O vôo onírico de Rilke em O Livro de Horas
«Aqui está um homem que decidiu ser um
guerreiro solitário do poema.»
Rainer Maria Rilke [1]
A trilogia, que constitui O Livro de Horas[2], de Rainer Maria Rilke, consolida a viagem espiritual de Rilke, a par da maturidade poética, já bem visível em O Livro das Imagens[3] : a vida e a arte ,a religiosidade, a solidão, as crianças , as mulheres, o caos social da época, a noite, a morte, alojam-se num universo estilístico-simbólico que traduz a súplica do sujeito poético pela libertação terrena: «quero libertar», «ainda não liberto», «a alma libertará». Poesia-oráculo, motivada pelo próprio título do livro, que assim recupera o nome dado aos livros de orações e de salmos, utilizados na Idade Média, esta poesia-morada do sagrado traduz a ascensão e a queda bachelardianas, próprias de uma alma recolhida, triste e entorpecida, marcada pelo sofrimento, pela religiosidade e pela escassez, num tempo de desaire e de desigualdades, trazidos pela Revolução Industrial e pela ascensão do capitalismo. A criação e a reclamação de um Deus panteísta, no texto poético-lugar de culto, é o motivo para empreender o vôo onírico, que permite a ascese ou a «subida», como é recorrente ler-se ao longo dos poemas, habitados por aves, asas, anjos: «o meu sentir que a asa veio a encontrar», «voa, branco, à volta da tua face sem ruído», suas asas para ti a estender». Há, todavia, uma consciência de impossibilidade, que potencia a queda: «das minhas asas volto para o meu lar, / asas da minha perda repentina.» Prossegue então o poeta-monge-pintor-peregrino, apóstolo da solidão, mãe e guardiã da criação- oração, dando-nos conta da densidade e do peso das horas infindavelmente espessas e penosas, por oposição à leveza que o vôo onírico proporciona: «Se eu tivesse crescido num lugar onde os deuses são mais leves e as horas mais esguias». A queda é, neste universo poético, o inevitável regresso à realidade agónica, onde há crianças «que crescem em degraus de janelas» e pessoas que «mal vivem e com dificuldade, /em quartos isolados, com gestos angustiados,» e onde «as grandes cidades estão perdidas e desfeitas». A queda consiste no sofrimento que essa realidade potencia no sujeito poético: «Sofrem daquele grande sofrimento/ donde o homem para a pequena mágoa caiu;». E se Pessoa reclamou uma Hora para que se cumprisse Portugal, em «O Livro de Horas», aguarda-se desesperadamente pela hora do vôo definitivo: « a hora que se inclina e me vem tocar/ com pancada metálica e clara.»[4]. Mas é também a libertação da poesia e a libertação através da poesia, o que aqui se elege – a poesia-lugar da síntese agregadora, que resolve a vida simbólica, recuperando a unidade cósmica perdida: «ignoramos a unidade», escreverá na quarta elegia de Duíno.
[1] RILKE, Rainer Maria. Apaixonadamente. Rad. de António M. Gonçalves. Colares: Colares ed., 1995, 87 pp., p. 5.
[2] RILKE, Rainer Maria. O Livro das Horas. Trad. e pref., Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, 357 pp.
[3] RILKE, Rainer Maria. O Livro das Imagens. Trad. e nota int., Maria João Costa Pereira. Lisboa: Relógio D´Água, 2005, 297 pp.
[4] RILKE, Rainer Maria. As elegias de Duíno. Trad. e int. de Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 144 pp.