Música
Convoco o rumor das teclas de um piano
em sonata de beethoven.
E ouço o grito intenso do silêncio,
o vento enlouquecido,
um inaudível lamento,
uma luz no secreto rosto de deus.
É o coração seduzido
pela sublimidade da música.
Como se fora água pura
em diálogo com a terra fecundada.
Como se fora prece
a implorar o valimento da vida.
Atrás do vento
Ainda que não sejam lineares
os caminhos percorridos
já esquecemos aquilo que, em cada etapa,
foi tropeço, queda, viagem inacabada.
Fincamos os pés sedentários em avanços e recuos
até que o movimento da vida nos torna viajantes
e aventureiros sem recear distâncias.
Às vezes corremos atrás do vento,
numa espécie de estonteamento,
sempre próximos do começo
dos primeiros passos, à procura do lugar
onde fica a casa em que nascemos.
Hoje basta-me um muro de barro
para derrubar nele o som da minha voz.
Não sei se é de musgo ou de lodo
o rumor matinal do meu rosto
a reflectir a noite, longa de sossego,
por onde passou a luz sem me pressentir.
Neste instante pouco importa a vertigem do corpo.
O lado azul da vertente é a minha obsessão
e sinto os lábios porosos, como um chão térreo,
à doçura espessa dos morangos.
Eu sou o lugar onde, inadvertidamente, me refugio.
No fundo das ruas que percorro existe, agora,
a linha transversal do meu poema branco,
e posso ver a limpidez total do perfume
que as madressilvas entornam no ar
quando roçam os cabelos das crianças.
Gastei as mãos amarrando barcos à infância.
Agora, no lugar da minha sombra,
cresce uma praia onde as gaivotas
aguardam que o sol
lhes devolva o brilho das pupilas,
ou as cegue para sempre.