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Um ensaio sobre a poesia de Inês Lourenço
Por António Carlos Cortez Publicado em Ensaio, Literatura, Portugal a 14 de Janeiro, 2021 4731 palavras
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                              SEM MUSA E SEM REDENÇÃO:
                              A POESIA DE INÊS LOURENÇO

                                                                               «Emudecer o afe[c]to português?
                                                                               Amputar a consoante que anima
                                                                                                        a vibração exa[cta]
                                                                                                    do abraço, a urgência

                                                                                     tá[c]til do beijo? Eu não nasci
                                                                           nos Trópicos; preciso desta interna
                                                                              consoante para iluminar a névoa
                                                                                               do meu dile[c]to norte.»

                           Inês Lourenço, in Coisas que nunca, & etc., Lisboa, 2010, p.43.

                                                                          «I have let things slip, a                                                                           thirthy-year-old cargo boat /                                                                           Stubbornly hanging on to my name                                                                          and address»

                                                                                    Sylvia Plath, Ariel, 1965, 1996.

Quando uma antologia se faz, o gesto antológico é difícil. Trata-se de eliminar, de rasurar, de fazer desaparecer, ou de, no limite, emendar de tal maneira a redacção e a sua versão inicial que os poemas originais logo se tornam outros. Pode ser uma vírgula, uma palavra, a construção de uma frase, um sinal de pontuação – a mensagem altera-se. Inês Lourenço (1942) é um caso singular na poesia portuguesa. Os seus poemas denunciam uma consciência e uma linhagem: a consciência do erro, ou da errância; a linhagem dos poetas que emendam, que trabalham o objecto verbal. Os poetas que, enfim, sabem que há um palimpsesto em torno do qual a escrita posterior se organiza e fundamenta. 

Não será este o espaço para elencar as alterações que nesta antologia foram feitas, mas assevero que, se não foram muitas, são algumas. E são essenciais. O leitor que quiser ir cotejar, em jeito de trabalho detectivesco, as modificações a que me refiro, que o faça. Esta edição tem, para mais, a proveniência dos textos, ou seja, sabemos em que livros os poemas aqui insertos foram primeiramente publicados e esse é um trabalho que motivará, decerto, algum interesse. Não será de menos entender quanto a poesia é um constante labor da língua e, no caso vertente, mesmo que até se possa concluir que não são assim tão radicais as alterações levadas a cabo, mas uma coisa me parece evidente: esta é uma antologia que revela uma das maiores vozes da poesia portuguesa dos últimos trinta anos e esse peso, ou valor, passa por se compreender que o processo da escrita da autora de O Segundo Olhar obedece àquela linhagem: a dos poetas que concebem o poema como gesto laboratorial. Em Inês Lourenço, por muito que possamos sublinhar essa dimensão laboriosa da sua escrita, é evidente também um outro lado. Há que ver a sua poesia sob um olhar outro, encontrando as coisas que nunca a poesia diz de modo transparente. E, no entanto, se falo de labor nesta escrita, não esqueço um paradoxo a ela inerente. Refiro-me à impressão da espontaneidade, à naturalidade com que, não raro, estes poemas falam connosco. 

Para viajarmos nesta poesia que a editora Jaguatirica agora publica no Rio de Janeiro e que não deve deixar de ser celebrada (assim haja quem, na Universidade, reconheça a importância desta edição e a leve, se possível, à resenha em jornais especializados e revistas do ofício, ou quem sabe a uma recepção de maior espectro em alguma folha de crítica em periódico generalista!) importa ver que estes «pecados predilectos» – os poemas, claro – começam por comunicar por interpostas vozes. Três epígrafes, duas de duas vozes brasileiras e uma, portuguesa, abrem o volume. De Clarice Lispector: «Decifra-me, mas não me conclua, eu posso te surpreender». De Drummond de Andrade, a conhecida passagem «Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos», e a terceira, a de Natália Correia, poeta portuguesa, já desaparecida, esta convocação: «Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! / a poesia é para comer.» 

Não há nada de ingénuo na poesia, como sabemos. Hofmannsthal chega mesmo a dizer que «na poesia é a guerra». Não sei se é a guerra, mas há a questão do clinamen, facto que não é de somenos neste livro de Inês Lourenço. Porquê Clarice? E Drummond? E porquê a voz de Natália? Considero três hipóteses: as palavras de Clarice Lispector têm a sua tónica em dois verbos: decifrar e concluir. Talvez possamos juntar o terceiro: surpreender. Toda a poesia, toda a arte (para mais a arte literária), tece-se destes três verbos. O que é um bom livro de poesia? Aquele que pede uma decifração; aquele livro que sentimos não poder ser concluído. O livro, enfim, que nos surpreende pela força das imagens e pelo engenho da construção sintáctica. Creio mesmo que, depois das vanguardas, depois dos anos 60, passada que está a fase de qualquer pós-modernismo, ao poeta continua a pedir-se (como queria Ruy Belo) que não compactue. Mas que não pactue com o quê? Com essa forma que tudo relativiza no deve-e-haver das relações humanas e nas relações humanas com a arte. 

Se houve pós-modernismo, e a poesia de Inês Lourenço participa dessa década, terá sido só para quem viveu os anos 80: tempo da paródia, da irrisão, da deflação da utopia, do fim de narrativas a reboque ainda das promessas do Maio de 68… Reagan e Thatcher encarregaram-se de pôr nos nossos pratos o pragmatismo neoliberal e o consumismo como único «ismo» sonhável. Não se pode pactuar, portanto, no âmbito da poesia, com novas formas de indigência vindas desse tempo líquido já, e esvaziado. Desde logo não podem os poetas, hoje, ser cúmplices do espírito de feira e de festa que chegou, de armas e bagagens, à literatura. Com as novas luzes brilhantes que caem sobre o poético, é bom que haja certa austeridade que, mesmo não dispensando o desejo de revolucionar, o faça ainda sob a protecção do luar que cai de um abat-jour, e não sob novos candeeiros a combinar com tapetes vermelhos onde o poeta passa à semelhança dum cantor hip-hop, ou de um qualquer jogador da bola…Não pactuar, pois claro! 

Não há talvez outro programa possível: a poesia, se penetramos no reino das palavras – e surdamente – espera ser escrita por aqueles que não pactuam com o reino da publicidade malsã, com a famigerada popularidadezinha. Inês Lourenço é desta família: a dos poetas que desconfiam das lantejoulas que festivais e encontros literários prometem. Não quer dizer que esta poesia não frequente semelhantes palcos, mas, quando os frequenta, os passos que dá são para fora dos paços reais da bem instalada marginalidade de pacotilha.

Por outro lado, e por aqui se justificará a terceira epígrafe: não só o poeta que é Inês Lourenço «penetra surdamente no reino das palavras», investigando as possibilidades de sentido da linguagem, explorando, a partir dum real despoetizado, a beleza eventual do absurdo quotidiano, como afirma que a poesia é para os «subalimentados do sonho». Isto é: a poesia é comida, é carne, é corpo que se pode e deve comer, assim combatendo a subnutrição dos falhos de fantasia. Poesia é respeito pelas consoantes e vogais do idioma, é a procura de uma dicção substantiva, uma procura incessante da clareza da língua. Como escreve Inês Lourenço: poesia que necessita de consoantes internas para iluminar a névoa da sua pronúncia do norte (de Portugal) onde é mais sonoro e sincopado o idioma de Camões. Atenção a outro aspecto: «fantasia», sim; mas não no sentido delicodoce de romantismos serôdios, antes como capacidade de, no poema, descobrir associações fantásticas, inusitadas, momentos subtis de imaginação onde a palavra é o âmago do texto (lembro um poema onde se diz que tornamos às coisas «como quem leva a malga aos lábios, / passa um pente no cabelo e acende / e apaga à mão os seus interruptores» – associação impressionante, esta, de no acto de nos pentearmos acendermos e apagarmos os nossos interruptores…). 

Pode-se começar por um qualquer poema para ilustrar o que acabo de afirmar. Mas, logo de início, uma arte poética define qual o horizonte desta antologia. É um poema que determina um tom e uma intenção: «Indolor», o título, e nos primeiros versos: «Se querem musa legal / e registada, hábeis / balbuceios desejantes, / sentidos soporíferos de / inócua saliva, não/ me leiam.» É uma provocação, mas mais do que isso é uma declaração de princípio e uma posição ética e estética: recusa-se a «musa legal», ou seja, a poesia legalizada, aquela sentimental mas de baixa vibração. Recusa-se a musa «registada» (em português do Brasil, «registrada», como se o /r/ vincasse mais ainda a excentricidade de uma poesia assim); recusa-se também aquela arte sem arte, artificial, portanto, de uma poesia erotizante, amorosa, de «balbuceios desejantes». Poesia que adormeça os sentidos, essa poesia de «inócua saliva», essa é a poesia que nenhum leitor encontrará aqui. Por isso a seniana declaração: «não me leiam.»

De facto, logo me lembrei de Jorge de Sena e do seu verso, «Não leiam, delicados, este livro». Há poetas, na tradição lírica portuguesa, que pertencem a essa instigante forma de lirismo que é não ser lírico. Esta é uma palavra perigosa: lirismo, lírico. Inês Lourenço não despreza o lirismo, ou melhor, não despreza que a poesia fale de emoções, de sentimentos, de acontecimentos onde o amor dita as suas leis. Ou a melancolia. Ou a tristeza, a solidão, a saudade. A questão é outra na poesia de Inês Lourenço: é que o lirismo é nela agridoce, às vezes amargo e, quase sempre, irónico. Por isso há declarações de princípio: «Desconfio dos poetas / que falam muito de luz, das / manhãs e das árvores / na sua obsessão hospedeira / de frutos aves e / folhas. Desconfio dos que cantam / lareiras e vozes mansas, tentando / apaziguar o poema com a sua / indústria de incensos. Eles / encenam como velhos profetas / tardias formas de beleza / extinta – e fazem do verso / um ritual nado-morto / de pequenos afectos, / indiferentes à faca / incandescente que separa / o corpo das palavras / da substância do mundo.»

De facto, a poesia de Inês Lourenço tem gumes, arestas, tem pontas agudas, é pontiaguda: a fala da sua linguagem pode ser faca. O poema é esse acto de desconfiar da própria poesia. A lição de Jean-Luc Nancy é uma possível senda que esta obra percorre: é contra a própria poesia que a poesia se insurge. É nesse sentido que há aqui uma separação entre o corpo das palavras e a substância do mundo. Um bom poema (a havê-lo) será aquele que separa, como um estilete, essas duas esferas próximas e distantes ao mesmo tempo: mundo empírico e mundo poético. A poesia estará, talvez, no meio separador, no acto mesmo de fazer da faca a fala da poesia, cortante e áspera. O mundo lá fora, com suas obrigações e decepções, sua burocracia e seus governantes, suas repartições de finança e funcionamento humano por procuração, débito e crédito; esse mundo não é compatível com aquela poesia feita de aves e árvores, de serenidades e bucólicas visões. Daí que um poema, «Recado a um jovem poeta», funcione como conselho, mas como quem desconfia de Rilke e do seu Kappus, essa mitificada relação generosa em que o poeta de Duíno exerce a paternidade sobre um aspirante dos versos. Rilke, na verdade, aconselha-o numa só direcção: não escreva. Ou, como Sena escreve num lugar da sua obra, numa carta também a um jovem poeta: entre ser «monstro rangendo na treva» e o poeta que escreve porque tem de ser, porque escrever lhe é a vida que falta, e esse outro poeta que é o poetastro da ocasião propícia, antes ser monstro. Ou, na verdade, não escrever. 

Este livro, Os Pecados Predilectos, vem, pois, falar-nos do desconforto e da posição agreste que a poesia tem de ter, e tem de ser, em face do real. É necessário limpar o poema das «hemorragias órficas». O castelo de Duíno, veja bem o jovem poeta, não é o de vastas alturas donde os anjos podem, ou não, responder àquele que se lhes dirige. Hoje Duíno «é um terceiro andar, sem ascensor», o que significa que a poesia, em pleno século XXI, depois das ambições frustradas de vanguardas e ideologias políticas as mais diversas; a poesia que pertence ao lapso temporal que vem do Vietname e do surgimento da AIDS até ao Terrorismo à escala global e a tudo o que se lhe seguiu no pós-11 de Setembro (o crash de 2008, a crise migratória na Europa do Sul, os programas de austeridade do FMI esclavagista, a Grécia depauperada, a Espanha cindida até à guerra próxima, a Itália em alegre desgoverno, Portugal – prodigiosa irrealidade até nova derrocada) – a todo esse tempo a poesia responde não só com a baudelairiana certeza de que a aura se perdeu num boulevard sem préstimo. A poesia responde, hoje, com a eficácia própria dos discursos sem musa e sem redenção. Inês Lourenço di-lo deste modo:

EFICÁCIA

Os novos campos de extermínio
são servidos ao jantar
pelos canais noticiosos. A cólera
e a malária entre Goma e Munigi
acometem-nos na impotência e no remorso
da toalha, cientes que ficamos
da desidratação e dos dejectos
e da dificuldade de encontrar a veia
num moribundo. No sofá do nosso apartamento
passamos às posições dos sérvios
na Bósnia e lateja-nos nos ouvidos
o efeito da limpeza étnica,
ao som familiar e eficaz
da nossa máquina de lavar louça.

Poder-se-ia recordar, a respeito do modo de olhar o mundo que esta poesia denota, como poética do testemunho. São ainda Jorge de Sena, mas também Auden, ou a estranha Sylvia Plath, quem pode sustentar as formas de fazer crítica na obra de Inês Lourenço. Em todos, em maior ou menor grau, o poema é uma visão alegórica das relações sociais, uma sintaxe infecta no coração do mundo, mostrando o aluimento das convenções humanas. A sua ironia, a de Inês, entenda-se, advém desse testemunhar dos males do mundo sem que, ironizando, o leitor sinta que há banalidade no discurso, ou humor pelo humor. Mesmo narrativo, ou mesmo quando traz o discurso indirecto livre, ou o directo, para dentro do corpo dos textos, Inês Lourenço converte a narração em alusão, refreada é certo; a ironia em súbita surpresa. Que se leia, a este respeito, um poema como «Rua de Camões» onde a infância é o pretexto para, recuperando o «soalho esfregado a piaçaba», ou o fogão a carvão, ou ainda a «máquina a petróleo» ou as «janelas de guilhotina», introduzir uma voz – a da sua mãe – que desmonta o desfiar de memórias («O caruncho repicava nas frinchas / alongava as pernas / a casa envelhecia»; «Na rua das traseiras havia um catavento / veloz nas turbulências de Inverno» – extraordinária imagem, esta! As «turbulências do Inverno!»), o saudosismo lírico com dois versos: «Não olhes para os rapazes / que é feio». Ironia, melancolia; amor, humor. E eis aqui alguns vectores a observar quando lemos esta antologia. 

Um acto de testemunhar que implica o sujeito no fio de uma temporalidade que se escoa e que vinca a aprendizagem do mundo («Domingo»: «Hoje é o dia dos senhores / e dos sóis em algumas línguas. Noutras / já foi ontem ou será depois […]»), o poema pode nascer do banal da vida (Inês destaca a ideia de a literatura ser maior que a vida, já que a vida «não é grande coisa»), mas é um banal onde vibram segredos e pressentimentos, Deus, ele mesmo tema tão incomum na poesia portuguesa dos últimos decénios, merece ao menos um dia de descanso. Adília Lopes, que aqui no Brasil goza de algum reconhecimento entre os leitores, é uma destinatária óbvia: a literalidade ínvia dos poemas de Adília casa bem com a ínvia e alegórica poesia de Inês Lourenço. Adília, referindo-se aos marinheiros heróicos de Quinhentos, usaria uma imagem sarcástica, pouco simpática, mesmo antipática, deplorando as gestas feitas à custa do sangue africano e índio… Inês Lourenço, tomando como tema o «possessio maris» português, fala através de um óbvio que embate no ínvio, num discurso ambíguo. Se no poema se pode dourar «a cópula» e se, no poema como no amor, podemos resistir à «boa humilhação» de «foder e ser fodido», o mar possuído do erotismo, em gestas de bem diferente sinal, é a aventura da poesia – corpo de palavras contra o corpo do real – que subjuga os amantes ao acto inestético do amor ser duplamente sensível, mas animal, sexual, acto que pede não beleza segundo modos sensíveis e hipócritas de ver. É essa, no fundo, a aventura, ou a História que Inês interpreta. Título enganador, a descoberta de Brasis e Áfricas é, em rigor, a descoberta dos corpos que se amam e se fodem, porque se amam. Os corpos dos amantes são «nautas em seco, [aportando] a doutos // ensaios e outras posições / elípticas, esquecidos do genitivo / de posse e das declinações trágico-marítimas / onde nunca ninguém possuiu / sem ser possuído».

Esta antologia de uma das mais originais vozes da poesia portuguesa arrasta consigo a tradição, ou as tradições várias do poético. Aqui comparecem em citação óbvia ou em palimpsesto vozes várias; as dedicatórias de alguns poemas assinalam as afinidades electivas. Porém, creio que o tema transversal aos livros da autora é a própria poesia, ou o poeta, essa figura que se tenta interpretar. Com facilidade poderia, para concluir, fazer a listagem dos poemas onde é esse o tema declarado. Centro-me, para que conste, em dois textos que muito me dizem: «Coisas edificantes» e «Ética-Estética». No primeiro estamos perante um exercício de auto-análise («Começo um poema a invocar / ruínas e mesmo assim – grotesco / paradoxo – edifico ainda esta rede / de palavras»), um poema (perdoem-me os leitores certo jargão técnico) metapoético. Mas este texto mostra a cena estilhaçada que todo o acto de uma escrita ciente de si comporta. Estilhaçamento do sujeito da escrita que vê, ao seu lado, «a criança a [seu] lado / desenha uma casa, uma janela, / uma árvore, um sol. Edifica / no papel com os lápis / de cera e anula tudo / que tentei escrever. Mas logo / risca, escurece o sol, põe manchas / no telhado, deforma destrói / o desenho e faz-me recuperar / do cesto dos papéis / as ruínas». 

Logo, alegoria no sentido de mostrar através de outras imagens, de um outro modo de falar, as ruínas, a escrita, a criança que desenha, que risca (o poeta é aquele que emenda e risca), muito deste poema me lembra o processo dum grande poeta português da poesia: Manuel Gusmão. A criança, tema obsessivo, símbolo da força insurgente da arte, da inocência louca (Herberto!), da alquimia que o poema persegue, isso mesmo é dito de outra maneira em «Ética-Estética». Aqui é a figura do poeta, na sua dupla fotografia de homem que está «dentro e fora das coisas», o que se interpreta. Sofre da «doença incurável» da poesia: um ver para além do visto (Camões), ou um ver «claramente visto». A sua ética é a sua estética. Debate-se, na historicidade que é a sua, contra duas outras figuras: o filósofo e o político. Inês Lourenço recupera uma imagem de profundas consequências: a do incêndio. O poeta vive no incêndio de casar a estética com a ética, o bem com o mal. E esta é, para mim, a lição maior de uma poesia assim. 

Como Jorge de Sena e Sophia, Inês Lourenço também participa de uma espécie de emergência, ou de rebeldia sem a qual toda a estética em arte é brilhantina e toda a ética um artifício. Em palimpsesto lá lemos o seniano, vindo de Sophia, «não servirei senhor que possa morrer» e se pode ser verdade que os poetas, como todos os outros humanos, amam o que é frágil e não escapará à transitoriedade das coisas, há neles uma certeza que lhes permite sublimar a sua existência. Os poetas sabem que não podem desprezar o «transitório e finito», sabem que é a sua a palavra que constrói, por sobre as ruínas do mundo telegénico, televisivo, carnívoro, capitalista, fascista, essa «nostalgia do infindável / como uma tara hereditária». Isto é: como quem, escrevendo, lança aquela garrafa ao mar, a de Paul Celan, esperando que outro alguém, algures, a recolha e leia a mensagem da poesia que ali se encerra.

Fotografia da publicação da autoria de João Paulo Coutinho

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