HANNAH ARENDT: HUMANIDADE
No discurso pronunciado por Hannah Arendt na entrega do Prémio da Paz da Associação Alemã de Livreiros ao filósofo Karl Jaspers (1958), a teórica política referiu-se ao modo como o seu mestre – educador – e amigo, na esteira de Imannuel Kant, compreendera a “humanidade”: “a personalidade válida que, uma vez adquirida, o homem jamais perde, mesmo que todos os outros dons do corpo e do espírito sucumbam ao poder destruidor do tempo”[1]. A humanitas – termo forjado pelos romanos, sem equivalente na terminologia grega – não se adquire na solidão, nem na entrega da obra ao público; só a alcançam aqueles que empenham a sua vida e obra na incursão do domínio público, arriscando-se a revelarem algo que não é “subjectivo” e que, por isso mesmo, não está nas suas mãos reconhecerem e controlarem. A humanidade é, assim, pensada como um corpo unitário em comunicação, uma aptidão à “mentalidade alargada”; a capacidade para nos colocarmos no lugar do outro, para pensarmos em conjunto. Neste sentido, o esforço de todos aqueles que em “tempos sombrios”[2] ousaram participar na vida pública, pela palavra falada ou escrita, foi estimulado pela esperança em preservarem um mínimo de humanidade num mundo inumano, como forma de resistência à estranha realidade da “ausência” de mundo.
Os vínculos que ligam os indivíduos de forma livre e espontânea perfazem o mundo comum, sem o qual perdem as capacidades de pensar, agir e falar em nome próprio. É nesse espaço comum que revelamos quem somos. Como salienta Arendt, a perda de mundo, quer pelo isolamento total, quer pela imersão na sociedade de massas, torna-nos seres privados – “privados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles”[3]. A prossecução de humanidade depende da proteção e iluminação do mundo comum, sem o qual não passaríamos de sonâmbulos, seres a caminhar para a morte – como se o nosso olhar sobre as coisas confluísse no mesmo prisma e a história de cada um fosse uma cópia de qualquer outra, invariavelmente a mesma. Distintamente da terra, ou da natureza, o mundo é um artefacto humano, perfaz-se “entre-os-homens”, no espaço da pluralidade; e “como todo intermediário, (…) ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens”[4]. Tornando-se inumano sempre que ruem os seus pilares – os pilares da verdade que são também os da ordem política – e com eles a garantia de durabilidade e permanência[5].
Ao longo da sua obra, especialmente desde As Origens do Totalitarismo (1951), Hannah Arendt evidencia a distinção entre humanidade (humanity), ou “qualidade do que é humano”, e “género humano” (mankind). Enquanto mankind é uma realidade natural e objetiva pertencente à espécie animal humana, humanity é uma qualidade que emerge nas relações que os homens estabelecem entre si. Ou seja, se é pela partilha de uma série de atividades que pertencemos ao género humano, é pelo modo singular com que comunicativamente compartilhamos o mundo com os outros que revelamos a nossa humanidade. Esta diferença fundamental levou Arendt a associar o género humano à compaixão, que tem por deformação o sentimento de piedade, e a humanidade à amizade.
Como Arendt destaca em “A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamentos sobre Lessing”, Rousseau considerou a compaixão – “uma repugnância inata (…) ao ver sofrer um outro ser humano”[6] – e não a razão, como “a natureza humana comum a todos os seres humanos”[7] e, por isso mesmo, “como o fundamento de uma relação humana natural autêntica”[8]. Substanciada na abertura do coração do sofredor aos sofrimentos alheios, a magia da compaixão é emocional ou sentimental; e o sentimento que corresponde a esta paixão é a piedade. Como sentimento, a piedade tende a deleitar-se em si mesma e, consequentemente, a enaltecer o sofrimento alheio que está na sua origem – a linguagem da piedade, ilustrada no imperativo “Par pitié, par amour pour l’humanité, soyez inhumains!”[9], indicia a sua apetência, enquanto fonte de virtude, para ser mais impiedosa que a própria crueldade – ou seja, para a antítese da compaixão.
Recrutar a compaixão como instrumento de revolta contra uma sociedade alheia ao sofrimento decorrente da miséria e pobreza mais profundas, como fez Rousseau na sua época, constitui um erro crasso. Logo à partida, porque meramente sentimental a compaixão é incongruente e insignificante em termos políticos – como escreve a teórica, “a compaixão abole a distância, o espaço terreno entre os homens onde se situam os assuntos políticos, ou seja, toda a esfera dos assuntos humanos”[10]. A compaixão, tal como o medo (“princípio antipolítico no interior do mundo comum”[11]), é um afeto e porque puramente passiva inviabiliza a ação – é por piedade que somos atraídos para os fracos. Mas foi por solidariedade, e não por piedade, que os homens puderam estabelecer deliberada e imparcialmente uma comunidade de interesses com os oprimidos e explorados abarcando toda a humanidade.
Rousseau, como de resto a Revolução Francesa que se apoio nas suas ideias, compreendeu a humanidade sob a forma de fraternidade – a humanidade manifestou-se como fraternidade aos desafortunados do séc. XVIII, aos miseráveis do séc. XIX e aos párias do séc. XX. A sua forma mais pura é o privilégio dos párias – a vantagem que têm sobre os outros, “de não terem de carregar o fardo de cuidar do mundo”[12]. É pela compaixão aos explorados e humilhados que os não humilhados partilham deste tipo de humanitarismo. Não obstante a importância dessa humanidade – na realidade não detetável no mundo, tal como concebido por Arendt – politicamente é insignificante.
A amizade, diferentemente da compaixão, expressa uma solidariedade ativa – uma solidariedade porque “o amigo apoia e defende, para o outro, um lugar no mundo que lhe viabilize a oportunidade de revelar quem é”[13]; e ativa por presumir a abertura para o outro. Na senda de Lessing, que em Natã, O Sábio apregoara a humanidade universal, Arendt considera a amizade como “o fenómeno central, o único em que a verdadeira humanidade se pode evidenciar”[14] – trata-se, como enunciado por Aristóteles na Ética a Nicómaco, daquilo que existe de mais necessário para viver e que tem no diálogo a sua essência; ou, de outro modo, do “laço que forma as comunidades”[15] . Nele “manifesta-se claramente a importância política da amizade e a humanidade que lhe é própria”[16] – o mundo torna-se humano quando objeto do diálogo, da discussão entre pares que com ela humanizam as coisas do mundo e aprendem a ser humanos. A esta humanidade os gregos chamaram de philanthropia e os romanos, ampliando os intervenientes do diálogo, viriam a chamar de humanitas – sobre o que esta traz de novo relativamente àquela, Arendt enfatiza a civitas, a concessão da cidadania romana a indivíduos das mais variadas etnias e origens.
Em Natã, O Sábio, Lessing alumiou quer o conflito entre amizade e humanidade, quer o conflito entre aquelas e a verdade. Como acentua Arendt, “a sabedoria de Natã consiste exclusivamente na prontidão com que se sacrifica a verdade à amizade”[17], pois a aceitação da verdade – única e absoluta, no sentido filosófico e religioso – pressupõe o fim do diálogo essencial à amizade e, consequentemente, o fim da humanidade. Para Arendt, Lessing anunciou a antinomia entre verdade e humanidade, conquanto nada tenha dito sobre as suas implicações políticas. Um antagonismo trasladado, em pleno século XX, para a contenda da detenção de razão no pensamento orientado pela ciência – conquanto a consciencialização do cientista de que a sua verdade está permanentemente sujeita aos resultados de futuras investigações. Subsumidos ao dever de objetividade, os detentores da razão, tal como os detentores da verdade, “não se dispõem a sacrificar a sua convicção à humanidade ou à amizade em caso de conflito”[18]. Neste âmbito, relativamente ao passado próximo e à própria experiência de Arendt, o conflito de Lessing é ilustrado pela questão: por mais convincente que fosse a doutrina racial nazi valeria o sacrifício da amizade? A resposta a esta questão é previamente dada pela teórica no seguinte parágrafo de “A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamentos sobre Lessing”:
“(…) no caso de uma amizade entre um alemão e um judeu nas condições do Terceiro Reich, seria tudo menos um sinal de humanidade da parte dos amigos se dissessem: “Pois não somos os dois seres humanos?”. Seria uma simples fuga à realidade e ao mundo comum a ambos nesse momento; não estariam assim a resistir ao mundo tal como ele era. A lei que proibia as relações entre judeus e alemães podia ser desafiada, mas não por pessoas que negassem a realidade da distinção. Em harmonia com uma realidade presa no terreno sólido da realidade, uma humanidade em plena realidade da perseguição, os amigos teriam de dizer um ao outro: “Um alemão e um judeu, e amigos”. Mas onde quer que uma tal amizade tenha subsistido nesse tempo (…) e se tenha mantido em toda pureza (…) ter-se-á conseguido um pouco de humanidade num mundo tornado inumano”[19].
Na medida em que proporciona o locus de exteriorização da personalidade do amigo, a amizade preserva a diversidade e pluralidade humana e, com ela, a liberdade – que na terminologia arendtiana é co-originária da política. Como acentuado por Arendt, o equivalente mais próximo da personalidade é o daimon grego, o espírito guardião que acompanha cada homem ao longo da sua vida e que “só pode manifestar-se onde exista um espaço público”[20] – como assinalado por Jaspers, foi essa voz interior que impediu Sócrates de participar na vida política[21].
Aristóteles ensinou-nos que a amizade implica o reconhecimento dos outros, o estabelecimento de vínculos – é ela e não a justiça, como sustentara Platão em A República, o vínculo da comunidade[22]. A conceção arendtiana de comunidade, colocando a ênfase na ideia de “comum” (koinon) e suas componentes, “mundo comum” e “senso comum”, não é tanto conclusiva quanto indagativa[23]. É ao falarmos do mundo entre nós que ela ganha solidez e realidade – a pluralidade de perspetivas sobre o mundo enriquece-o, dando-lhe comunalidade. A comunalidade do mundo vê-se ameaçada, por um lado, pela política da mesmidade – em que convergem a comunidade tradicional e o totalitarismo; e por outro, pelo individualismo liberal que enclausura o indivíduo dentro de si-mesmo e está na origem – tal como o totalitarismo – da comunidade homogeneizada, da perda ou alienação do mundo – da “escuridão do coração humano”[24].
No sentido do mundo comum arendtiano, comunidade e indivíduo não são antagónicos – a comunidade política não é a priori dos indivíduos, da difusão pessoal da pluralidade de pontos de vista e opiniões, e tem por desígnio fazer justiça a estes de forma a estabelecer um mundo comum. A comunidade é, assim, uma construção ou artefacto que os cidadãos devem manter ativamente pela praxis e lexis. Como alternativa promissora ao individualismo liberal, à comunidade comunitarista e à sociedade totalitária, Arendt sugere a amizade cívica ou política – como escreve, “o elemento político da amizade consiste no facto de no diálogo verdadeiro cada um dos amigos é capaz de compreender a verdade contida na opinião do outro”[25]. A amizade está, assim, relacionada com a “mentalidade alargada” – termo que traduz a máxima kantiana “pensar colocando-se no lugar do outro”, uma aptidão “que torna os homens capazes de julgar”[26] e constitui, para Arendt, a atitude política superior.
A amizade política ou cívica perfaz-se na partilha de opiniões, de olhares distintos sobre o mundo exterior; ou seja, cultiva a pluralidade e, com esta, tanto a diferença quanto a igualdade entre amigos – na medida em que se tratam de parceiros iguais na confluência de esforços para a constituição e manutenção de uma comunidade. E com isso mantêm uma relação horizontal e, na terminologia de Arendt, verdadeiramente política.
O mundo comum corre sérios riscos sempre que o senso comum – que opera “sobretudo no domínio público da política e da moral”[27] – e os seus juízos deixam de funcionar. Pois é pelo senso comum que apreciamos os dados dos nossos sentidos particulares por referência aos dados dos sentidos particulares de outrem; e que absorvemos e aceitamos uma tradição – como escreve Arendt: “Com os romanos, recordar o passado passou a ser uma questão de tradição, e foi no sentido da tradição que o desenvolvimento do senso comum encontrou a sua expressão politicamente mais importante”[28]. Consequentemente, sempre que os modelos tradicionais colapsam o senso comum atrofia, e com este definhamento o legado do passado, a comunalidade originária, “fica sob a ameaça do esquecimento”[29] . Quando as ordens políticas antigas se revelem disfuncionais, a preservação das tradições políticas valiosas depende da refundação das comunidades políticas – existe um compromisso entre a liberdade e o património da tradição, começar de novo e preservar. Trata-se de um antagonismo irresolúvel que carece ser equilibrado – se “começar de novo’ substancia a interrupção deliberada da continuidade, também é a própria essência da ação humana.
Na perspetiva de Arendt os regimes totalitários – quer o nazismo, quer o estalinismo – são originários da perda de senso comum, decorrente da rutura com a tradição, e confluem na destruição da humanidade. Edificada “sobre o pressuposto da redundância da humanidade e negação do sentido da vida”[30], a ideologia nazi preparou os homens tanto para o papel de “vítima” como de “carrasco”. Assente no antissemitismo, imperialismo e racismo, o sistema infernal nazi – profusamente ilustrado pelos seus campos de concentração – retratou a ideia de que a humanidade é supérflua, um mal radical.
Num mundo em que a vida humana é desvalorizada, ou mesmo desrespeitada, cada nascimento inaugura o milagre da vida. O facto de todo o ser humano ter nascido num mundo que lhe pré e pós existe, de ser um novo começo do mesmo, revela a aptidão intrínseca ao milagre da ação. A nossa inserção no espaço comum, pela ação, funciona como um segundo nascimento, como um recomeço em que revelamos “quem” somos e como sujeitos responsáveis na rede de inter-relações humanas. Fora do espaço comum a vida não é propriamente uma vida humana, tanto mais que o hábito de pensar – sublinhe-se, pensar em conjunto – é tributário da existência daquele – nele os homens explicam uns aos outros como o universo lhes (a)parece. Ao abolir o mundo “entre-os-homens”, o nazismo pôs em risco o pensamento, reservando o que é próprio aos homens – pensar – a uma elite. Subjugando-os ao processo catastrófico desencadeado pela sua ideologia, e com isso acelerando-o, tornou a humanidade supérflua, permitindo a emergência de um mal radical e humanamente indizível, indetetável no semblante do carrasco. Como salienta Arendt, “o pior mal é praticado por pessoas que nunca decidiram ser boas ou más”[31], que perderam o hábito de pensar, de ajuizar sobre as suas ações e que remetendo as suas histórias para o esquecimento silenciam as de outros.
Diferentemente dos “profissionais da filosofia” que, no encalço da tradição platónica, notabilizam a vida contemplativa em detrimento da vida ativa e, com isso, comprometem o pensamento como experiência do mundo, Hannah Arendt debruçou-se sobre as atividades humanas por excelência – labor, trabalho e ação – e considerou a intenção subjacente a cada uma delas nem idêntica, nem superior ou inferior ao desígnio central à vida contemplativa. Procurando compreender, por outro lado, a convicção profunda da época moderna, de que é pela ação se alcança a verdade e o conhecimento. Na sua perspetiva, reaver o sentido do homem, o sentido dialógico da humanidade, implica debruçarmo-nos sobre o espaço próprio ao relacionamento entre os homens, o qual prescinde da mediação dos objetos e da matéria e no qual se experimenta a liberdade; ou seja, o espaço próprio à ação – atividade política por excelência e que se perfaz na lexis. Pensar a origem do humano significa, neste sentido, indagar pelo “ser político”.
O carácter revelador da ação, como a faculdade de produzir narrações, e do devir histórico constitui a fonte de onde brota o sentido e a inteligibilidade que penetra e alumia a existência humana. A vida humana é compreendida como uma ação política revelada na linguagem de uma história – ou seja, recontar a vida constitui um ato essencial para se lhe dar significado. Por outro lado, é quando somos confrontados pela palavra de alguém que a nossa humanidade emerge. Deste modo, a ação política perpetua-nos como espécie e como um “quem”, o “eu escondido” em cada um de nós, atualizável no tempo da pluralidade específica dos outros. Esta capacidade de nos renovarmos, de começarmos de novo, expõe a liberdade conferida ao homem pelo nascimento. O mundo é sempre um deserto que tem necessidade daqueles que começam para de novo recomeçar. É nesta liberdade como possibilidade de a cada momento partirmos do zero, que assenta a nossa capacidade para o perdão e o compromisso – imprescindíveis à reconciliação do indivíduo com o mundo. Para Arendt a abnegação – a abertura ao outro – é “a condição prévia da “humanidade” em todos os sentidos da palavra”[32].
É no fechamento ao outro, visível na ausência de pensamento e incapacidade para julgar, que se enraíza a banalidade do mal característica dos regimes totalitários. Se essa foi a grande lição retirada por Arendt do julgamento de Eichmann em Jerusalém, carecia, porém, de uma fundamentação filosófica. As últimas reflexões de Arendt visaram precisamente clarificar o modo como a nossa faculdade de ajuizar, distinguir o bem do mal, o certo do errado, se conecta à nossa faculdade de pensar. É em Sócrates, pensador não profissional e figura paradigmático da conjugação entre pensar e agir, que Arendt começa por ancorar a sua reflexão. Como nenhum outro pensador do Ocidente – o mais puro deles – Sócrates ensinou-nos que o pensamento tem a ver com a dualidade do eu face a si mesmo, que a atividade de pensar consiste no diálogo silencioso do homem com a sua consciência, do homem que se faz acompanhar por si-mesmo. Trata-se de um diálogo entre amigos – eu e um outro eu – e que se mantém entre eles, a menos que se impugnem – como sublinha Arendt:
“Para Sócrates o critério decisivo do homem que diz com verdade a sua própria doxa é «que esteja de acordo consigo mesmo» (…). O medo de contradição resulta do facto de cada um de nós, «que [é] um só», poder ao mesmo tempo falar consigo próprio (…) como se fosse dois. É porque sou já dois-num-só, pelo menos quando tento pensar, que posso fazer a experiência de um amigo, para nos servirmos da definição de Aristóteles, um «outro-si-próprio» (…). Só alguém que tenha a experiência de falar consigo próprio será capaz de ser um amigo, de adquirir um outro si-próprio. A condição é que se entenda consigo próprio, que esteja de acordo consigo próprio (…), porque quem se contradiz a si próprio é indigno de confiança”[33].
A solidão do pensamento – frequentemente apreciada como apanágio e habitus do filósofo – é condição necessária do bom funcionamento da polis, pois “só aquele que sabe como viver consigo próprio é capaz de viver com os outros”[34]. Ao participarmos no diálogo da solidão, em que somos verdadeiramente nós próprios, não nos apartamos da pluralidade que é o mundo dos homens, a que se chama, genericamente, humanidade – como acentua Arendt, “os homens trazem consigo o sinal dessa pluralidade”[35]. Para Arendt a atividade de pensar, não obstante nos lançar temporariamente para fora da realidade, é indispensável ao mundo comum, pois não só nos confirma como aparência como nos permite desmascarar ilusões como a ignorância do mal. Ou seja, julgar realiza o pensar, resulta do seu efeito libertador.
Por oposição à solidão do pensamento, julgar, atividade política por excelência, pressupõe a pluralidade própria à “mentalidade alargada” – na terminologia kantiana, pôr-se em pensamento no lugar de todos os outros constitui uma das três máximas do sensus communis, de um sentido comunitário. Essa faculdade de nos colocarmos no lugar do outro, de convocarmos todos os juízos possíveis, põe em jogo a imaginação – a capacidade de representar um objeto ausente e, do mesmo modo, as opiniões dos ausentes, “dom do coração compreensivo”, ou “bússola interior” que nos permite referenciar o mundo[36]. Para Arendt a Crítica da Faculdade de Julgar de Kant, estabelecendo a ponte entre dois mundos incomunicáveis, a natureza (mundo da razão pura) e a liberdade (mundo da razão prática), teve a virtuosidade de mostrar que a faculdade de julgar e legislar, tal como a de pensar, não é apanágio de uma elite – a dos homens do Estado. Consequentemente, enquanto espetadores do mundo, testemunhando o que nele se passa, não nos devemos abster de sobre ele ajuizar – “o recurso a uma tal faculdade impõe-se, sobretudo, nas situações de crise ou de urgência, em cuja falta, à maneira de Eichmann, nos arriscamos a provocar o mal”[37].
Na perspetiva de Arendt é através do pensamento e do juízo que os homens se associam entre si, exteriorizando uma humanidade sem a qual não passariam de meros animais. Se renunciar a pensar é renunciar a ser homem, renunciar a ajuizar é renunciar ao passado, e com ele à memória, que só é compreensível à luz da imaginação. Mas sem amizade, ou seja, sem a consideração pela alteridade própria ao pluralismo do mundo comum, não existe o pensamento nem o juízo. Quando o mundo comum se encontra num processo de destruição é o pensamento e o juízo que repõem a necessidade da sua reconstrução ou fundação. Essa ligação entre amizade e pensamento, entre juízo e mundo comum foi, segundo Arendt, a grande lição de Sócrates.
Foi sob o pressuposto de que não nos devemos refugiar na “liberdade do pensamento” quando expulsos do mundo “entre-os-homens”, do espaço público, que Hannah Arendt ancorou as suas reflexões à experiência pessoal e à vida do século; habitando, por excelência, o espaço da humanidade. Arendt indagou o horizonte da ação e da palavra, o lugar próprio à experiência humana, aos homens, mantendo as suas obrigações perante o mundo. Resistindo à tentação de se refugiar na solidão do pensamento, que na realidade constituiu o oásis que lhe permitiu viver no deserto não como sua habitante, mas como um ser humano incontaminável, Arendt apreendeu, na senda do mestre Jaspers, que “propormo-nos responder perante a humanidade por cada pensamento significa vivermos nessa luminosidade que nos põe à prova a nós e a tudo o que pensamos”[38]. Sem sombra de dúvida, a sua obra reavivou o humanismo.
[1] Arendt, H. (1958a), “Karl Jaspers: Uma Laudatio”, in Homens em Tempos Sombrios, Lisboa: Relógio D’Água, 1991, pp. 87-97.
[2] A expressão “tempos sombrios” impressa no título da obra arendtiana de 1961 foi retirada do poema de Brecht “Aos que virão a Nascer” (in Poemas e Canções, Coimbra: Almedina, 1975: 245-247).
[3] Arendt, H. (1958b), A Condição Humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 10ª edição, 2007, p. 67.
[4]Idem, p. 62.
[5] Remetemos para Arendt, H. (1959), “A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamentos sobre Lessing”, in Homens em Tempos Sombrios, Lisboa: Relógio D’Água, 1991 [1961], p. 20.
[6] Idem, p. 22.
[7] Ibidem.
[8] Arendt, H. (1968]), Sobre a Revolução, S. Paulo: Companhia de Letras, 2011, p. 117.
[9] Idem, p. 127.
[10] Idem, p. 124.
[11] Arendt, H. (2005), A Promessa da Política, Lisboa: Lisboa: Relógio D’Água, 2007, p. 61.
[12] Arendt, H. (1959), p. 23.
[13] Aguiar, O. A. (2011), “A Amizade como Amor Mundi”, in O que nos Faz Pensar? , 28, p. 140.
[14] Arendt, H. (1959), p. 22.
[15] Arendt, H. (2005), A Promessa da Política, Lisboa: Lisboa: Relógio D’Água, 2007, p. 21.
[16] Arendt, H. (1959), p. 35.
[17] Idem, p. 37.
[18] Idem, p. 40.
[19] Idem, p. 34.
[20] Arendt, H. (1958a), p. 89.
[21] Veja-se Jaspers, K. (1964), Os Mestres da Humanidade, Lisboa: Almedina, pp. 26s.
[22] Veja-se, Arendt (2005), p.20s.
[23] Remetemos para Borren, M. (2006), “Community and Politics of Friendship in Arendt’s Work” in Cadernos de Filosofia. Hannah Arendt e o Político, Lisboa: Edições Colibri, 19/20, p.69-76
[24] Veja-se Arendt, H (1951), As Origens do Totalitarismo, Alfragide, Dom Quixote, 2018.
[25] Arendt, H. (2005), p. 21.
[26] Arendt, H. (1967), Verdade e Política, Lisboa: Lisboa: Relógio D’Água, 1995, p. 29.
[27] Arendt, H. (2005), p.40.
[28] Ibidem.
[29] Idem, p.41.
[30] Cabrita, M.J. (2001), “Hannah Arendt: O Mundo da Pluralidade e a Banalidade do Mal”, in Faces de Eva, 6, p. 30.
[31] Arendt, H. (1971), A Vida do Espírito, Vol. I, Lisboa: Piaget, 1999, p.198.
[32] Arendt, H. (1959), p.25
[33] Arendt, H. (2005), p.22.
[34] Arendt, H. (2005), A Promessa da Política, Lisboa: Lisboa: Relógio D’Água, 2007, p.23.
[35] Idem, p.24.
[36] Remetemos para Arendt, H. (1954), “Understanding and Politics”, in Essays in Understanding: 1930-1954, Ed. By Jerome Kohn, New York: Harcourt Brace & Company, 1994, pp. 322s.
[37] Courtine-Dénamy, S. (1994), Hannah Arendt, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 412.
[38] Arendt, H., (1958a), p. 92.