Alvão
Começava com a pulsação de um poema
a bater no peito dilatado
e com a mão inábil tentava afinar
o assobio dos seus lábios ardentes
Sentia o apelo dos lugares elevados
nas suas pernas e nos seus ombros
que o erguiam numa imprudência
de sangue quente pelos caminhos
E lá do alto o vale deslizava
sobre um glaciar por entre as rochas
enquanto ele erguia os braços em triunfo
como se o ar rarefeito pudesse
suportar toda aquela leveza
Até que soltava as pedras presas aos pés
para vencer a gravidade formal
e regressar à soleira da porta
entreaberta da infância
Pedia silêncio com a voz
e quando acordava era a boca
que sentia dormente e inútil
para as palavras em lume brando
E recomeçava a escrever com o corpo
para refazer a linguagem desde o sotaque
aos sinais de pontuação e às consoantes mudas
antes de as casas chegarem ao fim
Confinava o ar para dentro das cavidades
e das encruzilhadas enquanto intercalava
relâmpagos com as linhas da mão
em capítulos marcados por sons guturais
A cada passagem os nomes iluminavam-se
por baixo das aldeias que se erguiam
sob a lava dos deuses na criação
dos alicerces de um idioma instável
Desejava regressar para quebrar
os ossos às palavras excessivas
e adormecer sobre os tapetes
e os acenos das mulheres longínquas
Mas ao descer das torres e das parábolas
reconhecia os olhos sobre as letras invertidas
e levantava uma poeira com os pés pelas escarpas
enquanto dizia:
Estou entre as raízes e a nuvem
sou aquele a quem as aves atacam primeiro
e os animais terrestres reconhecem o medo
As praias as praias
As praias de toalhas queimadas
e comportas abertas à tarde estival
em que as crianças brincavam
com as pegadas das aves
e a respiração era haver mar
e sono na divagação ao longe
As praias as praias de tons azuis
e brancos e geleiras vermelhas
garrafas de sumo e pão elementar
sobreposto à linguiça e ao queijo da ilha
Praias inventadas com guarda-sóis
de marcas de carros e seguradoras
que alternavam com o vento
e com os corpos antes de a maré
subir pelas torres dos castelos
As praias as praias de água violenta
que as crianças chamavam aos gritos
e com os pés enterrados na rebentação
até fazerem uma lama vistosa
que assustava as mães rubras
e submergia as toalhas
e os óculos escuros dentro de um livro
As praias de espuma intrépida a inundar
como o riso das palmas das crianças
a deixarem uma marca húmida
em volta do tronco do chapéu-de-sol
onde antes encontravam abrigo
Praia poema de roupa encharcada
e de livros irrecuperáveis
a ver o pão seco flutuar
enquanto os sobreviventes
correm até ao muro de pedra
onde começam as esplanadas
protegidas dentro dos aquários
para os turistas de Inverno
36 de Agosto
A casa tinha um tapete pendurado
à janela e quando ele começou
a subir a rua viu uma mulher
a respirar numa cadeira de verga
Continuou a caminhar de cabeça
voltada para o lado esquerdo
sem reparar na sombra dos telhados
nem nos homens vidrados dentro dos carros
A mulher tinha três almofadas
e cicatrizes fundas
espalhadas à porta da casa
onde acabou por se deitar
sem tirar os sapatos
As pernas alongavam-se
e os dedos estavam rodeados
de anéis grossos e unhas lascadas
que apertavam a carne
Alguns metros adiante
já ela estava sem roupa
e o desejo dele ardia para
que ela o convidasse
a entrar para dentro da casa
A rua a subir já não lhe interessava
o coração estava tão ocupado
que só queria descer aos seus pés
Encontrou-se com um quarto
forrado de verde onde ela recebia
deitada sobre uma colcha branca
Aproximou-se para depositar
finalmente a cabeça no seu colo
e olhar de perto os seus cabelos
brilhantes com raízes escuras
Baixou os braços como se não houvesse
ninguém a guardar aquela mulher valiosa
de roubadores ineptos como ele
habituados a dormir em igrejas
estações de comboio ou cemitérios
à beira do Douro Litoral
Poemas retirados do livro “Altos Cumes” (Editora Labirinto 2020).