Para arder até ao fim
De dia, pernoitávamos em pequenos motéis, esquecidos entre as montanhas, longe de tudo. Só viajámos de noite, quando soprava a frescura. Apenas o vento e a escuridão da estrada, serpenteando entre as montanhas, nos faziam companhia, à medida que o automóvel engolia sofregamente os traços brancos do asfalto.
Para enxotar o sono, ligava o rádio, com o volume baixinho. As estações que sintonizava pareciam perdidas no tempo. Os DJs daquela região passavam baladas de amor com trinta ou quarenta anos, celebrizadas por estrelas musicais há muito extintas.
“Por vezes, ponho-me a pensar”, disse a rapariga, enquanto rebuscava no fundo de um saco de pipocas.
“Em quê?”
“Nas canções que nunca escutarei. Nos filmes que vão estrear no próximo ano, sem que eu os veja. Nos poemas que irão ser escritos depois de eu partir.”
“Não digas tolices”, suspirei. “Combinámos que não falarias dessas coisas.”
A jovem encolheu os ombros, resignada, abriu o vidro e estendeu o braço, lançando as últimas pipocas ao vento. Depois, largou também o saco.
Três dias antes, fizera-lhe uma promessa; agora, duvidava se conseguiria cumpri-la. A cada hora, notava-a mais pálida, transparente como papel vegetal. Sentia uma náusea contínua e o seu estômago já não suportava mais nada. Só se alimentava de gulodices e do leite com chocolate comprados nas estações de serviço.
“Achas que vais aguentar-te?”, perguntei-lhe.
“Sim, claro.”
“Tens a certeza?”, insistia eu. “Ainda podemos voltar para trás.”
“Nem penses”, abanou a cabeça. “Quero vê-lo.”
Com frequência, a rapariga adormecia logo que retomávamos a viagem, no banco de trás do automóvel. Tirava a peruca, libertava-se das sapatilhas, e embrulhava-se numa manta, a cabeça poisada sobre as mãos. De quando em quando, eu verificava o seu sono, através do espelho retrovisor. Era profundo, no embalo monótono das curvas e contracurvas da estrada.
Vira-se que fora bonita, apesar daquela magreza doentia, do rosto macilento, dos olhos desesperadamente vivos, incapazes de se renderem ao fim. Recusara-se a definhar numa cama de hospital, o corpo afogado em químicos, na espera inexorável, enquanto as paredes do tempo se esmagavam sobre si.
Queria vê-lo: não tinha outro desejo.
A rapariga aparecera-me há três noites, no café de uma estação de serviço onde eu parara para abastecer e dessedentar-me com uma cerveja. Teria dezasseis anos, talvez dezassete. Era alta, vestida com uma camisola, saia de algodão, sapatilhas brancas e uma pequena mochila de sarja. Aparentava aquela palidez amarelada dos doentes em quimioterapia, o corpo quase raquítico, os olhos de quem já nada tinha a perder. Respirava a custo. Parava para ganhar fôlego entre as frases, como se as estivesse a pontuar. Estendeu-me um rolo de notas para custear a boleia.
“Para onde?”, perguntei, sem aceitar o dinheiro.
“Quero ir vê-lo”, anunciou, decidida. “Antes que seja tarde.”
“É longe. Três dias de viagem, pelo menos…”
“Eu sei. Mas levas-me?”
“…e estás doente.”
“Por favor”, implorou, com voz sumida.
Hesitante, assenti. Também eu ansiava vê-lo.
Na primeira noite, no lugar do pendura, a jovem quase não dormiu, para me fazer companhia. Uma lua enorme, cor de leite, banhava a estrada, com uma luz surreal.
“Algum dia ouviste falar da Laika?”, perguntou-me.
“Sim, a cadelinha vadia que os soviéticos mandaram para o espaço.”
“Mmm. Consegues imaginá-la na Sputnik 2? Sozinha, no meio das estrelas?” Fez uma longa pausa. “Às vezes, pergunto-me se a morte será assim”, prosseguiu. “Se ficamos no espaço, a olhar lá de cima para toda a gente que conhecemos quando éramos vivos. Até um dia deixar de haver pessoas na terra. Deve ser triste, a eternidade. E solitária. Assusta-me.”
Ficámos em silêncio, a meditar, concentrados na estrada e na floresta que a ladeava, a brilhar como jade.
Na segunda noite, demos boleia a um jovem um pouco mais velho do que a rapariga. Era alto e magro, o rosto marcado pelo acne, os modos polidos de quem pretende agradar. Desejava alistar-se no exército, escapar de uma vila no meio do nada, onde certamente definharia durante décadas labutando num emprego monótono. Tudo o que possuía, transportava na mochila, e era tão pouco. Tive de lhe oferecer o jantar, porque os cêntimos que estendeu na palma mal davam para um hambúrguer e uma Coca-Cola.
Quando a rapariga se deitou no banco de trás do carro, para dormir, e tirou cuidadosamente a peruca, ele pareceu assustado. Não reparara ainda no cabelo ralo dela, nem notara que se encontrava doente. Esperou até que ela tombasse no sono, para me perguntar, em surdina:
“O que tem a miúda?”
“Fome”, respondi-lhe. “Uma fome do tamanho do mundo.”
Deixámo-lo na periferia de uma grande cidade. Dei-lhe uma nota, o suficiente para tomar uma refeição e comprar um bilhete de autocarro até ao posto de recrutamento. A jovem abraçou-o e desejou-lhe:
“Boa sorte.”
“Para ti também”, replicou ele. “Espero que o vejas.”
Estávamos todos em fuga.
Ele, de uma vida igual à dos pais; ela, do hospital de onde jamais sairia viva; eu, daquele som que escutava dia e noite, um perpétuo murmúrio, implorando-me que escapasse. Mesmo quando cerrava os olhos com força, não conseguia vislumbrar futuro algum. Não tinha âncoras: não pertencia a lugar nenhum, nem a ninguém. Só a estrada, quilómetros e quilómetros de asfalto, gritava por mim.
Chegámos à praia de madrugada, pouco depois de o nascer do sol, não eram ainda seis horas. Estacionei o automóvel na berma do caminho, junto ao areal, numa zona de cascalho, terriça e catos. Ficámos uns momentos em silêncio, a contemplar a pequena baía, o oceano tingido pelo vermelho da aurora, as ondas espraiando-se em espuma.
“Aqui estamos”, murmurei.
“Cheguei a pensar que nunca o iria ver.”
“Prometi-te que sim.”
Sorriu-me, em resposta. Abri o vidro da janela do meu lado. Invadiu-nos o som fresco das ondas enroladas no vento e o piar aflito das gaivotas. De súbito, encontrávamo-nos noutro mundo, após três longos dias de estrada, paragens em dois motéis fantasma, perdidos na paisagem monótona das montanhas.
Saí do carro, ainda tonto de cansaço. Conduzira toda a noite e a fadiga pesava em cada fibra. Espreguicei-me longamente. A brisa marítima era morna e adivinhava-se um dia cálido. Abri a porta do lado da jovem, que passara parte da noite sentada no lugar do morto. Tentou erguer-se, com um gemido, mas as forças já não eram suficientes.
“Consegues?”
“Não. Ajuda-me”, balbuciou.
Notei-a ainda mais pálida do que na noite anterior. Uma fina camada de transpiração cobria-lhe a testa. Com um gesto irritado, arrebanhou a peruca e pousou-a sobre a manete das mudanças.
“É o sítio ideal para ela”, gracejou.
Cuidadosamente, ergui a rapariga nos braços. Agarrou-se ao meu pescoço, como uma criança com pavor de cair. Pesava tão pouco que quase conseguia escutar o seu coração, batucando através da carne. A cabeça dela, encostada ao meu queixo, era fria. Cheirava a sono e a transpiração doce.
Não vislumbrei vivalma no areal, apenas um bando de aves disputando a carcaça de um peixe. Era demasiado cedo até para os atletas madrugadores correrem pela praia. Caminhei lentamente, receando tropeçar. Poisei-a sobre uma pequena elevação e sentei-me a seu lado. Tirei as minhas sapatilhas e as meias e ajudei-a com as dela. Foi bom sentir a areia entre os dedos. O vento fazia-lhe esvoaçar os poucos cabelos tão loiros, quase brancos.
“Obrigada”, disse-me.
Parecia tranquila, pela primeira vez desde o início da viagem. Levou os joelhos ao queixo, em posição fetal, e cerrou os olhos. Imaginei o sol a atravessar-lhe a camisola azul, recarregando-a com minúsculas setinhas de energia. Abracei-a, medindo-lhe a respiração difícil. Ficámos assim uma boa meia hora, deixando o vento diluir a fadiga da jornada.
“Levas-me agora?”, pediu-me.
Carreguei-a, ao colo, até ao mar.
“Está gelada”, queixei-me, ao entrar nas ondinhas.
Caminhei pela baía, até ficar com a água pelos joelhos, as calças de ganga coladas ao corpo. A brisa salgada picava-me o rosto. Baixei-a vagarosamente, como se oferecesse uma dádiva ao mar. Um arrepio percorreu-a, soltou um gritinho e retraiu-se.
“Queres que pare?”
“Não, não quero.”
Dei mais uns passos, quase me desequilibrando, no leito instável do oceano. Poisei o corpo dela na superfície. A custo, a adolescente encheu o peito de ar e reteve-o, sempre de olhos fechados. Flutuava, frágil, como uma folha à superfície. Depois, abriu os braços, estendendo-os sobre a água, a camisola colada ao corpo magro, revelando as costelas, a saia de algodão negra ondulando, os pés pequenos e brancos entre a espuma. Pediu-me:
“Não me largues, antes de chegar a hora.”
“Nunca.”
“Prometes?”
Não lhe respondi. Uma gaivota lançou-se a prumo contra o céu cor de acetileno, como se quisesse atravessar o sol e arder. Contemplei-a longamente. Imaginei como seria subir, subir, subir, sem parar e, de lá de cima, contemplar-nos, a mim e à rapariga, até não sermos mais do que dois pequenos pontos. Tão frágeis, tão inúteis, tão solitários, brilhando sobre a água.