismo adiante desmentido pelo olhar / faminto de infinito (p. 68). Pode, essa poesia, oferecer uma dureza emblemática: Rasgar a máscara / escancarar a cara / apesar da escara (LA, 31); o inventivo desta laranja: Sol líquido embalado / para a sede do homem (“Natureza Morta”); ou a doçura ecumênica de “Périplo Próximo”: Entre paredes percorro o globo / e apalpo florestas atrás dos móveis / e adivinho o silêncio nos vidros / e a cinza dos astros na poeira. / Por menor que seja o percurso / do mundo entre quatro paredes / amor maior é o que me move (I, 2.ª ed., Valer, 2011; pp. 13 e 29).
O século XXI tem-na visto mais que dobrar sua fortuna editorial, sem jamais decair dessa alta tensão poética. De Rasos d’Água (Valer, 2003) separo esta breve amostra: Já disse e repito: / aos dezoito, saudade / era trissílabo paroxítono / e nada mais. / Hoje, saudade é sangue / sangria desatada / correnteza no mangue / de mim mesma. Sobre Jaula (Editora da Palavra, Rio, 2006) diz a própria Autora, em dedicatória, ser o seu “zoológico íntimo”. Ante-Sala (Bem-Te-Vi, Rio, 2007), comenta Igor Fagundes, na apresentação, “torna imanente, ‘ao rés do chão’, a experiência de pensar o enigma da finitude”. Em Palavra na Berlinda (Ibis Libris, Rio, 2011) impera, reflexiva, a metapoesia. A propósito de Infância em Franjas (Kd, Rio, 2014), resgato anotação da época: são textos que, pelo memorialístico, pelo narrativo, podem ser lidos como pequenos contos; e que, pelo ritmo, pelo sintético, pela intensidade de expressão, conformam bela e definitiva poesia. Finalmente – até agora – vem Íntima Fuligem (Valer, 2017), de que Alexei Bueno diz, prefaciando-o, demonstrar “a discreta, persistente e silenciosa força da poesia lírica entre nós, esse mais que requintado dos gêneros literários”. Acrescentem-se Zé Pirulito (infantil, de 1982), os bilíngues Cœur sans Frein – poèmes traduits du portugais (Brésil) par l’auteure (Les Arêtes) e Cage (tradução de Alexis Levitin; Host Publications, Austin, 2008), mais Antologia Pessoal (Thesaurus, 2008) e 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Galo Branco, Rio, 2008), e teremos diante dos olhos o generoso panorama de sua obra. (Uma olhada nos centros editoriais nos mostra a penetração nacional da Autora – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, Sul –, se não mesmo internacional.)
No correr desta nossa gratificadora releitura da poesia astridiana – em prosa e em verso – recolhemos alguns mínimos exemplos de sua arte, para regalar o leitor eventualmente ainda não chegado e – por que não? – o já familiarizado a ela. Neste fim de conversa, apraz-me repetir aqui uma de suas iluminações que mais me tocam, o fragmento final de “Torna-Viagem” (TV, 78):
Atroz pranto de exílio
lágrimas tigres eufrates
com que inundamos os rios
de nossa ubíqua babilônia
pois dia a dia no desterro
enterramos à sombra de sal-
gueiros o corpo órfão de sopro
enquanto sem bagagem de carne
a alma transpõe azuis soleiras
– derradeira viagem de regresso
à matriz entre as estrelas.
Embalados nessa música sutil, podemos concluir nossa viagem lírica, na certeza de que iterá-la passa a ser uma necessidade. Com o vinco da reflexão ou vestida de leveza ascendente, com o timbre velado de um indagar ora ansioso, ora expectante, entre o cotidiano e o eterno, em serena gravidade ou serena alegria, uma essência se mostra onipresente, e nos contagia de altitude, em toda a literatura de Astrid Cabral: o sopro instaurador da Poesia.