menu Menu
A problemática de Deus em José Saramago
Por Miguel Real Publicado em Ensaio, Literatura, Portugal a 2 de Março, 2021 1051 palavras
Homenagem a Fernanda Angius Anterior Quatro poemas do poeta romeno Ion Barbu traduzidos para português Seguinte

Caim ou a natureza de deus

Caim (2009), o último romance publicado em vida do autor, um pequeno volume mas singular e precioso por nele Saramago exprimir de um modo absoluto e transparente a sua visão do mundo e a sua oficina de escrita. Caim é igualmente o cúmulo da “fase da pedra”, iniciada em Ensaio sobre a Cegueira (1995), na qual são minimizados os contextos históricos, valorizados na anterior fase, a da “estátua”, que atravessa toda a sua obra da década de 1980.
Em Caim, aprofunda-se um tema de certo modo obsessivo na sua obra: a natureza de deus, escrito com minúscula inicial neste romance, também conhecido pelo “senhor” (primeira frase). Em Terra do Pecado (1947), o Dr. Viegas, ateu e iluminista, considera deus como inexistente, mas auxiliar precioso do homem, suavizando-lhe os tormentos da vida (visão naturalista, evolucionista e positivista); em Levantado do Chão e Memorial do Convento, deus, representado pela Igreja Católica, tinha estabelecido uma aliança com os latifundiários do Alentejo e do Ribatejo e com a Corte de D. João V para conter a revolta dos trabalhadores e justificar a vida miserável dos pobres (visão marxista); em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), a visão marxista claudica e desaparece a naturalista. Deus, mais do que inexistente, que pressuporia ser uma ideia inócua, deus é um ser ideal mas ativo, apresentado como uma figura pavorosa, agradado de sacrifícios e tormentos, autor de ações malignas (a matança dos meninos de Belém, por exemplo). Para a humanidade, deus torna-se uma ideia bem real e o fundamento de todo o mal, tendo como único objetivo, a que submete a criação do próprio diabo (um seu alter-ego), a ampliação do seu poder. Para tal, martiriza o seu filho, Jesus, com o único fito de engrandecer e expandir o seu poder sobre os homens, criando uma nova religião (o cristianismo), que se estenderia por todo o mundo, deixando de ser o deus dos judeus para se tornar o deus de toda a humanidade. Em In Nomine Dei (1993), Saramago defende que na Europa Moderna as igrejas católicas e protestantes (anabatistas) refletem a verdadeira face de deus como criador de todo o mal.
N’O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e In Nomine Dei deus é apresentado como o autor do mal, é, ele próprio, uma pura representação do mal, mal ontológico, antropológico, mal social, mal individual – dele emanaria a totalidade do mal, concluindo-se que, criado à sua imagem e semelhança, o homem é, por natureza, um ser malévolo. No homem, o mal e o desejo do mal seriam permanentes e o bem um estado provisório, um equilíbrio de forças que neutralizaria e até dominaria o bem durante um certo período. O bem é um arranjo que se mantém, um equilíbrio instável que perdura, um estado donde advêm sentimentos positivos, mas, sob e sobre ele, o mal encontra-se presente, não acidentalmente, mas essencialmente. A origem do bem reside no homem, a do mal em deus. Neste sentido, para Saramago, a religião não seria já e apenas o marxista “ópio do povo”, mas, sobretudo, a expressão condensada dos modos arbitrários de se cometer o mal e a Bíblia cristã o catálogo, se assim se pode dizer, da totalidade dos males possíveis, narrados alegórica ou simbolicamente. É justamente este inventário que, percorrendo o Génesis, Saramago faz em Caim, demonstrando, assim, que a Bíblia, ainda que livro sagrado para a nossa civilização, não expõe uma teoria religiosa do bem, mas o registo de todos os males possíveis, atribuídos à plenipotência de deus ou do senhor (no sentido de proprietário da vida humana e seu pleno reitor).
Neste sentido, o romance Caim insere-se em perfeição na estratégia extraliterária de Saramago de desconstrução dos mitos fundadores da religião judaico-cristã e integra-se no conjunto dos seus textos publicados sobre esta temática, aliás, o narrador faz velada referência às consequências havidas para o autor devido à publicação do seu romance de 1991 (Saramago, 2009: 16). Numa palavra, após ter tentado desmontar ficcionalmente o mito da origem divina de Cristo, em 1991, eis que, em Caim, Saramago se confronta com a pretensa origem divina do homem, subvertendo-a, não ao modo de Feuerbach-Marx (o homem criador de deus), mas à singular maneira saramaguiana e, de certo modo, nietzschiana: o homem cristalizou na ideia de deus a ideia absoluta de mal, do mal absoluto, perfeita imagem sublimada do homem.
Em Caim, desmontando as grandes categorias teológicas em que assenta a visão bíblica do mundo, Saramago critica duramente tanto a pura espiritualidade de deus quanto a omnipotência, a misericórdia e a transcendência divinas. À espiritualidade, Saramago opõe a sensibilidade e a materialidade naturais (a “língua do senhor”; o “corpo do senhor”; as “roupas do senhor”; a sexualidade presente nos anjos (Caim: 11, 37, 28); à omnipotência, opõe o caprichismo quase infantil de deus, dotado de sentimentos de obstinação, ressentimento, inveja, concorrência com o poder e o prestígio de outros deuses (Idem: 106); à misericórdia, contrapõe a “profunda maldade do senhor” (Idem: 106), fundada num espírito oscilante e vingativo; à transcendência divina, Saramago ostenta a imanência histórica e social a que deus se encontra vinculado (ou, melhor, a “ideia” de deus), o deus de um povo contra os deuses de outros povos, diferenciando-se as suas características conceptuais segundo os tempos humanos.
Neste sentido, Caim representa, ficcionalmente, o puro retrato da maldade que deus inoculou no homem. Não tem salvação Caim porque não tem salvação o Homem, assim crismado por deus para todo o sempre. No final, Caim, confrontando deus com a sua maldade, assassina a família de Noé, forçando este a suicidar-se. E assim, após o Dilúvio, desaparece o Homem da face da terra. Não pode haver futuro para um homem assim tão feroz e malvado, um autêntico vírus maligno. Em Caim, a humanidade autoextingue-se – é um ceticismo absoluto elevado a máximo pessimismo: não há salvação possível para o homem.


Anterior Seguinte

keyboard_arrow_up