“Uma casa no outro lado do mundo” de Victor Oliveira Mateus
Há uma consciência vigilante, em vias de desaparecer e aparecer porque estamos em face da essência da poesia: “é uma casa com pedras de muitas cores/nela todos os dias nasço/morro/mas sempre recomeço” (“a casa”), relacionando-se, por um lado, a isotopia da casa com o título do livro, e o poema em referência – o estado de consciência da poesia- com as epígrafes, que vão ser linhas que se desenvolvem ao longo do livro.
O caminho está inacabado para qualquer ser humano, por isso cada ser está meio perdido. O estatuto dos significantes e dos significados remete para situações-charneira, limiares, caminhos quase estáticos, porque a casa é que está plantada no caminho. Há diferentes planos de sentido que se permutam, se acumulam, ultrapassam a riqueza da linguagem poética, constituem um espaço de abertura para o cosmos, uma iluminação, o sujeito não está diluído numa sede de nadas, afirma-se, muitas vezes em intensidades rítmicas, assonâncias, campos significativos rítmicos que fazem parte não só de uma prosódia levada a um ponto de ontologia da própria poética, mas de um desdobramento semântico que nos estarrece: “mas/diz-me/se me transformar/como poderás depois lembrar-me” ( “o espelho”). A multissignificação semântico-sintáctica e morfológica que é um desdobramento: uma multissignificação irredutível: lembrares-te de mim ou lembrares-me a mim abre já este livro ao infinito. As palavras que começam com letra minúscula nos títulos são estrelas que velam a escuridão cosmológica, tanto mais que não existem pontos finais nos textos. A poesia é o corte com o mundo real; senão, seria um discurso corrompido pela usura do tempo, aqui provoca-nos, não pelo seu carácter omnipotente, que o sujeito de enunciação veda – “contudo à noite/ quando se vê protegida/ provoca-me/ olhares palavras desejos/ mas disso/ não falarei eu nunca” ( “anatomia incompleta”): há alguma coisa ainda mais secreta do que a poesia, uma iluminação, um ponto de destaque existencial, e nisto, nesta mestria, evidencia-se que o poeta é magistralmente detentor das chaves da poesia. Ele controla-a.
Nunca se dá a queda de Ícaro, antes cada vulto de fosforescência iluminadora, cada renascimento pós-poético – há uma casa e há a casa-poesia, confundidas, sintónicas, porque todo o livro é desejo plenamente conseguido de abertura a outra dimensão – nos faculta a dimensão do discípulo, do anonimato a que acedem os sábios, na diluição do universo, nos átomos, nas partículas que estão em gravitação por todos os pulmões de respiração desta poesia. A poesia é experiência, é iluminação, rasgo, alteridade do mundo, espaço transicional que deixa passar a luz que as coisas reflectem. Pode-se dizer que há um tecido oximorístico, não de San Juan de La Cruz, porque esse está carregado de carga mística, mas afim à poética de Roberto Juarroz, por exemplo, porque, tal como em Juarroz, (e devo dizer que estou a assinalar afinidades, não influências) só uma linguagem de uma obscura transparência nos pode dar a imagem do “outro lado”. Repare-se no sintagma que constitui o título:” Uma casa no outro lado do mundo”- não no sentido teológico, mas na superação do sensível e do inteligível, que pode levar ao nada, ao vazio búdico, lato sensu, porque esta é também uma poesia da cidade, da casa, da reflexão sobre a escrita, dos enigmas, do grande caminhante da viagem interior, isotopias que se inscrevem nos vários poemas. Refira-se a existência de um terceiro mundo semântico-existencial, ontológico, que está para além da dualidade: ” não/para minha casa nunca venho/de paraquedas/ talvez por isso (creio)/ me ficou este olhar/cuja fonte me persegue/com palavras que não entendo “ (“arte poética VI”), e que é a realidade do inatingível, da felicidade perdurável, de um terceiro mundo que não é a síntese dialéctica mas a projecção pura no universo, onde todas as palavras estão desbaptizadas, todo o nome é um “transnome” (conceito que vou buscar à poesia Juarrosiana), e todo o mundo é um terceiro mundo, um outro lado, ainda mais radical do que no caso do título: “e mudar de casa/não é mudar de caminho/há sempre qualquer coisa/que vem agarrada a nós”(“perseguição”).
No poema “relendo maría zambrano”, o coração é um soro, a poesia-coração, metáfora de metáfora e não metáfora, como o poema afirma, supra-metáfora, que é a raiz das metáforas. Inalcançável, intraduzível, qualquer clareira, para utilizar a linguagem zambraniana, onde o poeta pousou, com a gravidade dos nomes, um trilho, uma passagem, qualquer coisa que deixa rasto, se torna presença eterna, coração é casa. Um estado de permanência na perfeição. Impermanência no mundo. Não será a poesia a conjugação oximorística de um não e de um sim? Os poemas “a palavra”,” naufrágio” e “relendo maría zambrano” recuperam um discurso quase argumentativo (a experiência da poesia como totalidade) com o advérbio de negação empregue, por vezes, anaforicamente, ou o verbo “libertar”, que é uma forma de rejeição do antes, para uma terceira dimensão se afirmar, para além do não e do sim.
Os poemas não falam apenas de coisas abstractas. O poeta está enraizado na cidade, com um abismo que o chama instantemente (“cenário”) e em “esta noite sonhei com schubert” há a reflexão sobre o mundo social. Diria que cada isotopia não é uma simples isotopia mas uma reflexão já, um segundo grau para cada elemento da linguagem, que, em todos os sentidos, ilumina os textos como um-ser-no-mundo, uma receptividade e aceitação. Não é passar do mundo para a palavra, é redimensionar tudo, com palavras que são uma fonte onde bebem as palavras.
Não raras vezes, há um humor levado às raias do absurdo, mas que não é um humor gratuito que faça perder o sentido, por exemplo nos poemas “zenão de cítio”, “o narciso do século XXI” ou “a castro no realismo de almodóvar. Não há um excesso de nonsense, há uma experiência-limite sem desastre, o que poeticamente é muito difícil de conseguir.
Invoco, para o poema “dos infernos múltiplos” com que termino, a poética de Hugo Mujica que se pauta por uma aceitação , um ascetismo verbal, o tema da alteridade, analisa a “mitologia do poeta” na obra de Heidegger, e transcrevo parte do poema que tem um sujeito elocutivo que fala para um “tu” indeterminado, universal: “não digas nada/serena-te/os infernos são sempre individuais//aceita o que te calhou/e no fogo do grande ciclo/te vai norteando/sem que saibas como nem porquê”.
Rilke, nos poemas finais, expressa que só o poema pode ser o espaço vibrante e receptivo para que se dê a transformação da visibilidade das coisas na sua íntima invisibilidade. Eis-nos perante um livro que, na sua totalidade, opera a passagem do visível para o grande invisível.