O silêncio de uma ferida se abrindo
O texto que em seguida compartilho com vocês foi lido na última edição do Raias Poéticas, cujo tema da mesa, sugerido pelo Luís Serguilha, era: A literatura acontece em começos ininterruptos. Confesso que depois de mais de 20 anos de escolarização desenvolvi uma desobediência estratégica contra os problemas que me são colocados, mesmo os bem-intencionados. Não discuto se tais problemas tenham lá seu interesse ou valor; o que digo é que qualquer problema que nos é im-posto, só presta, na melhor das hipóteses, para nos provocar a criação de nossos próprios problemas. Mas, vejam bem, ao reivindicar a urgência de fabular os próprios problemas, não estou invocando um eu ou sujeito cognoscente articulador e senhor dos saberes adquiridos; ao contrário, criar os próprios problemas só é possível ao cabo de um rigoroso processo de despersonalização, quando nos abrimos às forças e intensidades que nos atravessam, nos arrebata de nós, arremessando-nos em um devir. O mais próprio é aquilo que nos abala e nos obriga a nos deslocarmos a uma terra incógnita, jamais reconhecida ou reconhecível. E não seria esse abalo um movimento do pensamento, se aceitamos que pensar não é ter ideias, mas ar-riscar um impensado?
Um problema dado se decide em uma solução mais ou menos ajeitada; um problema inventado se abre a um pensamento, ou seja, converte os afetos em disputa e/ou aliança numa determinada situação de instabilidade em efetividade sensível (em desconhecido indicado; indicado não como revelação, mas como gesto dançante que fissura espaços plásticos, regiões que escapam do domínio das significações. Em outras palavras, um problema não é nada mais que a maneira que é colocado, as semióticas, forças e materialidades que dispomos para atravessá-lo; é um modo singular de relacionar-se e relacionar as coisas. Ele não pode ser superado ou ultrapassado por uma solução ou resposta, uma vez que se apresenta como aprendizagem: passagem de um problema-questão a uma questão-saber. Compreender por meio da criação permite um contato com o mundo que não pode ser objetivado. Na medida em que não se pode afirmar (tornar firme, fixar) a articulação entre as coisas, as latências, a sombra que indica a situação de um foco luminoso. Escrever, então, não seria tatear (tangere: contingere: acontecer) sonoramente a luz, vincular-se poeticamente à sombra? Apreender essa despossessão?
Assim, podemos dizer da poeta, o que Nietzsche diz do filósofo, que é alguém a quem seus próprios pensamentos lhe golpeiam como se viessem desde fora, desde acima, desde abaixo, constituindo sua espécie peculiar de acontecimento e raios.
Dito isso, convido, a quem queira, a fazer essa travessia, essa cartografia que as palavras do Serguilha me suscitaram. Vamos por mar. De barco. Um percurso heterotópico; porque vocês se lembrarão de Foucault quando disse que o barco é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem esse aparato, esgotam-se os sonhos, a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.
Na nossa nau clandestina está Blanchot, quem me conta uma versão muito interessante do encontro de Ulisses com as sereias. Primeiro faz uma defesa apaixonada dessas criaturas híbridas dizendo que não são enganadoras, como dizem por aí; já que seus cantos incômodos, estranhos, inumanos, se abriam às verdadeira fontes do canto; elas efetivamente conduziam os navegantes ao seu objetivo. O problema está na fonte, na região mãe da música, como diz ele, que é justo o lugar onde ela desaparece. Desse modo, prossegue nosso companheiro, o canto só pode se dar como movimento, como passagem.
-Passagem até a origem, o centro? – Lhe pergunto
– Sim, admite. Mas o centro é o não-encontrável, assim, a busca é da mesma índole da errância. E o canto segue sendo uma travessia.
Em seguida Blanchot critica ácida e agudamente a prudência covarde de Ulisses para derrotar as sereias. Como sabemos, o herói da Odisseia ordena que sua tripulação coloque cera nos ouvidos e o amarre no mastro da embarcação enquanto passavam pela Ilha de Capri; desse jeito ele foi capaz de ouvir o canto e não se jogar nas profundezas do mar.
Um pouco vacilante volto a lhe perguntar:
– Mas, Blanchot, se o canto é a passagem até a região mãe da música e sendo essa o não-encontrável, como você argumenta; como um homem vergonhosamente atado, imobilizado, realizou essa travessia?
– Boa pergunta Carla, responde entusiasmado. Minha tese é que o real encontro de Ulisses com as sereias acontece nessa navegação feliz e infeliz que é a narração, porque é ali que ele se torna aquele que entra em relação com as forças dos elementos e a voz do abismo. A narrativa – completa esboçando algo parecido com um sorriso – não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar onde ele é chamado para acontecer. Escrever é retornar a esse lugar.
Nesse momento nosso companheiro se afasta para atender a um chamado, e eu fico sacolejando suas palavras. O lugar para o qual a narrativa, a escrita se move – penso com ele – não é apenas silencioso, desconhecido, estranho, como também parece não existir de antemão ou fora do seu próprio movimento. Uma leitura atenta da sua obra, nos indicará que, com esse modelo de começo, ele está tratando de não reduzir a escrita à narração do vivido, não ceder à representação, não permitir que a escrita seja uma mimetização das vivências pessoais, para situá-la no invivível que a dinâmica própria da escrita nos exige. Esse é um tema blanchotiano recorrente, sintetizado na afirmação: falar não é ver. Claramente um problema ético, de relação entre as palavras e as coisas. E talvez Deleuze tenha razão quando diz que nessa disputa, Blanchot insiste na primacia da fala como determinante, pois por mais que ele tenha dado um estatuto particular ao ver (o sensível), não formulou a questão ao inverso: ver não é falar.
Com a mais genuína admiração ao pensamento blanchotiano, sugiro, uma outra ética, uma outra relação, uma relação de tensão e simbiogêneses onde escrever acontece entre as palavras e as coisas, na disjunção que permite o entrelaçamento e dar lugar a uma dimensão in-formal, nascente, que não pertence nem as palavras nem as coisas, mas compõe o limite comum.
Se mudamos a relação, mudamos o começo da história, já que essa é tramada de acordo com os vínculos que criamos. Então, quando Blanchot volta à conversa (infinita) lhe digo:
– Não haveria, apesar de toda prudência fria de Ulisses, um irredutível, uma opacidade na qual a razão fracassa e o corpo reitera o inesperado da vida, a contingência dos encontros? E mesmo tentando tirar o corpo fora, outro corpo primitivo, frágil, precário foi gerado? Imaginemos, em tal caso, esse corpo larvar atravessando o corpo do mar. Ele sabe, por seu desequilíbrio, que não está diante do mar, mas sim em meio ao mar. Então aceita as flutuações e as oscilações das ondas, as intempestividades das tormentas. Aceita e tenta conjugar essas forças com as suas para produzir uma bússola e uma linha de fúria. Assim, vai aprendendo seu próprio corpo com o corpo do mar, vai desenhando as articulações onde ambos se encontram e se evadem; percebendo as convergências e divergências do vento com a vela, com a proa do barco, com as curvas das vagas; vai avançando no movimento de acolher movimento, aprendendo aquele mundo de tremores e sensações cósmicas, aprendendo com o corpo quando se aproxima uma tempestade, vai aprendendo, não a significar ou a domesticar, mas a dançar com esse corpo líquido; a combinar matéria e movimento em uma maneira imanente de pensar, dando ao pensamento uma consistência vibrátil, sonora, cuja ressonância configura-se num espaço de experimentação onde as coisas não estão feitas, estão constantemente se re-fazendo de acordo as afecções que vão albergando e emanando, com as relações que vão acon-tecendo. Então, quando as sereias cantam, esse corpo sabe que são reverberações do vento na pele, na carne, nos dentes; do balanço intermitente do barco; do roçar das cordas nos braços, nas mãos, no ventre, do silêncio de uma ferida se abrindo. Esse corpo sente essas feridas-passagens e escuta sua voragem: escuta o rumor da sua voz no bater de asas das aves migratórias, no chuá-chuá das águas, na inteligência tímbrica dos peixes, das algas e corais: escuta com os poros a potência das vibrações desse mundo vivo pulsando a e na linguagem e cria
um ritmo para sustentar sobre o abismo a palavra que acaba de nascer.
Quando paro de falar, percebo que meu interlocutor está desatento de tal maneira que poderia ser considerado uma indelicadeza. Mas olhando para o horizonte entendo o motivo: ele foi enfeitiçado por um sol imenso que lentamente abandona o dia como a poeta tateia a palavra: devolvendo-a ao fogo das infinitas transformações.